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"Apagão fiscal" nas transferências para offshores. O que se sabe e o que há para esclarecer

Este artigo tem mais de 5 anos

Entre 2011 e 2015, não foram publicadas estatísticas de transferências para offshores. O fisco não processou operações no valor de quase dez mil milhões de euros. Foram lapsos? O que falta explicar.

Rocha Andrade, atual secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, e Paulo Núncio e Azevedo Pereira, os antigos responsáveis pelo fisco
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Rocha Andrade, atual secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, e Paulo Núncio e Azevedo Pereira, os antigos responsáveis pelo fisco

Rocha Andrade, atual secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, e Paulo Núncio e Azevedo Pereira, os antigos responsáveis pelo fisco

Esta semana, ficou a saber-se que quase dez mil milhões de euros transferidos para regimes fiscais favoráveis não foram logo registados nas estatísticas, permanecendo de fora do tratamento do fisco para controlo de evasão fiscal. Há dois “apagões” nos números sobre as transferências de dinheiro para offshores.

O primeiro resulta da não publicação das estatísticas referentes ao período entre 2010 e 2014 e que coincidem com a governação da coligação entre PSD e CDS, época em que não foi cumprido o despacho de 2010 do secretário de Estado do anterior Executivo socialista. Esta omissão é facilmente confirmada pela consulta do site da Direção-Geral de Impostos e pelas declarações feitas já por atuais e antigos responsáveis pela máquina fiscal. Falta, contudo, o principal.

Quais são os deveres de informação sobre offshores

A obrigação de os bancos comunicarem à Autoridade Tributária as transferências feitas pelos clientes para offshores e territórios com regimes fiscais favoráveis está prevista na lei geral tributária e entrou em vigor em 2009. No ano seguinte, o despacho do então secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Sérgio Vasques, estabelece a obrigação da então Direção-Geral de Contribuições e Impostos de publicar informação estatística relativa às transferências financeiras feitas para paraísos fiscais. Esta informação deveria ser divulgada até ao final de outubro do ano seguinte ao da comunicação das operações.

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O fisco deve discriminar, nesta divulgação, o número de pessoas singulares e coletivas que ordenaram a transferência e dos beneficiários e o número e valor total das transferências.

A informação foi divulgada pela primeira vez em 2010, com dados de 2009, tendo na altura motivado da parte do Governo uma ação inspetiva sobre os contribuintes que fizeram esses movimentos. A sua publicação foi interrompida em 2011, já com o Executivo do PSD/CDS, e só foi retomada em 2016, com o atual Governo.

Quem foi responsável pela falha na divulgação dos valores

A interrupção da publicação aconteceu durante o tempo em que a secretaria de Estado dos Assuntos Fiscais esteve nas mãos de Paulo Núncio, indicado pelo CDS. Durante grande parte deste período, a Administração Tributária foi dirigida por Azevedo Pereira, que abandonou o cargo em 2014. Foi substituído por Brigas Afonso, que caiu menos de um depois em março de 2015, no meio de outra polémica que apanhou também Paulo Núncio: a criação de uma lista VIP de contribuintes que teria como finalidade proteger algumas personalidades da devassa ou controlo, consoante as perspetivas, exercidos pelos funcionários do fisco.

Segue-se no cargo Helena Borges, escolhida ainda pelo Governo PSD/CDS, uma nomeação já confirmada pelo atual executivo em 2016. E foi também nesse ano que o atual secretário de Estados dos Assuntos Fiscais, Fernando Rocha Andrade, deu instruções à Administração Fiscal para retomar a publicação das estatísticas de transferências para offshores, com a divulgação dos dados que ficaram por publicar entre 2011 e 2015, o que foi feito em abril do ano passado.

Sobre a não publicação das estatísticas, o antigo diretor do fisco, Azevedo Pereira, numa declaração feita esta terça-feira ao jornal Eco, garante que a Autoridade Tributária “preparou os elementos necessários à efetiva divulgação pública”, o que remeteu o ónus da não publicação para a tutela política, o antigo secretário de Estado dos Assuntos Fiscais. Em respostas ao Diário de Notícias esta sexta-feira, Paulo Núncio devolve a bola ao seu antigo diretor-geral.

Recordando que o despacho do antecessor [Sérgio Vasques] determina que a divulgação dessas estatísticas pelo fisco, Núncio considera que esse ato não estava dependente de uma aprovação expressa, a posteriori, do secretário de Estado dos Assuntos Fiscais. Segundo o DN, Núncio foi confrontado com uma proposta da Autoridade Tributária para publicar as estatísticas em 2012, ao qual deu visto.

“O despacho de visto não é uma oposição à respetiva divulgação, uma vez que a AT já estava obrigada a publicar a estatística com base no despacho do meu antecessor.”

