O sonho de qualquer aspirante a rock’n’roller: começar um concerto com a guitarra num feedback perfeitamente controlado, a dizer que o que vem aí é tempestade. Que ninguém fuja mas que todos tenham medo. Entra Camille Berthomier, a vocalista que é muito mais que isso, ao pé dela vocalistas somos nós todos. “I am here, I am here”, ela vai devorar-nos de um só golpe, neste punk dos infernos. E se não sabiam fica aqui dito: no inferno toda a gente veste de preto.

“Estamos aqui durante uma hora”. Lábios vermelhos, a mesma cor dos saltos altos, o baixo e a bateria a marcar um compasso tenso, a trabalhar as canções como se fossem rituais. Perguntam-nos vez após vez, “estão prontos?”. Não, não estamos nada prontos, mas não é essa a parte boa? Esta sessão de porrada coletiva, de bofetada consentida, não é essa a ideia? Precisamos de divindades do rock assim, precisamos que nos indiquem um qualquer caminho, nem que seja durante uma noite. Alguém que se atire para a frente do multidão e a faça gritar. Alguém que cante “when in love” com o mesmo tom de quem conta uma história de terror.

“Foi no Porto que a ideia para o segundo álbum surgiu”, dizem. “Foi aqui que gravámos um vídeo”, lembram. Elas não querem morrer por nós, nada disso. Isto aqui tem sotaque de amor verdadeiro e agradecer é sempre pouco. Mas vá, é tudo amor sem beijinhos, é romance sem festinhas. De volta ao feedback do início: todos lembrados? Pois bem, foi o único momento de preliminares a que tivemos direito. A partir daí é puxar cabelos e virar peças de roupa.

Cada canção é menos pacífica que a anterior, cada canção que se segue é mais suada que aquela que acabámos de ouvir, a guitarra está mais distorcida, o mosh é cada vez mais agressivo, aquele baixo come-nos a planta dos pés cada vez mais depressa. Camille sabe o que se passa do lado de cá. Nada disto é inocente, muito menos quando nos pergunta se queremos mais. Alguém que lhe agarre nas pernas que ela vai lançar-se sobre a multidão. Alguém que lhe ampare o corpo que ela vai andar sobre todos nós. Os ídolos fazem-se assim, os ídolos alimentam-se de tudo isto. Confirmado: se somos carne para canhão, então que assim seja. Uns gritam, outros aplaudem, muitos filmam e fotografam, tantos como os que apenas observam, pasmados, enquanto estas quatro tomam conta da nossa vida. Diziam elas que ia ser durante uma hora? Parece muito mais porque mal respiramos, parece muito menos porque nem vimos os murros chegar, caímos no tapete sem aviso nem misericórdia.

As Savages já nos visitaram antes. Mas é sempre melhor, há sempre mais, há sempre algo que nunca vimos nem ouvimos, há sempre mais um golpe para levar em cheio, há sempre mais medo a ter de uma bateria que parece varrer o mundo canção a canção. Tudo para levar os servos desta gente a gritar “I adore life” como se fosse a frase mais violenta que temos à nossa mercê.

Elas têm mais seis minutos, só mais uma canção, “don’t let the fuckers get you down”. E ninguém ali acredita que este festival possa dar-nos um concerto melhor que este. Ninguém.

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