A 13 de setembro, chegou aos jornais a notícia de que Tony Carreira, o nome mais popular da música ligeira portuguesa, estava a ser acusado pelo Ministério Público (MP) de plagiar, com a ajuda do compositor Ricardo Landum, 11 músicas de autores estrangeiros. A lista inclui alguns dos maiores êxitos de Carreira, como “Depois de ti mais nada” ou “Sonhos de Menino”, que ajudaram a celebrizar o cantor em Portugal e no estrangeiro. Apesar de a acusação datar deste mês de setembro, o processo é bem mais antigo — tudo começou com uma queixa-crime apresentada em 2012 pela Companhia Nacional de Música (CNM), que já antes tinha avançado com uma ação judicial contra Tony Carreira.
Nuno Rodrigues, fundador e administrador da editora, recusou, até ao momento, fazer qualquer comentário. Com Tony Carreira já não foi assim. Numa primeira reação à acusação do MP, divulgada pela Agência Lusa, Carreira acusou a CNM de ter apresentado “uma queixa oportunista e injustificada”, salientando que a empresa “não representa qualquer autor ou artista envolvido nas obras em causa”. Mais tarde, em entrevista à TVI, afirmou estar a ser alvo de uma “perseguição”. “Estou a ser alvo de uma pessoa que já me colocou um processo em tribunal. A justiça deu-me razão e neste momento não olha a meios“, disse, acrescentando que, desde então, Nuno Rodrigues nunca mais o largou. “Apaixonou-se por mim e estou a ser alvo dessa pessoa.”
O processo, que se encontra atualmente em fase de instrução, seguirá agora para o Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, onde um juiz de instrução criminal irá decidir se Tony Carreira e Ricardo Landum, que também foi constituído arguido, devem ir a julgamento. Se isso acontecer, Carreira poderá tornar-se no primeiro cantor português a ser levado à barra do tribunal por plágio. E tudo graças à CNM que, apesar de não ter nada a ver com o artista ou com os autores alegadamente plagiados, foi responsável pela queixa-crime que levou à acusação do MP. O processo, consultado pelo Observador, ajuda a perceber porquê.
Caso Tony Carreira poderá ser o primeiro a chegar aos tribunais portugueses
A carta que o advogado de Tony enviou (e que o cantor nunca viu)
Criada em 1993 por Nuno Rodrigues, antigo membro da Banda do Casaco, a CNM é uma editora, produtora e distribuidora que tem “como missão a produção, valorização e divulgação de obras de âmbito cultural”, refere o seu site. Entre as muitas atividades a que se dedica, inclui-se a edição de álbuns de originais mas também de covers de artistas portugueses consagrados, como Jorge Palma, André Sardet ou a banda Ala dos Namorados, feitas geralmente pela “voz de um intérprete desconhecido”. Foi no âmbito desta coleção, intitulada As Grandes Músicas — Os Melhores Covers, que a CNM decidiu lançar em 2008 um disco com versões de Tony Carreira.
A ideia tinha tudo para dar certo: o sucesso comercial de Tony, provavelmente o maior cantor português de música ligeira, garantia que o investimento teria o retorno financeiro necessário. A CNM escolheu as músicas, contratou uma produtora — a Viagens a Marte, na altura sediada em Oeiras (hoje em Lisboa) — e entrou em contacto com a Sociedade Portuguesa de Autores (SPA) para tratar das burocracias necessárias. Depois de pago o valor definido pela SPA pelos direitos autorais das canções que se pretendia reinterpretar, avançou-se para a produção de As Grandes Músicas — Os Melhores Covers — Tony Carreira, com a interpretação a cargo de um cantor desconhecido, Miguel Oliveira. O negócio ficou por 3.650 euros, valor ao qual foi ainda acrescido os custos de fabrico, publicação, distribuição e venda do disco.
O álbum chegou às lojas em meados de 2008. De início, tudo correu de vento em popa. A venda dos primeiros discos rendeu 105 mil euros “e tudo indicava” que a CNM “iria faturar outro tanto” com a restante comercialização, de acordo com o processo. Só que, pouco tempo depois, a editora teve conhecimento de que alguns retalhistas tinham recebido uma carta, “enviada por ordem e em nome de Tony Carreira”, na qual se sugeria que o disco era ilegal e que o nome do cantor português tinha sido utilizado de forma “abusiva”. Temendo que o lançamento violasse os direitos de autor, alguns dos vendedores, como a Worten ou a Fnac, decidiram devolver os exemplares que tinham comprado à CNM.
