Maria Edite está sentada na berma da estrada, cabisbaixa, em silêncio. Tem 53 anos. Espera. Não sabe ao certo por quem — talvez a Segurança Social, talvez um veterinário que leve os animais mortos –, não sabe quando chegará quem a ajude, que lhe pergunte do que precisa, mas espera. Perdeu praticamente tudo. Salvou-se ela, o marido, o filho e a nora — e só tem a roupa que hoje veste. Atrás dela, lá no cimo, a casa térrea não é mais uma casa, o cinza do cimento fez-se fuligem, negra, janelas não há mais, bem como não há portas nem divisórias no interior, apenas destruição, fumo, memórias do que outrora foi um lar.

A casa de Maria Edite é a última casa da Rua Padre Américo em Vale da Nogueira, a mais isolada de todas, entre pinheiros altos e arbustos que também arderam de sexta-feira para sábado.

Não chora. O que tinha que chorar, chorou nas últimas noites, sempre sem dormir, despertando hora a hora em sobressalto, atormentada pelo “inferno” – assim descreve o fogo e a luta que travou com ele. “Perdi tudo. [Suspira] Perdi tudo… A casa, os eletrodomésticos, a roupa, a comida, os animais – só os dois cães é que fugiram e não morreram no fogo –, ainda consegui retirar daqui dois carros mas arderam-me as alfaiais todas, o meu marido está todo queimado nas mãos e na cara. Não tenho documentos nenhuns. Perdi tudo.”

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Tantos dias depois ainda não consegue entender o que se passou em Vale da Nogueira. Nem a rapidez com que se passou. “Como é que foi? Foi um inferno. O fogo estava lá longe, em Derreada. Às três e meia da tarde ainda estava lá longe. Ao começo da noite estava aqui em cima de mim. A noite toda! Liguei para os bombeiros, fartei-me de ligar, mas ninguém me atendia. E não apareceu cá um único bombeiro na sexta-feira e no sábado. Ficámos entregues à nossa sorte. E não morreu ninguém aqui porque não tinha que morrer ninguém. Mas podia ter morrido. Podia…”

Hoje vive em casa da irmã. Até ver. À sua não pode regressar tão cedo. Talvez até nunca regresse. Maria Edite arrasta a custo a porta metálica da entrada, ruidosamente e empurrando entulho para dentro, avançando até ao fundo de um corredor onde nada, molduras na parede, móveis, um eletrodoméstico – talvez uma arca frigorífica? –, é reconhecível. “Vê: nada, não há nada. Aqui era o quarto da minha filha – onde ela ficava quando me vinha visitar. Aqui ao lado vivia o meu filho e a minha nora. A casa era pequenina mas era nossa. O telhado está partido, as paredes estão partidas; isto agora é chegar uma máquina, deitar tudo abaixo e começar outra vez. Não há solução”, explica.

Mas o dia do incêndio não foi apenas infernal (e interminável; “Não sei quantas horas durou”) para Maria Edite. Também a irmã, igualmente moradora em Vale da Nogueira, sofreria noite dentro com o incêndio de Pedrógão Grande. “É em casa da minha irmã que tenho passado as últimas noites. Mas ela também é pobre, a casa é pequena, o fogo chegou lá perto – e até fez derreter os estores –, não me pode sustentar para sempre. Ela vende nas feiras, eu faço limpezas, nenhuma de nós tem um ordenado e não sabemos como nos vamos governar agora. Mas aquela noite do incêndio foi muito má: ela faz a diálise e sentiu-se mal com o fumo, vive também lá um irmão que é deficiente, e mesmo tendo ligado para o INEM ninguém os veio cá tirar — teve que ser a minha filha, que chegou entretanto, a levá-los aos bombeiros de Pedrógão no carro dela”, conta.

Agora, precisa de tudo. “Água, comida, roupa. Não tenho nada. Só o que trago vestido e você está a ver. Naquela manhã até matámos um porco que está acolá em cima. Depois veio o fogo e estou à espera que um veterinário venha cá tirar o porco. Começa a cheirar mal. [O odor do animal, esturricado pelo fogo e a apodrecer, é fétido, estando rodeado de moscas e larvas.] Houve aqui um incêndio uma vez, vinha das Salzedas, mas nesse dia os bombeiros apareceram. Salvou-se tudo. Agora não salvou nada”.

Volta a sentar-se na berma da estrada. E espera. Mal se escuta o passar de automóveis na Rua Padre Américo.