Francina Blankers-Koen participou pela primeira vez nos Jogos Olímpicos, em 1936. Era dada como favorita no concurso do salto em altura mas ficou-se pelo quinto lugar, a mesma posição com que terminou a estafeta de 4×100 metros. Tinha apenas 18 anos, mas ganhou a sua “medalha”: conseguiu um autógrafo de Jesse Owens, o maior herói de Berlim. A II Guerra Mundial acabou por impedi-la de provar a capacidade de progressão demonstrada nos Europeus de Viena (dois bronzes), mas apareceu com 30 anos nos Jogos de Londres, em 1948. Não mais essa presença foi esquecida.

Fanny, como também era conhecida, ganhou quatro medalhas de ouro na capital inglesa e tornou-se a única mulher a conseguir tal feito numa só edição: 100 e 200 metros, 80 metros barreiras e 4×100 metros. E só não foi (e provavelmente ganhou) o salto em altura e o salto em comprimento porque a ordem do calendário não deixava que competisse nessas provas. A holandesa teve uma história que fez com o público ainda se apaixonasse mais por ela: “fugiu” da jardinagem e da costura para apostar no atletismo quando acabou a primária; era um exemplo de fair-play; teve uma infeção no sangue que lhe retirou o sonho de chegar aos Jogos de 1952.

“O estilo e o corpo dela fazem-me lembrar a minha mãe”, comentou recentemente Jan Blankers, filho de Francina Blankers-Koen, a propósito de Dafne Schippers. Melhor elogio, é impossível.

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Com a vitória nos 200 metros dos Mundiais, a holandesa de 25 anos tornou-se apenas a terceira atleta a revalidar o título na distância, depois de Merlene Ottey e Allyson Felix, e a terceira a ganhar medalhas nos 100 e nos 200 metros na mesma edição, tal como Ottey e Gwen Torrence. Venceu, com a melhor marca do ano (longe da marca que fizeram em 2015, de 21,63), Marie-Josée Ta Lou, que bateu o recorde nacional da Costa do Marfim (22.08) e Shaunae Miller-Uibo (22.15), a atleta das Bahamas que tinha o ouro na mão na final dos 400 metros mas deixou-o fugir com problemas musculares que quase a impediram de correr nos últimos 30 metros. E está vingada a derrota frente a Elaine Thompson nos Jogos de 2016.

Ao contrário do que se costuma ver, onde alguns atletas nem se podem ver à frente mas tentam disfarçar esse ódio em termos públicos, Schippers assumiu este ano que “a relação com Thompson é muito má”. “Não sei porquê. Talvez porque sejamos as duas grandes talentos. Se ela diz ‘Hi’, eu tenho de dizer ‘Hi’. Sou uma pessoa fácil e consigo divertir-me com atletas europeus. Sou uma pessoa fácil para falar, se ela nao é assim está tudo bem para mim”, contou ao Daily Mail, recordando os tempos em que estava no heptatlo (foi por aí que começou antes de passar apenas para a velocidade) e tinha relações próximas contra as adversárias, como Jessica Ennis.

Nascida em Utrecht, a holandesa começou no atletismo aos nove anos mas também gostava de jogar à bola. Gostava ela, os rapazes não: como era mais rápida do que os meninos da turma e ainda por cima tinha técnica para fintar, todos ficavam furiosos. No atletismo, entre o heptatlo e a velocidade, construiu um fantástico currículo entre 2010 (quando ganhou um ouro e um bronze nos Mundiais Juniores) e 2017, onde conta com uma prata nos Jogos Olímpicos, cinco medalhas em Mundiais, outras tantas em Europeus e mais duas em Mundiais e Europeus de Pista Coberta. Ainda assim, há uma velha guerra que continua a travar: as perguntas e acusações de doping por causa do acne que tem na cara.

“Odeio que me façam esse tipo de perguntas. Trabalho tanto para ser uma atleta realmente boa, para fazer a minha dieta, para seguir os meus padrões de sono. Vivo a minha vida para o desporto. Quando alguém me pergunta sobre isso, é complicado”, assume.

“Tira muito do prazer de ganhar e é a coisa mais frustrante. Tens uma boa corrida, ganhas, é um dos momentos mais fantásticos na tua vida e depois levamos com essas questões. É complicado”, contara ao The Guardian.

“As coisas com a minha pele são difíceis. Sou eu e sou assim. O acne é algo que corre na minha família, até a minha mãe teve acne até aos 30 ou 40 anos. E depois aparecem pessoas que dizem que é o típico sinal de doping… Como mulher, não é fácil sofrer com acne. É complicado ter isto e ouvir essas coisas, colocando a integridade desportiva em causa. Sei que é mais complicado por ser branca e porque nos anos 80 nem todas as velocistas brancas estavam limpas. Dizem que não é possível, mas é”, explica, acrescentando: “Ajuda bastante os jornalistas holandeses acreditarem em mim e agarro-me a isso porque são pessoas que me conhecem e veem há muitos anos e sabem que sou honesta e estou limpa. Tenho de ser forte”.

Depois de ter começado os estudos para se tornar professora como a mãe, preferiu focar-se para já na carreira enquanto melhora o seu inglês. Entretanto, vai dando aulas nas pistas. Como Fanny fez há quase 70 anos.