A voz treme ao padre Júlio Santos durante a missa diária que se continua a celebrar na igreja de Nossa Senhora da Assunção, no centro da vila de Pedrógão Grande. A emoção obriga-o a fazer pausas mais longas do que as que o ritual exige, mas o silêncio é de imediato interrompido pelos voos rasantes dos aviões Canadair que continuam a combater as chamas em torno da povoação. Nas caras das duas dezenas de pessoas presentes na missa, que se realiza todos os dias às 10h00, lágrimas e desconsolo. Na homilia, há lugar a uma recordação das vítimas, pela voz embargada do padre Júlio.
“Há uma carga emocional maior. A mim vieram-me as lágrimas aos olhos várias vezes durante esta missa”, conta o sacerdote ao Observador, na sacristia da igreja paroquial, entre telefonemas constantes. “Esta noite até sonhei com telemóveis a tocar”, desabafa. O assunto é quase sempre o mesmo: os funerais de toda a gente que morreu no incêndio. O plano, para já, está traçado: os corpos das pessoas que morreram no incêndio deverão ser libertados até sexta-feira e a paróquia vai organizar uma celebração conjunta no próximo fim de semana, para “dar a solenidade devida a esta gente que morreu”.
De acordo com o sacerdote, deverá ser o próprio bispo de Coimbra, D. Virgílio Antunes, a presidir a essa missa. Nessa celebração, não deverão estar presentes os corpos, já que a igreja dificilmente teria espaço para os acolher. “Depois, em princípio, serão organizados os respetivos funerais. Ou eu ou um colega vizinho iremos acompanhar todos os corpos para os cemitérios. Alguns ficarão aqui no cemitério de Pedrógão Grande, mas a maior parte irá para a Graça e Vila Facaia, que foi onde morreu aquela gente toda“, conta.
Pároco de Pedrógão Grande, Vila Facaia e Graça, freguesias onde estão as aldeias mais afetadas pelas chamas, como Nodeirinho, o padre Júlio estima ter perdido para o fogo mais de 30 paroquianos. Debaixo da alva branca, veste t-shirt e ténis. “Ando assim mais desportivo porque vou já continuar a visitar os lugares aqui à volta”, explica. O sacerdote anda desde domingo à tarde a tentar contactar com todas as pequenas aldeias em torno de Pedrógão Grande. Na segunda-feira, o próprio bispo de Coimbra deslocou-se à paróquia e visitou vários lugares “para contactar as pessoas pessoalmente, dizer-lhes que estejam atentas umas às outras e que nos digam de que precisam”.
No momento em que deflagrou o incêndio, o padre Júlio estava em Leiria, num retiro. Assim que soube da notícia, telefonou a padres vizinhos a pedir-lhes que viessem a Pedrógão Grande ver como estava a situação. “Mas eles também não conseguiram vir, porque estavam as estradas todas cortadas”, recorda. O sacerdote acabou por conseguir chegar a Pedrógão Grande no domingo a meio da tarde, dando “uma grande volta por Ferreira do Zêzere, que passado pouco tempo também já estava a arder”.
“Há sentimentos que não se descrevem. O meu desejo naquele momento era contactar com os meus paroquianos, saber como eles estavam. Não tínhamos contacto com ninguém, não havia comunicações”, lembra o padre. Logo que chegou, meteu mãos à obra e começou a tentar chegar onde era possível. “Tenta-se fazer o melhor possível, tenta-se estar ao pé das pessoas. Era isso que Jesus Cristo faria e é isso que o padre que cá está tem de fazer”, assegura.
Júlio não tem grandes palavras para dizer quando chega às povoações da sua freguesia. Mas também não precisa delas. “O que as pessoas precisam é de afeto, não é de palavras. Estão isoladas. Quando lá vou, abraçam-se a chorar a mim. Precisam, neste momento, de apoio moral, de alento, de saber que há pessoas a quem podem recorrer”, afirma, sublinhando que “é importante procurar estar atento ao vizinho, porque é mais fácil o vizinho saber o que o outro precisa.
Enquanto não são libertados os corpos das vítimas que morreram carbonizadas, e que foram transportadas para Coimbra, já há alguns funerais a fazer: os de quem acabaria por morrer no hospital depois de ter ficado ferido, e que, por isso, já estava identificado. “Vão ter de vir outros padres ajudar”, atira o padre Júlio, que garante que os próximos tempos não vão ser fáceis na paróquia. “Isto agora está complicado”, vai respondendo aos paroquianos que lhe aparecem na sacristia para tratar de vários assuntos.
Natural de uma das aldeias próximas de Pedrógão Grande, “onde dizem que o fogo começou, mas isto não se pode confiar no diz que diz”, o padre Júlio mostra-se fragilizado, mas vai tentando dar resposta às exigências — e ao telemóvel, que continua a tocar insistentemente. Mas, primeiro, as pessoas. E despede-se assim: “Agora vou visitar as aldeias onde ainda não fui”.