910kWh poupados com a
i

A opção Dark Mode permite-lhe poupar até 30% de bateria.

Reduza a sua pegada ecológica.
Saiba mais

Discurso presidencial. O que disse Marcelo nas entrelinhas

Este artigo tem mais de 5 anos

Fez um discurso profilático contra populismos e nacionalismos e recusou estar a mandar recados. Mas enviou alguns. Aqui pode ler os comentários de Vítor Matos ao que o PR quis dizer.

i

MIGUEL A. LOPES/LUSA

MIGUEL A. LOPES/LUSA

No seu segundo discurso em cerimónias do 25 de abril, poucos dias depois das eleições francesas, o Presidente da República focou-se nos fenómenos populistas e nacionalistas que têm assolado a Europa e o mundo, para os evitar por cá. Já tinha feito saber que seria mais ou menos inócuo de conteúdo, sem recados ao Governo e aos partidos. No entanto, não se pode considerar inócuo aquilo que Marcelo Rebelo de Sousa foi hoje dizer na Assembleia da República, onde podemos desde logo notar duas ausências: deixou de apelar a consensos e não falou da União Europeia.

O que é que o Presidente disse? E o que se pode ler nas entrelinhas das principais passagens que aqui reproduzimos?

Faz, hoje, exatamente quarenta anos que, pela primeira vez, aqui, nesta casa da democracia, se iniciou (…) a celebração do 25 de Abril (…). E a dúvida que, de quando em vez, ouvi suscitar, a tantos dos meus jovens alunos foi esta: faria ainda sentido uma cerimónia de mera rotina, num claustro fechado (…) e repetir os argumentos do confronto político e cada instante, nalguns casos pontuado por avisos ou mesmo quase ultimatos presidenciais?”

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Marcelo Rebelo de Sousa começa por questionar a própria natureza da cerimónia, e dá logo no início a entender que não fará um discurso de recados ou críticas ao Governo. O Presidente recorda-se dessa primeira comemoração de há 40 anos e sabe que nesse discurso, o então presidente Ramalho Eanes arranjou o primeiro sarilho coabitacional com o Governo socialista de Mário Soares. Foi no 25 de Abril que Jorge Sampaio fez o discurso do "há mais vida para além do défice". E o último discurso de Cavaco Silva durante o mandato de José Sócrates também foi muito duro.

“Estes tempos são, amiúde, de substituição de substância pela forma, do estudo e da qualificação pelo improviso e a superficialidade, de carreiras laborais expedientes de ocasião, do debate de ideias por proclamações básicas, dizendo o que se pensa ser aprazível ao ouvinte e não o que deve ser dito. É por tudo isto, e mais a contingência de este empobrecimento ético e ético e doutrinário abrir caminho a radicalismo egoístas e excludentes, racismo e xenofobia, messianismos que da democracia apenas gostam de usar o que lhes convenha — que faz sentido manter viva esta tradição. Hoje, mais do que nunca. (…) Há datas, como a do 25 de Abril, que nunca serão indiferentes ao nosso destino coletivo”.

Sendo um homem que viveu nos velhos jornais, o Presidente acha que as redes sociais -- embora não as mencione -- e a velocidade a que se transmite a informação hoje na internet, são aspetos que não contribuem para que haja alguma profundidade na discussão política e na perceção das pessoas. Por isso, ao contrário dos seus alunos, acha que faz cada vez mais sentido manter as cerimónias tradicionais em que se comemora o regime democrático. O Presidente pensa que o empobrecimento e simplificação do discurso ajuda os populistas e xenófobos. Há muitos anos que se preocupa com a forma como a linguagem se vai aligeirando, mesmo nas elites. Este é Marcelo na sua versão mais institucional.

[Esta é uma forma de] confirmar que preferimos a democracia — apesar de imperfeita, injusta ou incompleta – à mais sedutora das miragens ditatoriais. Reforçar que é, precisamente, porque, entre nós, há tanta diversidade e tão vigorosos combates políticos, que o nosso sistema de partidos é dos mais estáveis na Europa, não deixando espaço a riscos anti-sistémicos conhecidos noutras paragens. (…) Neste tempo dos chamados populistas anti-institucionais, dos tropismos anti-sistémicos (…) queremos viver em democracia, sabemos que ela tem de ser mais livre e mais justa.

