Portugal não deve fazer esforços para reduzir o défice mais rapidamente, diz o ex-economista-chefe do Fundo Monetário Internacional, Olivier Blanchard, defendendo que não só essa consolidação traria poucos resultados para reduzir o nível de dívida pública, como até a podia aumentar em termos reais. Blanchard diz que o Governo podia até permitir a subida do défice público, desde que a despesa pública fosse usada para financiar reformas estruturais e para limpar o crédito malparado e recapitalizar os bancos.

Há dez anos, o francês que veio a tornar-se no economista chefe do FMI entre 2009 e 2015 – coincidindo com o resgate a Portugal -, foi convidado a fazer uma análise da economia portuguesa. Na altura, ainda antes de se conhecerem as crises que viriam a afetar a economia mundial pouco tempo depois, o cenário traçado foi negro: sem grande mudanças, havia poucas razões para estar otimista. Pela frente, a economia portuguesa teria um longo e doloroso processo de ajustamento.

Dez anos depois, duas crises, um resgate e um longo e doloroso ajustamento depois, Olivier Blanchard, agora em parceria com o economista do Banco de Portugal Pedro Portugal, voltaram a analisar a economia portuguesa e, apesar de o diagnóstico não ser muito diferente, sugerem agora uma abordagem completamente oposta à seguida nos últimos anos, inclusivamente a sugerida pelo FMI da qual próprio Blanchard foi uma parte fundamental.

De acordo com os dois economistas, Portugal está a crescer muito abaixo do seu potencial e, em termos reais, muito pouco. Precisa de crescer muito mais para que o efeito faça descer a dívida pública e para que o desemprego baixe mais depressa.

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Os autores do estudo “Como dar força à retoma portuguesa” , apresentado esta sexta-feira numa conferência em Lisboa, defendem que o orçamento não pode ser contracionista, ou seja, que mais consolidação orçamental não é boa ideia devido ao baixo crescimento. O racional dos dois economistas é que apertar mais o cinto poderia fazer com que a economia praticamente estagnasse, com um impacto muito limitado na descida da dívida. Aliás, a dívida pública até podia subir em termos reais, caso o crescimento mais baixo provocasse uma desaceleração da inflação.

“Dada a baixa previsão de crescimento na ausência de consolidação orçamental, menos 1% de crescimento devido a mais consolidação orçamental pode significar um crescimento perto de zero, em troca de uma redução muito pequena no rácio da dívida face ao PIB. E, na medida em que o baixo crescimento pode levar a menos inflação, esta pequena redução no volume da dívida pode até ser ofuscada por um aumento no valor real da dívida.”

O estudo concorda com a necessidade da consolidação orçamental feita durante o resgate — apesar de os autores incluírem uma nota de rodapé para clarificar que não pretendem discutir se a dimensão aplicada durante o resgate se justificava -, mas dizem claramente que nesta altura, a situação não justifica maiores esforços.

“Há situações em que a consolidação orçamental é necessária apesar do custo para o crescimento, nomeadamente quando os investidores começam a duvidar da sustentabilidade da dívida; foi esta a motivação por detrás da forte consolidação de 2009 em diante. No entanto, as circunstâncias são diferentes atualmente, e não justificam uma consolidação orçamental mais acelerada”, dizem. Reduzir o rácio da dívida face ao PIB será sempre “um processo muito lento” e para que isso venha a acontecer “a prioridade deve ser aumentar o crescimento, cíclico e potencial”.

Mais défice pode ser boa ideia. Mas para quê?

Apesar de o Governo continuar a apertar o cinto – o plano no Programa de Estabilidade é que o orçamento seja contracionista, em contra ciclo, para conseguir um excedente em 2021 -, Olivier Blanchard e Pedro Portugal defendem que a subida do défice nesta altura até pode ser justificável. A economia portuguesa precisa de aumentar o seu potencial de crescimento e para isso, faria sentido aumentar o défice, desde que para financiar reformas, aumentar o investimento e, mais importante, financiar os bancos.

