Um antigo convento na Rua Nova do Almada, em pleno Chiado, alberga entre as suas arcadas austeras a livraria Ferin. Estão ali desde meados do século XIX, quando eram também tipografia, encadernadores da Casa Real por despacho de D. Pedro V e a livraria era dirigida por uma mulher à frente do seu tempo: Maria Teresa Ferin. Por ali passaram Eça de Queirós (que a imortaliza no romance A Capital), Fernando Pessoa, José Saramago, Sophia. Por ali passaram os muitos condes e marqueses e duques cujos nomes constavam o Almanaque da Casa Real que ali mesmo se imprimia. Conta-se inclusive que o derradeiro ato do famoso governador colonial Mouzinho de Albuquerque terá sido ir à Ferin pagar as suas dívidas.
E mesmo nos anos caóticos da primeira República, quando tiveram que proteger a porta com uma grade de ferro devido aos motins constantes, receberam republicanos, maçons e carbonários. Durante a ditadura, o facto de venderem muitas obras em línguas estrangeiras, especialmente em francês, fez com que muitos ali encontrassem uma janela para outras latitudes ideológicas e estéticas. A par dos livros, vendia instrumentos de precisão e o barómetro, que ainda hoje lá está pendurado na parede, levava muita gente a entrar apenas para saber como ia estar o tempo no dia seguinte.
Quem entra hoje na Ferin tem de imediato a perceção de ter transposto as portas para um tempo que já não existe: os livros (cerca de 15 mil) estão atrás de balcões, fechados em vitrinas e mobília carregada da patine do tempo. Muitos não podem ser manuseados e a circulação pelo espaço não é fácil, o que fez dele mais um lugar exótico onde se vai não tanto para comprar livros mas para experimentar o discreto charme da monarquia, para aspirar as cinzas de um tempo lento onde se esperava ansiosamente pelas novidades vindas de França, onde se deixavam as obras preferidas para terem uma encadernação de melhor qualidade, onde se vinha apenas para folhear novidades ou conversar. Mas nem essa aura, nem os turistas que invadiram Lisboa, nem a energia dos que, nas redes sociais, vão protestar com veemência contra o fim das livrarias históricas, impediu a Ferin de entrar em falência.
Em 2014, João Paulo Dias Pinheiro, o último membro da família Ferin a estar à frente da livraria, dizia que os piores anos tinham sido os que se seguiram ao grande incêndio que devastou o Chiado em 1988. “Valeram os clientes fiéis”, recordava, “a livraria foi o primeiro edifício da rua que não ardeu naquele dia. Foi um milagre o fogo ter parado aqui ao lado”. Mas a verdade é que já em 2014, quem detinha 49% da livraria era a editora Principia.
“O negócio aguentava-se com as exportações de livros para Angola, Moçambique e Brasil e a clientela do juízes e advogados do tribunal da Boa Hora logo aqui em frente. Com a crise financeira nestes países e a mudança de instalações do Tribunal a livraria sofreu um golpe fatal”.
Quem conta agora este desfecho é José Pinho, dono da Ler Devagar (no LX Factory), organizador do Festival Literário Fólio (Óbidos) e, desde novembro de 2016, o novo proprietário da Ferin.
Era uma vez um construtor de carros para cavalos…
…que veio para Portugal durante as Invasões Francesas. Chamava-se Jean Batiste Ferin, era de origem belga, decidiu ficar por Lisboa e montar um negócio de carros para cavalos. Teve 11 filhos dos quais 7 se ligaram ao negócio dos livros. Mas o papel fundamental foi o de duas das raparigas: Maria Teresa e Gertrudes Clara, consumidoras compulsivas de livros que mandavam vir de França, decidiram abrir um pequeno gabinete de leitura, onde recebiam amigos e emprestavam depois esses volumes a troco de uma pequena quantia. Maria Teresa acabou por casar com um comerciante de livros e Gertrudes com um tipógrafo e assim nasce, em 1840, a Ferin, como livraria, tipografia e encadernadora. As suas ligações à Monarquia estreitaram-se e mantiveram-se mesmo com a República. Livros de genealogia, heráldica, equitação, história militar, património, arte e, sobretudo livros em francês, inglês, espanhol e italiano tornaram-na um lugar distinto das outras livrarias lisboetas.
Sob as arcadas, móveis e livros escondem-se rastros de um outro universo da Ferin: uma enorme cave, também com arcos feitos de pedra antiquíssima, onde se guardam os instrumentos de tipografia e encadernação. Letras de chumbo, prensas, cofres com medalhas régias e raridades bibliográficas como uma edição de Hamlet, de Shakespeare, traduzido pelo rei D. Luís I e cuja impressão e encadernação foi feita na Ferin.