Que a democracia é incompleta e imperfeita já se sabe, por ser famosa a frase de ser o pior dos sistemas à exceção de todos os outros. Já não faz assim tanto sentido dizer que são os "vigorosos combates políticos" que tornam Portugal num sistema estável. Aliás, a violência de alguns dos debates parlamentares este ano poderiam ser pasto para populismos anti-sistema que não existem ainda por aqui. Ambíguo como sempre, Marcelo parece usar a sua velha técnica de fazer elogios com o objetivo de gerar desconforto aos sujeitos do elogio, ao dizer que não há espaço "a riscos anti-sistémicos" em Portugal. Não há à direita (por enquanto), mas eles existem à esquerda. O Presidente sabe que o PCP e o BE são partidos "anti-sistémicos" (o que significa anti-UE e anti-euro), mas parece com esta frase fazer uma pequena provocação. Se aqui PCP e BE não representam um risco quando apoiam um Governo centrista, europeísta e eurista, isso significa que estão domesticados ou que o seu radicalismo é irrelevante.

Os portugueses constroem a Democracia quando, ao fim de anos de sacrifício, sentem que valeu a pena tudo terem feito para sanear as finanças públicas ou tornar possível crescer e criar emprego de forma duradoura e criar condições para se reduzir a dívida que têm sobre os seus ombros, revelando resistência e constância exemplares.

De forma muito subtil, elogia o anterior Governo, liderado por Pedro Passos Coelho -- e a forma como os portugueses aguentaram -- e de maneira ainda mais subtil critica os ataques da esquerda às decisões tomadas nos difíceis anos da troika. No fundo, enaltece o facto de os portugueses não terem entrado numa deriva populista contra o poder político, uma vez que a coligação que governava até foi a força mais votada nas eleições de 2015, não transformando os sacrifícios em voto de protesto puro e duro, como aconteceu noutros países.

Há duas maneiras muito diferentes de se amar a nação.
Uma — a que infelizmente, vai grassando noutras sociedades é a de se dizer nacionalista contra o mundo, contra os que não são dos nossos, rejeitando e excluindo, vivendo em medo permanente perante tudo e todos. Outra — a nossa — (…) é a de amar a Nação de coração aberto, de alma universal. Um nacionalismo patriótico e de vocação universal, não um nacionalismo egocêntrico, agarrado a um pretenso passado, recriado porque não real e insuscetível e enfrentar o futuro.”

Aqui Marcelo tenta fazer pedagogia no sentido de que se pode ser patriota sem se ser nacionalista. Mas ao invocar esta natureza universalista do patriotismo português, o Presidente parece basear-se nas mesmas premissas que serviam para justificar o velho Portugal do Minho a Timor ou para difundir a ideia de que o colonialismo português era melhor do que os outros. Marcelo é filho de um ex-ministro do Ultramar e de certeza que não teve a intenção que se fizesse esta interpretação das suas palavras.

Importa que todas as estruturas do poder político, do topo do Estado à administração pública e, naturalmente, aos tribunais, entendam que devem ser muito mais transparentes, rápidas e eficazes na resposta aos desafios e apelos deste tempo, revendo-se, reformando-se ajustando. Os chamados populismos alimentam-se das deficiências, lentidões, incomepetências e das irresponsabilidades do poder político. Ou da sua confusão ou compadrio com o poder económico e social.

É a parte mais importante do discurso no que se refere à reflexão sobre o sistema e o regime. São recorrentes os casos de falta de transparência na administração pública e no poder político. Mas no caso dos tribunais, a lentidão ou as deficiências podem ajudar a desencadear os populismos que Marcelo deseja evitar. Sem citar casos concretos, o discurso do Presidente leva-nos a pensar de imediato no caso Sócrates que está a resvalar prazos, e sem a certeza de que haverá uma acusação sólida. Quanto a compadrios com o poder económico, daquilo que se sabe os casos Sócrates e BES também são exemplares. Nesta passagem, o Presidente identifica onde está a crise do regime e onde estão os maiores perigos para a democracia em Portugal, assim como os pontos a que a opinião pública é mais sensível.