Esta interpretação foi entretanto contrariada por Azevedo Pereira. O antigo diretor-geral de impostos afirma que o então secretário de Estado teria tido a possibilidade de anular um eventual “erro de perceção”, caso tivesse a intenção de ver publicadas as estatísticas sobre as offshores, dando uma indicação forma ou informal para que a divulgação fosse feita.

O Diário de Notícias avançou que o visto dado por Paulo Núncio ao pedido de parecer feito pela Autoridade Tributária sobre a publicação dos números demorou 18 meses a ser entregue ao fisco.

Offshores. Paulo Núncio assume “responsabilidade política” e abandona funções no CDS

O ex-secretário de Estado veio ainda no sábado assumir toda a responsabilidade “política” sobre a não publicação das estatísticas relativas a offshores.

“Tendo em conta o tempo que decorreu entre os factos e o presente e tendo tido agora a oportunidade de revisitar os documentos que têm sido noticiados, nomeadamente os apresentados pelos serviços para publicação de informação estatística das transferências transfronteiriças, considero legitima a interpretação dos serviços que levou à não publicação das estatísticas no portal das Finanças. Assumo, por isso, a responsabilidade política pela não publicação das referidas estatísticas”.

Já sobre a questão da ausência de controlo sobre 20 declarações de bancos a comunicar operações ao fisco entre 2011 e 2014, Paulo Núncio reafirma o seu total desconhecimento, à data e até hoje.

A responsabilidade política pode não parar em Paulo Núncio que foi secretário de Estado dos Assuntos Fiscais de dois ministros das Finanças do Governo PSD/CDS. O comentador e antigo dirigente do PSD, Marques Mendes, defendeu e ida de Vítor Gaspar e de Maria Luís Albuquerque ao Parlamento para prestar explicações sobre a matéria. Os partidos da esquerda e o PS também defendem que o PSD não deeve ficar de fora.

Operações não foram publicadas, mas foram controladas?

O segundo “apagão” é, para já, mais difícil de perceber e será aquele que, do ponto de vista fiscal e político, mais dúvidas levanta. O Ministério das Finanças diz que foi quando começou a trabalhar as estatísticas relativas a 2015 que foram detetadas “discrepâncias” em relação a uma comunicação feita por uma instituição financeira em 2014. Nessa sequência, foi determinada uma verificação de todas as comunicações de anos anteriores. Neste processo, foi apurada a existência de 20 declarações apresentadas por instituições financeiras, relativas ao período 2011-2014, “que não foram objeto de qualquer tratamento pela AT (Administração Tributária)”, explicou ao Observador fonte oficial das Finanças.

Segundo a mesma fonte, essas declarações comunicam operações para offshores no valor de quase dez mil milhões de euros (9.700 milhões de euros) que só “recentemente” foram “processadas informaticamente e objeto de controlo”.

Esta informação foi, de certa forma, contrariada pelo antigo Diretor-geral de Impostos. Azevedo Pereira disse ao Eco que “a Autoridade Tributária (AT) efetuou em devido tempo, quer o tratamento e o acompanhamento inspetivo que lhe competia, quer a preparação dos elementos necessários à efetiva divulgação pública dos elementos em causa“.

Perante os dados entretanto apurados, o Ministério das Finanças corrigiu as estatísticas sobre as transferências para paraísos fiscais, já no final do ano passado, tendo também solicitado uma auditoria à Inspeção-Geral de Finanças (IGF) que ainda não chegou a conclusões. No entanto, o jornal Público revelou este sábado que uma parte da informação constante das declarações feitas pelos bancos desapareceu já dentro da máquina fiscal, com base na documentação que foi remetida para a IGF.

Segundo as Finanças, o fisco assinalou a existência de “problemas nos procedimentos e nos mecanismos informáticos que ditaram o não tratamento da informação”. O problema foi entretanto corrigido, mas o Ministério das Finanças admite tomar mais medidas, em função do que vier a concluir a IGF.

Ainda que tenha existido um problema técnico, é preciso perceber se esta situação resultou de um lapso ou se houve uma tentativa intencional de ocultar estes dados da opinião pública e, num cenário mais grave, do próprio controlo fiscal. O presidente do Sindicato dos Trabalhadores dos Impostos, Paulo Ralha, não deixa de assinalar ao Observador a coincidência temporal entre esta falha de informação e a tentativa de criação de uma lista VIP, que teria como objetivo “proteger” alguns contribuintes de eventuais excessos de consulta por parte dos funcionários dos impostos.

O tema chegará ao Parlamento na próxima semana — quarta-feira foram agendadas as audições do atual e do antigo secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Rocha Andrade e Paulo Núncio. Está ainda previsto ouvir os antigos e atuais diretores da Autoridade Tributária.

Operações “apagadas” não pagaram impostos?

