Após quatro horas de audição, Paulo Núncio voltou a assumir responsabilidade pessoal e política sobre uma parte da polémica em redor das transferências para offshores realizadas entre 2011 e 2015, quando desempenhou funções de secretário de Estado dos Assuntos Fiscais. Mas ainda sobram interrogações importantes sem respostas.

O que foi assumido pelo ex-secretário de Estado

Paulo Núncio não publicou dados estatísticos porque teve dúvidas. O ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais iniciou a sua intervenção com um mea culpa em relação à não publicação de estatísticas com a saída de dinheiro para paraísos fiscais enquanto esteve no Governo. Para além da responsabilidade política, que já tinha assumido em esclarecimentos por escrito, Núncio reconheceu que tinha dúvidas sobre a publicação dos dados em causa, contrariando a tese de que existia uma obrigação legal para o fazer.

Assumo que tive dúvidas em relação à publicação, porque achei que podia dar algum tipo de vantagem ao infrator, um alerta para os infratores em relação ao nível e quantidade de informação que a Autoridade Tributária dispunha sobre as transferências e que podia prejudicar o combate à fraude e à evasão fiscal.”

A segunda dúvida tinha a ver com os detalhes sobre a informação. Eram dados em bruto e Paulo Núncio entendeu que a sua publicação podia levar a interpretações incorretas sobre o significado das transferências.

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Paulo Núncio deu uma “não autorização” à Autoridade Tributária para publicar dados. Ao longo da audição desta quarta-feira, e em resposta sobretudo a perguntas de Mariana Mortágua, deputada do Bloco, Paulo Núncio acabou por reconhecer que não autorizou a publicação das estatísticas propostas pela Autoridade Tributária, como deveria ter feito, de modo a prosseguir com o procedimento que estava definido. Aqui, o ex-secretário de Estado entra em contradição com declarações feitas na semana passada ao Diário de Notícias, em que responsabilizou o fisco pela não publicação das estatísticas, com o argumento de que a Administração Tributária não precisava da sua autorização.

Núncio responsabiliza Fisco por ocultação de dados sobre offshores

Aos pedidos da Autoridade Tributária relacionados com a publicação destes dados estatísticos (que o Fisco só tem acesso no ano seguinte à transferência para paraísos fiscais), o gabinete de Paulo Núncio limitou-se a responder “visto”. E o que quer isso dizer? Quer dizer “publique-se?”?, questionou Mariana Mortágua. Mas aí Paulo Núncio foi claro e admitiu que queria apenas dizer que o Governo tinha tomado conhecimento mas, sem resposta favorável, significava tratar-se de uma “não-autorização” para a publicação das estatísticas. Ou seja, foi o gabinete do secretário de Estado que impediu deliberadamente a publicação daqueles dados por parte da AT.

Apesar de admitir que o anterior despacho obrigava a AT a publicar os dados, Núncio esclareceu que, de acordo com o procedimento então decidido, esse tipo de informação vinha ao seu gabinete para aprovação. Isto porque, afirmou, “um despacho não é uma obrigação legal”. Ou seja, no seu entender não era obrigado a publicar se assim o entendesse.

Paulo Núncio assume responsabilidade total e iliba Vítor Gaspar e Maria Luís Albuquerque. Enquanto chamou a si todas as responsabilidades políticas da não publicação dos dados sobre as transferências de dinheiro para offshores, Paulo Núncio procurou sempre ilibar os ministros das Finanças de então, Vítor Gaspar e Maria Luís Albuquerque. O PS, entretanto, já anunciou que os vai chamar ao Parlamento para os questionar sobre o assunto.

“Não partilhei esta decisão com outros membros do Governo, a responsabilidade é só minha e só a mim pode ser assacada”, começou por dizer, voltando a repetir que teve dúvidas sobre a publicação daquelas informações no portal das Finanças porque poderia ter alguma vantagem para os infratores. Reconheceu, contudo, que “a decisão de não publicar as estatísticas pode ser objeto de críticas e pode não ter sido a decisão mais adequada”. Mais à frente admitiria que teve “conversas” várias com os ministros que tutelavam a pasta, nomeadamente sobre o combate à fraude e evasão fiscal, mas recusa que tenham falado sobre a divulgação das estatísticas. “Nunca discuti a questão da não divulgação de estatísticas com Vítor Gaspar e com Maria Luís Albuquerque. A responsabilidade é só minha”, disse.

A contradição de Paulo Núncio

Primeiro disse que a culpa era do Fisco, depois que a culpa era sua. A grande contradição do ex-secretário de Estado reside no facto de, quando a polémica rebentou, ter dito em declarações ao Diário de Notícias que a responsabilidade pela não divulgação dos dados sobre as transferências de dez mil milhões de euros para paraísos fiscais era da AT. A AT terá proposto a Paulo Núncio a publicação dos dados mas o despacho recebeu apenas um “visto” do secretário de Estado, que se traduziu numa “não autorização”. O Fisco entendeu então que não era para publicar — por ordem do Governo.

