Fernando Dias aguarda ansiosamente a chegada do Presidente da República e do primeiro-ministro. Está abrigado pela sombra, encostado à porta da agência da Caixa de Geral de Depósitos de Figueiró dos Vinhos, que ele próprio ajudou a construir. “Com estes dez dedos”, garante, abrindo bem as mãos e os olhos azuis — tão claros como a cor da sua camisa —, para frisar o trabalho que aquela obra lhe deu. É que Fernando, ou senhor Dias como lhe chamam, foi nada mais nada menos do que um dos responsáveis pela instalação da maioria das caixas multibanco na região.

Fernando é uma das dezenas de pessoas que se juntaram à porta do edifício da Câmara Municipal esta quinta-feira, dia em que se assinalam dois meses desde o incêndio que afetou os concelhos de Pedrógão Grande, Castanheira de Pêra e Figueiró dos Vinhos, e que matou pelo menos 64 pessoas e feriu mais de 200. O périplo de Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa incluiu ainda a visita a casas em reconstrução, que serão agora dispensadas de licenciamento, segundo anunciou o primeiro-ministro no local. Costa e Marcelo tinham também marcada uma reunião com os presidentes das câmaras municipais das regiões afetadas (Pedrógão Grande, Castanheira de Pêra e Figueiró dos Vinhos), mas esta foi a primeira paragem.

“Isto é uma vergonha de um país!”, exclama bem alto Fernando para um amigo, enquanto esperam. O tom do comentário destoa do ambiente geral: este grupo de figueirenses não está ali com reivindicações, mas sim aguardando com expectativa a possibilidade de apertar a mão ou receber um beijinho de Marcelo Rebelo de Sousa.

No entanto, o primeiro a chegar é mesmo o Primeiro. António Costa sai do carro e cumprimenta quem o quer cumprimentar, entre eles o casal José e Lurdes Pais. Estão contentes por poder ver de perto os governantes, mas não escondem a tristeza quando recordam o que aconteceu há dois meses, naquele fatídico sábado.

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”Às cinco da tarde já estava tudo escuro. Acendi uma velinha, peguei nos meus medicamentos e disse ao meu marido ‘tira-me daqui, senão eu vou morrer’”, recorda Lurdes.

Doente cardíaca de 77 anos, percebeu rapidamente que o seu estado nervoso se complicava com a antecipação de ter de enfrentar um incêndio semelhante ao que venceu em 2005. Mal podia imaginar que este viria a ser ainda pior.

Lurdes conseguiu que a levassem para o centro de saúde, enquanto o marido José, de 75 anos, ficou a defender a casa. Embora as comunicações falhassem, conseguiram falar por telefone algumas vezes. “Eu atendia e dizia-me ‘deixa-me trabalhar!’”, conta José. “Andava a acartar garrafões… Felizmente que não nos cortaram a água como em 2005.” Ao mesmo tempo, Lurdes ia tentando telefonar à filha, que vinha de Coimbra com o marido. Demoraram três horas a chegar a Douro, numa viagem de horror por caminhos de terra batida, fugindo às estradas cortadas — incluindo a N 236-1, onde morreram mais de 40 pessoas. Pelo caminho, um poste de eletricidade tombou, falhando o carro da filha por pouco. “Foi um milagre”, diz Lurdes. Hoje, dois meses passados, o casal ainda se emociona ao recordar. Mas, ao contrário de outros, conseguiram preservar a sua casa — e as suas vidas.

Enquanto o casal vai recordando esse dia ao Observador, chega o carro mais aguardado. O Presidente é recebido com aplausos, mas sobe rapidamente para a reunião na Câmara — os beijinhos, esses, deixa-os para quando descer, meia-hora depois. Os figueirenses lá se mantêm, de pedra e cal, à sua espera. “Tenho fé que isto ainda se vai endireitar”, vai dizendo Lurdes ao Observador. “E que o senhor primeiro-ministro e o senhor Presidente vão ajudar os jovens, por exemplo”, atira, pensando na sua filha, licenciada em Geologia e com dificuldades em arranjar emprego na área.

Os jovens presentes nesta Praça do Município, por enquanto, preferem ir treinando os ângulos para a selfies que tirarão com o Presidente em vez de exigir empregos. Já os mais velhos preferem ir trocando impressões. “Não engorda, é um senhor”, exclama uma senhora para encerrar uma discussão sobre a idade e o físico de Marcelo. “Se fosse o Cristiano Ronaldo a vir cá eu não ia vê-lo, mas o Marcelo sim”, diz outro. “Vamos lá dar um beijo ao homem!”, remata Fernando. Os 74 anos parece que nem lhe pesam, tal é a velocidade com que descola as costas da parede da agência bancária quando vê António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa a chegarem à rua.

O antigo construtor civil consegue o tão desejado aperto de mão e uma troca de palavras amigável, tal como Lurdes e José, e pede “uma salva de palmas” à saída dos carros oficiais. “O nosso primeiro-ministro é muito simpático. Quanto ao Presidente da República, se calhar os portugueses nem merecem uma alma tão boa como aquela”, diz Fernando ao Observador. Tal como com o casal de Douro, a alegria só se desvanece ao recordar o motivo da visita. “Eu estou vivo porque alguém me guardou”, desabafa, olhando para cima. Enfrentou o fogo em Vale Fernandes, a defender a casa dos pais com a irmã, dez anos mais nova. Perdeu apenas “os seus bichinhos”, as abelhas das colmeias que criava. Foi-se o mel que oferecia a médicos e amigos da região, ficaram-se-lhe as memórias de uma noite que preferia esquecer.

O aperto de mão de Marcelo deu-lhe algum alento, mas ele não esquece a raiva que o fez lamentar, ao início da tarde, a situação do seu país. “A vergonha”, explica Fernando, referindo-se ao que disse enquanto esperava pelos governantes, “é a de nós, como seres humanos, não termos amor uns pelos outros. Se tivéssemos, não andávamos aí a pôr o fogo.”