As falhas no tratamento fiscal dos fluxos que saíram para offshores não significam necessariamente que os contribuintes em causa tenham fugido ao pagamento de impostos, ainda que as operações que envolvem estes territórios tenham como um dos principais objetivos aliviar a fatura fiscal de quem as faz. As comunicações ao fisco permitem um mecanismo de controlo adicional do cumprimento por parte de empresas e cidadãos que estarão, à partida, entre os maiores contribuintes.

As declarações processadas pela administração fiscal são sujeitas a um controlo automático, cruzando aquela informação com os dados constantes das bases de dados da Autoridade Tributária. Em caso de discrepância, são distribuídas para análise da Inspeção Tributária, podendo dar origem a inspeções tributárias e/ou inquéritos crime. Os dados constantes das declarações processadas ficam ainda disponíveis para serem trabalhados pela Inspeção Tributária, designadamente em cruzamento de dados noutras inspeções.

Em 2010, e após ter recebido a informação relativa às transferências financeiras realizadas no ano anterior, o então secretário de Estado, Sérgio Vasques, determinou o lançamento de “uma operação a nível nacional com base nesta declaração e no cruzamento de informação, procedendo à inspeção dos contribuintes singulares e coletivos que tenham transferido dinheiro para estes territórios”. Em comunicado emitido nesse ano, o Ministério das Finanças explicava que pretendia levar a cabo um controlo mais rigoroso dos pagamentos feitos a territórios offshore para “contrariar práticas de planeamento e fraude fiscal e obrigar estes territórios à troca de informação com a administração fiscal portuguesa”.

As operações de maior dimensão devem ser fiscalizados pela Unidade dos Grandes Contribuintes, uma entidade criada pelo anterior Governo, que nunca terá tido os meios necessários para realizar o seu trabalho. Aliás, uma das medidas já anunciada pelo Executivo é o reforço dos meios humanos (mais 30 pessoas) da Inspeção Tributária e Aduaneira, da Direção de Serviços de Investigação da Fraude e Ações Especiais e da Unidade de Grandes Contribuintes, que são as três unidades mais importantes para analisar fluxos financeiros de grande volume e internacionais.

Que contribuintes e operações escaparam ao radar do fisco?

O Ministério das Finanças tem essa informação, a partir das declarações emitidas pelas instituições financeiras. O modelo 38 define que deve ser especificado o número de identificação fiscal de quem dá a ordem transferência, a identidade do beneficiário, o valor, o país de destino e o motivo da operação. Esta declaração deve ser feita até julho do ano seguinte ao da realização das transferências.

Fisco só terá controlado 20% dos valores transferidos para offshores entre 2012 e 2014

Mas, até agora, só chegou ao domínio público o número de declarações de instituições financeiras que não foram processadas, 20, e o valor das operações em causa, cerca de 9.800 milhões de euros. O Observador tentou junto do Ministério das Finanças saber quantas operações e quantos contribuintes estavam envolvidos e qual o valor das transferências ordenadas por entidades estrangeiras. No entanto, até agora essa informação não foi disponibilizada.

As transferências que escaparam ao processamento da Autoridade Tributária aconteceram sobretudo entre 2012 e 2014, tendo os seus valores representado quase 80% dos montantes transferidos para offshores durante este período. O fisco está agora a proceder ao controlo desses movimentos, que totalizam 9.800 milhões de euros e ainda não se conhece o resultado deste controlo.

A única informação que temos sobre uma operação concreta diz respeito já a 2015, ano em que, segundo o Ministério das Finanças, não foram detetadas incongruências. Trata-se de uma transferência feira na sequência da venda da PT Portugal pela Oi à Altice. O negócio de quase cinco mil milhões de euros fez disparar a saída de dinheiro para offshores em 2015.

Offshores. Venda da PT fez disparar transferências

Se bem que a identidade dos contribuintes esteja protegida pelo sigilo fiscal, as estatísticas sobre as transferências para offshores trazem alguma informação sobre o perfil das operações e dos seus protagonistas. Entre 2011 e 2014, o período crítico para esta questão, foram comunicados movimentos para offshores e regimes fiscais privilegiados no valor de quase 17 mil milhões de euros. Neste bolo, os contribuintes individuais transferiram cerca de 600 milhões de euros.

Entre as quase 10.400 operações comunicadas, cerca de 3.680 foram feitas por particulares. As restantes foram da responsabilidade de empresas. Os números publicados no Portal das Finanças também permitem concluir que os contribuintes individuais transferiram mais dinheiro para contas próprias, enquanto as empresas mandaram valores mais avultados para contas terceiras. Outra conclusão interessante é a de que os maiores montantes foram transferidos por contribuintes não residentes, particulares e empresas.

Atualizada com novas declarações do antigo-diretor geral de Impostos e desenvolvimentos noticiosos sobre o circuito das declarações com transferências para paraísos fiscais dentro da administração fiscal.

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