Toda a gente sabe que os convertidos são sempre os mais fanáticos. Este ano, com a vinda do Salvador, foram muitas as almas que, após anos de afastamento do caminho da verdade e das lantejoulas, voltaram ao seio da congregação eurovisiva, onde foram acolhidas sem rancor pelos seus irmãos que nunca abandonaram o ritual de, numa certa tarde de Maio, ligarem o televisor e assistirem com os corações em chamas às actuações de cantoras azerbaijanas seminuas, de transexuais israelitas ou de metaleiros finlandeses (mas que cantavam um bem sonoro “Hallelujah!”). E são estes irmãos regressados ao nosso convívio que manifestam desagradáveis sintomas de superioridade moral e musical, como se dissessem “agora, sim, vale a pena ver esta merda da Eurovisão”.

E lançam-se em panegíricos ao pobre Salvador, à música da Irmã Luísa (abençoado seja o ventre onde fermentam tão doces melodias), aos acordes e aos arranjos, ao estilo jazzístico, a Cole Porter e a George Gershwin, a Jobim, Djobá, cada dia yo te quiero más, à Bossa Nova, à Boa Nossa e à Boa Nova salvadorenha! E não é que o Salvador canta em português e agradece em português? Ah, valente defensor da língua pátria!!! Todos os outros cedem à hegemonia do inglês, menos o nosso Salvador que, no ano da graça de 2016, lançou o álbum “Có licença”, perfidamente transformado pelos capitalistas anglo-saxónicos das companhias discográficas em “Excuse me”. Também a Irmã Luísa, se a memória não me falha, já cantou qualquer coisinha em língua de bárbaros, mas o que interessa é que, chamados a representar a Lusitânia, optaram pela língua portuguesa. E se Olavo Bilac (o verdadeiro) chamava à nossa língua “a última flor do Lácio”, esta letra é bem uma das derradeiras pétalas dessa derradeira flor, apesar da predominância das rimas pobres. Tem emoção, sentimento e vapor de água!

E a simplicidade, santo Deus, a simplicidade! Os convertidos e re-convertidos à Eurovisão não se cansam de elogiar a economia de meios, a ausência de espalhafato, numa espécie de puritanismo musical em que quase se chega ao ponto de criticar o acompanhamento instrumental, o microfone e a transmissão televisiva de uma actuação tão pura, anterior ao pecado original. Para fazer justiça à sublime pureza da canção, Salvador devia cantar numa capela da Arrábida ou no cimo de uma azinheira, rodeado por uma corte de anjos que logo voariam céleres para dar ao mundo notícia do prodígio e instar a humanidade a receber o Ungido não com folhas de palmeira, mas com televotos.

A Europa nunca viu nada assim, a Eurovisão certamente que não, o mundo está abismado, gritam eles, enquanto vituperam os outros participantes, os seus fatos de plástico e as suas canções mecânicas, os tules de patinagem artística, a música de carrinhos de choque, os penteados estratosféricos, os macacos transalpinos, os decotes com que lascivas cantoras de Leste tentam subornar os espíritos dos votantes imaculados do resto do continente, e se indignam com a participação australiana, – “a última vez que vi, a Austrália ainda não era na Europa” – dizem, impantes de geografia, mas nunca fiando que isto da deriva dos continentes é ciência.

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Finalmente, depois de anos de derrotas e vergonhas, metemos uma lança em África, que é como quem diz, um Bach na Europa, um Debussy de lusitana extração nas fuças destes pindéricos, arménicos, letónicos, cipridiotas, grécios, néscios e corrécios, que estão a viver a década de 80 com trinta anos de atraso. Nós há muito que saímos desse purgatório de sintetizadores e laca, meus amigos! Refinámo-nos e agora estamos na moda! Somos cool! Temos o melhor jogador do mundo, a melhor praia do mundo, as melhores cidades do mundo, o melhor terço do mundo, o melhor presidente do mundo, a melhor geringonça do mundo, o melhor Passos Coelho do outro mundo e, como reserva, um Éder no banco se isto só resultar a golpes de sobrenatural. Temos tanta coisa que nos damos ao luxo de ir à Eurovisão e não levar uma música festivaleira e criticar as músicas festivaleiras dos outros. Estamos num tal estado de acerto e húbris que mandamos para lá um cantor que se gaba de nunca ter visto o Eurofestival (apesar de ter concorrido ao Ídolos), distraído em Maiorca a ler a biografia de Chet Baker e a estudar pautas no Hot Clube, e ainda assim, pela primeira vez, somos dos favoritos a ganhar o certame.

Na nossa primeira participação no festival, enviámos como representante um Calvário, a chorar pungentemente uma “Oração”. Acabou vaiado (por razões políticas), sem votos e num desonroso 13.º lugar. Este ano, como prova a falange de recém-convertidos, ninguém espera o caminho do Calvário, mas a vitória do Salvador. Este sábado, entre as hóstias de Fátima e as bifanas do Marquês, os portugueses encontrarão tempo para se juntarem à volta do televisor, como faziam os seus primitivos compatriotas de antanho. Desta vez a cores e com aquela inebriante e trágica sensação de invencibilidade.

Bruno Vieira Amaral é crítico literário, tradutor e autor dos romances “As Primeiras Coisas” (vencedor do prémio José Saramago em 2015) e “Hoje Estarás Comigo no Paraíso”.