O palco foi uma reunião do G7 (as sete economias mais poderosas do mundo) que se realizou em abril de 2011, na embaixada francesa em Washington. O terceiro resgate da zona euro a Portugal (depois da Grécia e da Irlanda) era um dos temas do momento. Mas o diretor-geral do Fundo Monetário Internacional estava farto da atitude casuística na abordagem à crise das dívidas soberanas e exigia uma solução global. Dominique Strauss-Khan aproveitou a negociação do resgate a Portugal para marcar uma posição junto dos parceiros europeus.
“Disse que não íamos acompanhar os países da zona euro em Portugal. O Fundo não ia pôr dinheiro no programa, Vocês precisam de avançar com uma solução abrangente”. Os destinatários da mensagem eram os ministros das Finanças da zona euro, mas o responsável alemão, Wolfgang Schauble, respondeu: “Não pode fazer isso”. Strauss-Khan reconhece que não tinha poder para impor aquela decisão. “Ele (Schauble) tinha razão. Era um bluff total”.
Este diálogo surge reproduzido no livro “Laid Low, Inside the crisis that overwelmed Europe and the IMF”, do jornalista americano Paul Blustein. A obra analisa a forma como o Fundo Monetário Internacional (FMI) se viu arrastado para dar resposta à crise da zona euro, um cenário que nunca foi previsto que pudesse acontecer nos países desenvolvidos.
Para Blustein, o FMI acabou por ceder e ser um parceiro “secundário” das instituições europeias, apesar do importante contributo técnico e financeiro nos resgates. O papel do FMI nestes programas do resgate ao euro afetou assim a sua credibilidade como instituição de socorro a crises financeiras, sobretudo junto dos países em desenvolvimento para quem o Fundo concedeu um tratamento privilegiado aos países ricos, passando por cima das regras para uma intervenção financeira.
A apresentação em Portugal do livro de Paul Blustein, um jornalista que trabalhou no Wall Street Journal e no Wahshington Post foi pretexto para um debate, promovido pelo grupo de reflexão canadiano CIGI, em parceria com o Center for Globalization and Governance da Nova School of Business, sobre a resposta às crises do euro que juntou em Lisboa na quarta-feira passada, ex-ministros das Finanças, responsáveis do Banco de Portugal e da Comissão Europeia, mas também académicos e jornalistas. E ninguém conheceria melhor os bastidores do tema de que Fernando Teixeira dos Santos, o homem que chamou a troika em 2011.
Desde o resgate à Irlanda, em novembro de 2011, que ficou claro para Teixeira dos Santos que Portugal ia cair na mesma situação, contou o ex-ministro aos presentes. No entanto, explicou que a estratégia do Governo era a de ganhar tempo até que avançasse uma solução europeia global e abrangente, ao invés dos programas, país a país. Portugal aspirava a ser o primeiro país a testar essa solução. A discussão já existia ao nível do Eurogrupo, mas a resposta veio demasiado tarde e foi demasiado fraca.
O resgate a Portugal é quase uma nota de rodapé, mas este episódio é considerado pelo autor como revelador da posição em que o FMI se viu na discussão com as instituições europeias.
Para Paul Blustein, o resgate português não merece um exame tão detalhado no livro porque não levantou as mesmas dúvidas em relação à integridade do governo interno do FMI. O autor defende ainda que Portugal era um país bem conhecido do Fundo — que esteve no país em 1977 e 1983 — que identificou com sucesso relativo os problemas mais visíveis da economia portuguesa — baixa produtividade, fraca competitividade, crescimento anémico e elevados défices público e externo, “pecados diferentes” do mau comportamento grego ou dos excessos bancários da Irlanda.
E no entanto, assinala no caso português, tal como na Grécia e na Irlanda, o FMI iria renunciar à regra de que não deveria haver mais Argentinas. A prova de sustentabilidade da dívida pública era uma condição incontornável para as intervenções do fundo que foi aliviada para o primeiro resgate grego. O relatório apresentado à administração do Fundo sobre o programa português também reconhecia que seria difícil afirmar de forma categórica de que havia uma alta probabilidade da dívida portuguesa ser sustentável no médio prazo. O apoio a Portugal, 26 mil milhões num envelope de 78 mil milhões de euros, seria justificado face ao “alto risco de contagio sistémico internacional”.