Nos últimos anos passaram por esta cave dezenas de lançamentos de livros, tertúlias e eventos literários, que ainda assim não foram suficientes para salvar a centenária casa das mudanças dos tempos e das circunstâncias. Em 2016 a Principia contactou José Pinho a explicar a situação limite da Ferin e a propor-lhe a venda, como conta ao Observador o próprio José Pinho.
“Na verdade nada me mobilizava para fazer este negócio”, confessa. “Não acredito nessas pessoas que choram apaixonadas o fim das livrarias antigas mas nunca lá puseram os pés para comprar um livro. Nem sei se leem. Isso não salva nenhum negócio.”
Então o que o fez mudar de ideias? “A cave”, diz, com um grande sorriso. “Aquela cave, aquelas máquinas, aquela memória fabril, futurista é uma das coisas que eu mais gosto. Quando vi aquele espaço lá em baixo percebi que podia revolucionar isto e aceitei fazer o negócio. E quais os valores envolvidos nesta venda? “Comprei as dívidas, cerca de 100 mil euros, assegurei a permanência dos sete empregados.” Portanto a Ferin vai manter-se como livraria? ” Não. A Ferin vai manter-se como três livrarias”, declara.
A nova vida da mais bela livraria de Lisboa
José Pinho não segue a cartilha do habitual secretismo português e declara abertamente: “A Ferin é a mais bela livraria de Lisboa, de tal maneira que estou a pensar em cobrar entradas como faz a Lello, no Porto”, diz com uma gargalhada irónica. “É que a Ferin não foi feita para ser uma livraria, era uma parte do convento, a arquitetura deste espaço é incrível, além de tudo o que ela contém de uma história com quase 200 anos. E é essa possibilidade de viver este espaço que quero dar ao público, por isso vou fazer mais duas livrarias na cave, abrir a porta que dá para a rua do Crucifixo, ter cá um bar e abrir também à noite para os mais variados eventos culturais. A abertura está prevista já para o dia 21 de Março.”
Conhecido pelo projeto de sucesso Ler Devagar, que ocupou vários espaços antes de se fixar na LX Factory, José Pinho é também o rosto do Festival Literário de Óbidos e, em breve, do Festival Literatura de Viagem, que terá lugar já em Abril, também em Óbidos. Ao Observador explicou que a Ferin antiga sofrerá algumas alterações em termos do seu catálogo: “vamos apostar sobretudo em livros traduzidos mas de autores portugueses e vamos manter os livros de nicho, como heráldica, história, etc. Mas o objetivo será atrair os turistas para descobrirem autores portugueses, por isso vamos apostar em traduções em inglês, francês, espanhol e italiano.”
As cidades são corpos insaciáveis de mudança por excelência, quem ler o Spleen de Paris de Baudelaire, percebe que a alma das cidades está em permanente transformação, que engole a tradição para a transformar noutra coisa em permanente evanescência. Mais sensível aos sinais do tempo do que às tradições e paixões do mundo livreiro José Pinho explica que o que “mais gosta é transformar os espaços e os modos de fazer as coisas”.
Assim, a nova Ferin vai contar com dois novos espaços: uma livraria generalista onde, à semelhança da Ler Devagar, terá fundos de catalogo e novidades e outra livraria com livros sempre em saldo e livros infantis. “Hoje nenhum espaço de livros se aguenta sem um bar de apoio, por isso vamos ter um, que vai estar aberto à noite tal como estas duas novas livrarias. Vamos ter ainda uma programação semanal intensa, que passa por concertos, sessões de poesia e teremos um ciclo de conferências em parceria com a editora Relógio d’Água”, informa José Pinho. “Isto implicará a contratação de mais gente”.
O empresário acredita que, tal como a Ler Devagar ajudou a dinamizar o espaço da LX Factory, a Ferin trará um novo público leitor à Rua nova do Almada… pelo menos até 2019.
“A Ferin é, como a maior parte das lojas históricas de Lisboa, um espaço alugado e agora está à espera que haja a prometida legislação do governo para proteger estes locais. Mas infelizmente a coisa está parada e as lojas vão fechando…”, confessa José Pinho, aparentemente especialista em lugares efémeros. A LX Factory também era um espaço temporário, com demolição agendada mas que a afluência de lisboetas, turistas e projetos inovadores tornou um lugar absolutamente emblemático da capital. Espera-se agora que a nova Ferin imponha à baixa lisboeta a contribuição para uma movida cultural.