Este sábado, contudo, em comunicado, Paulo Núncio chamou a si toda a responsabilidade política pela não publicação, retirando qualquer culpa ao Fisco. Foi o que voltou a afirmar na audição desta quarta-feira. A assunção de responsabilidade, disse, acontece depois de ter revisto a documentação e os despachos assinados na altura.

Esta quarta-feira reiterou que a culpa da não publicação das estatísticas era “toda sua”, ilibando todos os demais governantes e a Autoridade Tributária. Mas fez questão de realçar que a não publicação desses dados não se relaciona de modo algum com o escrutínio e o controlo que o Fisco faz dos dinheiros transferidos para offshores.”Não há impostos perdidos”, garantiu.

O que ficou por esclarecer pelo dirigente do CDS?

Há ou não relação entre a publicação da estatística e o controlo do dinheiro pelo Fisco? Aqui há duas versões e não há conclusão possível. Paulo Núncio, apoiado pelo CDS e pelo PSD, insistiu que não havia relação entre o controlo feito pelo Fisco das transferências para paraísos fiscais e os dados estatísticos que são efetivamente publicados — e que escaparam a essa publicação durante o seu Governo.

Sobre essa não publicação, assume responsabilidade. Mas sobre a suposta fuga de 10 mil milhões para offshores entre 2011 e 2014 diz esperar pelas conclusões do relatório da Inspeção Geral de Finanças para saber se houve impostos a liquidar. A ligação das duas coisas é que “não faz sentido”.

Prova disso, afirmou, é que o valor das transferências entre 2011 e 2012 se reduziu em 12%, cerca de 800 milhões de euros. E mesmo no ano de 2015, e retirando o efeito da venda da PT à Altice, o valor das transferências foi menor, defendeu. E mais: em 2011, ano em que as estatísticas não foram divulgadas, a Autoridade Tributária efetuou correção da matéria coletável de 20 milhões de euros. Em 2012, essas correções foram de 32 milhões de euros. As correções feitas em relação ao ano de 2009, não ultrapassaram um milhão de euros. Ou seja, a não publicação da estatística não tem nada a ver com o controlo inspetivo das transferências para offshores. E quem diz o contrário é “demagógico e populista”, acusou Paulo Núncio.

Não é, contudo, o que dizem os partidos da esquerda. Para o PS, PCP e BE, foi apenas o facto de o atual Governo ter voltado a publicar as estatísticas que permitiu detetar as “brutais discrepâncias” entre os valores efetivamente transferidos para offshores e os dados que são verificados pelo Fisco. Mariana Mortágua questionou o ex-secretário de Estado por este ter admitido que “não sabia o que tinha acontecido às 20 declarações” processadas pelos bancos e enviadas à AT, cujos dados não tinham sido cruzados pelo Fisco.

Se tivessem sido publicados os dados teria sabido que houve uma redução significativa das transferências para offshores a partir de 2011 e teria investigado, e teria descoberto as discrepâncias de dez mil milhões que este Governo fez”, resumiu o BE.

Então o que aconteceu aos 10 mil milhões que voaram das estatísticas? Só Rocha Andrade terá em seu poder informação sobre os dez mil milhões de euros que não terão sido controlados pelo fisco e que estão a ser auditados pela Inspeção-Geral de Finanças. No plenário desta tarde, o governante confirmou que esse dinheiro escapou ao “controlo inspetivo”, contrariando assim o que tinha dito o então diretor-geral do Fisco Azevedo Pereira e o que foi dito esta manhã por Paulo Núncio — que disse que não houve “impostos perdidos”.

Paulo Núncio assume apenas responsabilidade pela não publicação das estatísticas, repetindo várias vezes nada saber sobre as tais 20 declarações feitas pelos bancos entre 2011 e 2014 e que não foram, segundo o atual Governo, objeto de tratamento e controlo pelo fisco. Para Paulo Núncio é preciso esperar com “serenidade” pelo relatório que está a ser preparado pela Inspeção Geral de Finanças sobre esta questão. Até lá, há apenas duas versões da história.

De que infratores fala Paulo Núncio? Foi outra questão que ficou por esclarecer. Paulo Núncio abriu as hostilidades a admitir que tinha tomado a decisão, individual, de não publicar os dados porque “a publicação poderia significar uma vantagem para os infratores, entendo que em determinadas matérias um excesso de informação pública pode ser contraproducente”. Mas ficou por esclarecer que infratores eram esses, e se assumia a sua existência, porque não investigou. A pergunta chegou a ser feita pelo deputado comunista Miguel Tiago, mas sem resposta.