Há, neste contexto, um bastião da nossa democracia que merece, hoje, na evocação do 25 de Abril, uma palavra muito especial: o poder local. (…) Já disse e repito — o poder local foi e é um fusível de segurança singular da nossa democracia.

Marcelo é um municipalista, que na juventude chegou a defender a regionalização do Continente, uma ideia de que veio a afastar-se mais tarde. Em ano de eleições autárquicas, a referência ao poder local era obrigatória. Mas num momento em que o PCP tenta colocar a regionalização de novo na agenda para pressionar o PS, o Presidente reforça a importância das autarquias, embora também reconheça, noutra passagem, que o poder local "não é isento de problemas e defeitos"

Os dois anos e meio que faltam para o termo da legislatura parlamentar terão de ser de maior criação de riqueza e melhor distribuição. Governo, seus apoiantes e oposições, que legitimamente aspiram a voltar a governar, estarão, por certo, atentos a este imperativo, na multiplicidade enriquecedora das suas opções.

É o único recado direto ao Governo e à chamada "geringonça", com um gato escondido: fala dando a entender que a legislatura vai mesmo até ao fim. Já não é a primeira vez que Marcelo faz este apelo, mas esta referência demonstra qual é a prioridade do Presidente: o crescimento económico e a justiça na distribuição da riqueza. Não fala no défice, nem dá os parabéns ao Governo por ter o "mais baixo défice da democracia". Não acentua que há um problema com a dívida. Não diz que os juros da dívida devem baixar para níveis espanhóis ou irlandeses. Não aponta para a classificação do rating das agências de notação financeira. Para Marcelo, o crescimento resolveria parte destes problemas, embora seja preciso dar atenção à forma como depois essa riqueza é distribuída, e aqui se revela a sua faceta social-democrata.

Somos uma pátria em paz, com apreciável segurança, sem racismo e xenofobia de tomo, aceitando diferenças religiosas e culturais como poucos, com rede de instituições sociais devotada, Poder Local incansável e sistema político flexível, mesmo se carecido de reformas, mais mais sustentável do que muitos outros nossos parceiros europeus. (…) Não trocamos o certo pelo incerto, não sacrificamos um democracia, ainda que imperfeita, seduzidos por cantos de sereia de amanhas ridentes, em que do caos nascerá o paraíso.

No fim da sua intervenção, Marcelo deixa uma nota de otimismo do ponto de vista daquilo que é o país -- tolerante e seguro. No entanto, identifica a necessidade de reformas no sistema político, embora deixe tudo em aberto sobre quais deveriam ser essas mudanças (se os partidos quiserem, podem abrir um processo de revisão constitucional, mas isso o PR não diz). Finalmente, critica aqueles que defendem o "caos" e aí parece estar a referir-se aos que desejam a saída da UE ou do euro, como caminho para o Paraíso. Mais uma vez, parece ser a esquerda um alvo das subtilezas presidenciais. Pode-se dizer que Marcelo fez um discurso de regime, a defender a democracia, exorcizando as tendências estrangeiras -- os populismos e os nacionalismos -- que não entraram ainda pelas nossas portas. Ao mesmo tempo, coloca PCP e BE mais próximos daquilo que ele acha ser o lado errado da história.

Ofereça este artigo a um amigo

Enquanto assinante, tem para partilhar este mês.

A enviar artigo...

Artigo oferecido com sucesso

Ainda tem para partilhar este mês.

O seu amigo vai receber, nos próximos minutos, um e-mail com uma ligação para ler este artigo gratuitamente.

Ofereça até artigos por mês ao ser assinante do Observador

Partilhe os seus artigos preferidos com os seus amigos.
Quem recebe só precisa de iniciar a sessão na conta Observador e poderá ler o artigo, mesmo que não seja assinante.

Este artigo foi-lhe oferecido pelo nosso assinante . Assine o Observador hoje, e tenha acesso ilimitado a todo o nosso conteúdo. Veja aqui as suas opções.

Atingiu o limite de artigos que pode oferecer

Já ofereceu artigos este mês.
A partir de 1 de poderá oferecer mais artigos aos seus amigos.

Aconteceu um erro

Por favor tente mais tarde.

Atenção

Para ler este artigo grátis, registe-se gratuitamente no Observador com o mesmo email com o qual recebeu esta oferta.

Caso já tenha uma conta, faça login aqui.