O elevado nível de crédito malparado no balanço dos bancos é um dos problemas a que os autores dedicam mais atenção. A economia precisa de mais investimento, público e privado, para acelerar. Mas para que isto aconteça, os bancos têm de ter mais capacidade para financiar as empresas. E para tal, é preciso limpar os seus balanços, dos empréstimos de má qualidade, e reforçar o seu capital, mesmo que não seja possível fazê-lo através de fundos privados ou até fundos europeus.

“Achamos que a melhor ferramenta à disposição é limpar o crédito malparado do balanço dos bancos, recapitalizá-los adequadamente e, ame alguns casos, mudar o seu modelo de governação. (…) Apesar de a melhor opção ser que os fundos para recapitalizar os bancos fossem ou do setor privado ou da União Europeia, acreditamos que há um caso forte para financiar [estas recapitalizações] através de dívida pública doméstica”, dizem.

“O efeito no total de crédito concedido, e por sua vez no investimento e crescimento das PME seria provavelmente substancial. Por isso, mesmo que esta medida seja financiada através de dívida pública, é provável que o efeito na procura da maior oferta de crédito exceda largamente o efeito adverso do aumento da dívida pública através de maior despesa pública”, acrescentam.

A criação de uma solução nacional para acelerar a eliminação de empréstimos problemáticos tem sido defendida pelo Banco de Portugal e pelo Governo, mas o destaque destes ativos para um veículo, que hoje geram perdas para os bancos, iria criar necessidades adicionais de capital. E quem financia? Investimento privado não chega, o investimento público também é limitado e enfrenta grandes restrições nas regras europeias.

A par de um esforço financeiro adicional no setor, os economistas propõe também mudanças no modelo de governo dos bancos para que os problemas do passado, como a concessão de crédito a empresas zombies, não se repitam.

Olivier Blanchard e Pedro Portugal sugerem ainda que este aumento do défice pode ser usado para aumentar o investimento público, como eventuais compensações a alguns setores para que estes aceitem reformas politicamente pouco apelativas. Lembrando algumas escolhas do passado – como o TGV e aeroportos -, opções que considera erradas e que podem preocupar os investidores, os economistas defendem ainda assim que é “desejável e justificável” que o investimento público aumente, lembrando que caiu de 5% do PIB nos anos 90 para 1,5% no ano passado.

Mas a solução de entrada de dinheiros públicos nos bancos não é em si a solução. De acordo com o economista francês, numa conversa com os jornalistas prévia à apresentação do estudo, o que os economistas defendem é que a limpeza do balanço dos bancos seja feita para libertar financiamento para empresas viáveis, que atualmente está preso em empresas ‘zombie’. Na opinião de Olivier Blanchard, os bancos devem precisar de aumentar o seu capital porque estes créditos estão avaliados de forma demasiado generosa, mas a maior parte dos bancos deve conseguir aumentar o seu capital com recurso a fundos privados, seja dos acionistas ou pela emissão de novas ações.

“É uma solução de último recurso. O que eu quero é que o crédito malparado seja reduzido de forma eficiente e substituído por empréstimos a empresas que possam crescer, em vez de a empresas zombie“, disse o ex-economista-chefe do FMI.

O exemplo da UBER

Olivier Blanchard defende que parte do aumento do défice pode ser usado para compensar quem fica a perder com algumas das reformas que podem ser boas para a economia e dá o caso da UBER e dos taxistas. O ex-economista do FMI diz que as reformas podem trazer bons resultados para a economia e até pode ser uma maioria a beneficiar dessas reformas que considera necessárias, mas há grupos que são prejudicados, como é o caso dos taxistas que tiveram de comprar licenças de preços muito elevados e que perdem o valor a partir do momento em que o setor é, de uma certa forma, liberalizado.