Para Teixeira dos Santos, uma das falhas dos programas que foram negociados no início da crise passou pela ausência da discussão do aspeto mais crítico que era precisamente a sustentabilidade das dívidas e recorda que o tema era um tabu para o então presidente do Banco Central Europeu, Jean-Claude Trichet. A reestruturação da dívida prévia — antes da execução dos programas dos resgates –, era uma política defendida em intervenções do FMI para lidar emergências financeiras de países em desenvolvimento, mas não era um cenário que estivesse em cima da mesa nos programas europeus, por causa da união monetária que também limitava outras modalidades tradicionais da ação do Fundo, como as taxas de juro e a desvalorização cambial.
O tabu acabou por acontecer dois anos mais tarde, em 2012, quando a Grécia avançou com a reestruturação da sua dívida, no quadro de um segundo resgate, depois do evidente fracasso do primeiro programa negociado em 2010. Mas no FMI este desfecho não foi uma surpresa, antes pelo contrário.
Economista chefe avisou que programa grego era impossível de cumprir
Uma das “revelações” apresentada por Paul Blustein é um memorando interno do Fundo Monetário Internacional sobre o primeiro programa grego, então na fase final de negociações e que ilustra o nível de “irrealismo” das metas então impostas aos gregos num programa que estaria à partida destinado ao fracasso. O destinatário é Poul Thomsen, o responsável do FMI que iria assumir a cara do Fundo em Atenas — e mais tarde em Lisboa –, embora no caso português tenha sido chefe de missão durante um ano. O autor é o então economista chefe do FMI, Olivier Blanchard.
Recordando que um ajustamento orçamental acumulado que valesse 16% do Produto Interno Bruto, num período tão curto de tempo e muito concentrado no início nunca foi alcançado com base em experiências internacionais, o economista chefe escreveu:
O programa pode rapidamente descarrilar (mesmo que as políticas sejam totalmente cumpridas). Na ausência de uma forte retoma das exportações, não há nada que possa sustentar o crescimento contra uma contribuição negativa do setor público. Então, a recuperação deverá assumir a forma de L, com uma recuperação mais profunda e longa do que projeto, seguida por um período de crescimento débil. Isto significará desvios orçamentais e maior pressão no setor financeiro”.
Blanchard assume a preocupação com a ocorrência provável de desvios na política e de inconsistências internas no programa que possam resultar num descarrilamento, ainda que se consiga uma implementação perfeita. E tem consciência dos constrangimentos ao desenho do programa. Por essa razão, defende que é crítico alcançar um entendimento claro, ainda que confidencial, com as autoridades e a União Europeia em como seguir em frente caso estas circunstâncias se venham a materializar. Era um plano B para a Grécia, a que seguiu um plano C e um plano D…..
Para Teixeira dos Santos, um dos pecados originais passou por conceber o programa inicial grego como uma punição, o que causou um dano muito grave na zona euro na opinião do ex-ministro. Os mercados perceberam que o programa não era realizável e isso afetou a credibilidade das instituições internacionais.
Entretanto, Christine Lagarde assumiu o comando do FMI enquanto o Banco Central Europeu, sob a liderança de Mário Draghi, ganhou um outro protagonismo com a sua bazooka e o programa de compra de ativos.
Mas prognósticos depois do jogo são fáceis de fazer. Quando rebentou uma crise que ninguém acreditava que podia acontecer nos países desenvolvidos, foi necessário atuar com pouca informação e sem experiência. Não era só o FMI a ter dúvidas. Na Europa, foi sobretudo a Alemanha a insistir na entrada do Fundo, contra a posição que chegou a ser assumida pelo presidente francês, Sarkosy. No fim da linha, o pragmatismo falou mais alto. Só o FMI tinha a capacidade financeira e o know-how para agir nestas condições.
Sete anos depois, a sustentabilidade da dívida volta a estar no centro da discussão da situação grega, com o FMI, desta vez a insistir de forma pública e inequívoca, na necessidade de alívio, em divergência com as instituições europeias.