“O Uber é melhor que os taxis. Mas os taxis perdem muito. Se não derem nada aos taxis e eles perderem o valor das licenças, vão acabar por ir para as ruas, ficarão sem emprego e terão muita dificuldade em passar as reformas. Pode fazer sentido dar-lhes alguma coisa, como parte do custo das licenças que estes compraram. Pode custar dinheiro. É boa ideia fazê-lo? Sim, é boa ideia fazê-lo. [Em França] querem fazê-lo dentro dos regras do Pacto de Estabilidade e Crescimento, basicamente compensar quem perde. Algumas destas reformas claramente podem ajudar muitas pessoas, mas há um grupo que será claramente afetado negativamente. Porque não, usando esta palavra, suborná-los? Digo isto no bom sentido”, disse o responsável

Emprego? Mais flexibilidade, mas calma

O mercado laboral não podia deixar de constar do elenco das reformas estruturais propostas pelos autores do estudo. Blanchard e Portugal assinalam que a necessidade maior flexibilidade nas regras laborais tem sido “um mantra repetido pelas organizações internacionais” e distinguem duas dimensões do problema.

Recuperando um conceito que fez algum furor em Portugal na década passada, a flexisegurança, defendem um modelo que combine flexibilidade para os empregadores com a segurança para os trabalhadores, com o foco na variável da formação e requalificação.

O estudo destaca a grande dualidade do emprego em Portugal, entre os trabalhadores efetivos, que têm toda a proteção e formação, e os trabalhadores precários. Foram estes que pagaram o preço do ajustamento que as empresas tiveram de fazer no emprego durante a crise. E como são temporários, não recebem a formação que lhes permita sair do ciclo vicioso em que muitos estão.

As reformas devem ser orientadas para reduzir a assimetria entre estas duas classes de trabalhadores, o que pode passar por simplificar a proteção laboral, tornando os seus custos mais previsíveis, e pela alteração do modelo de formação profissional no sentido das necessidades das empresas, como consta do programa do presidente eleito em França, Emmanuel Macron.

Segundo Olivier Blanchard, nesta altura não faria sentido, por questões políticas e pelos ganhos já conseguidos de competitividade devido ao crescimento das exportações, fazer reformas profundas no mercado de trabalho, mas seria útil reduzir o fosso que existe na proteção no emprego entre os trabalhadores do quadro com maior antiguidade e a grande quantidade de pessoas sem qualquer proteção, precários, de forma a incentivar também as empresas a apostar nestes trabalhadores.

Reconhecendo que um dos principais problemas é o desemprego para os trabalhadores com baixas qualificações, o estudo alerta contudo para efeitos “adversos” do aumento do salário mínimo no emprego. E cita até um outro estudo de 2011, elaborado pelo atual ministro das Finanças, quando Mário Centeno estava no Banco de Portugal. Em 2016, o salário mínimo já estava perto do limiar dos 60%, a partir do qual os economistas acreditam que começa a ter efeito negativo. E o previsto aumento até 600 euros mensais em 2019 terá um impacto adverso, caso não seja acompanhado de uma redução das contribuições das empresas para a segurança social, medida que foi travada este ano pelo PSD, Bloco e PCP. O ex-economista do FMI, na mesma conversa com jornalistas, disse mesmo que aumentar o salário mínimo para os 600 euros como está previsto “seria perigoso”.

Já a segunda dimensão, a que o estudo chama “macro flexibilidade”, é em tese desejável e foi necessária em Portugal antes da crise. Em causa está a capacidade de ajustar salários e preços em relação a mudanças na competitividade e produtividade, o que foi feito. Mas a situação agora é diferente, sustentam os dois economistas.

“O desequilíbrio externo é substancialmente mais pequeno agora, portanto a necessidade de ajustamento é menor. E a dívida, em particular a dívida pública, é muito mais elevada, o que implica um efeito adverso mais forte dos preços baixos no valor real da dívida e da procura interna”. ( confere tradução na página 17).