Entre os retalhistas que decidiram enviar Os Melhores Covers de Tony Carreira de volta para a CNM estava também o supermercado Feira Nova, cujo catálogo de vendas de discos incluiu, sobretudo, álbuns de covers. Depois de ter recebido a carta do representante de Carreira, o supermercado decidiu devolver as 1.955 cópias de As Grandes Músicas — Os Melhores Covers — Tony Carreira e de todos os outros lançamentos que tinha recentemente comprado à Companhia Nacional de Música.
A situação impossibilitou a CNM de, daí para a frente, “vender ou distribuir qualquer cópia da referida edição, pelo que tem as mesmas paradas sem qualquer possibilidade de escoamento”, e de avançar para uma segunda edição, como tinha previsto. Além disso, “as empresas, em consequência da carta remetida, deixaram de adquirir outras obras” à editora, o que resultou numa “drástica diminuição das obras que produz”. O Feira Nova fez questão de deixar claro que não voltaria a fazer negócios com a empresa de Nuno Rodrigues.
“Não obstante o cumprimento de todas as regras aplicáveis, nomeadamente a colocação do nome do artista e o pagamento à Sociedade Portuguesa de Autores dos direitos de autor devidos”, a CNM foi “surpreendida com a existência de uma carta enviada” aos seus “clientes, distribuidores e revendedores de discos, nos termos da qual era acusada de lesar os direitos daquele, instando-os a cessar, de imediato, a comercialização daquela edição discográfica” por se tratar de “uma edição ilícita”, refere o processo. “A carta remetida em nome e representação” do artista “põe em causa a licitude da prática dos covers”, algo com o qual a CNM “não se pode conformar”.
Tendo em conta o prejuízo que a carta de Tony Carreira causou, a editora decidiu avançar com uma queixa-crime, apresentada a 4 de novembro de 2008, acusando o cantor de “lesar gravemente a honra, prestígio e confiança” da CNM. Apesar de o documento não ter sido assinado pelo artista, a CNM argumentava que esta tinha sido remetida pelo advogado deste “em nome e representação” do seu cliente, “o artista Tony Carreira”, o que dava a entender que tudo teria sido feito depois de o cantor ter sido consultado. Só que, em Tribunal, Carreira disse não ter qualquer conhecimento da carta, que teria sido enviada por iniciativa do seu advogado. Já este, defendeu que, apesar de na capa do álbum constar o nome de Miguel Oliveira, responsável pela reinterpretação dos temas,não teria “a mesma dignidade nem a mesma dimensão” do nome do seu cliente, o que poderia induzir os fãs em erro. Para a defesa de Tony Carreira, o seu nome teria sido usado de forma “abusiva”.
Apesar dos argumentos apresentados pela CNM, o Tribunal acabou por arquivar a queixa por não ter encontrado indícios suficientes de que Tony Carreira tinha enviado a tal carta para os clientes da editora discográfica. Além disso, também ficou por provar que o documento tivesse ofendido “o bom nome” da empresa. A CNM ainda recorreu da decisão, mas de nada valeu. O que Nuno Rodrigues nunca chegou a perceber foi o porquê de o advogado de Tony Carreira nunca ter entrado em contacto com a Companhia Nacional de Música e, em vez disso, ter escolhido falar diretamente com as lojas e distribuidoras que com ela trabalhavam. Se o tivesse feito, talvez a situação tivesse sido resolvida de outra forma.
O autor que passou a adaptador
Foi mais ou menos na mesma altura que a CNM decidiu apresentar queixa contra Tony Carreira que Nuno Rodrigues descobriu que algumas das músicas que tinha incluído no disco de covers (e pelas quais tinha pago) tinham, entretanto, deixado de ter o cantor português como autor. No registo da SPA, Carreira tinha passado a figurar como “adaptador” nos temas “Ai Destino, Ai Destino” e “A Estrada do Eu” (imitações de “Zingarella”, de Enrico Macias, e de “Ecris-Moi”, de Pierre Bachelet, respetivamente), que figuravam no lançamento da Companhia Nacional de Música que o cantor teria contestado através do seu advogado. Isto significava que Tony Carreira teria alegado “erroneamente a violação dos seus direitos intelectuais” porque as músicas que supostamente eram da sua autoria não passavam de adaptações de obras de outros. Além disso, Carreira estaria, há vários anos, a receber por direitos que não tinha.
Perante a nova informação, a CNM decidiu avançar também com uma queixa por usurpação. A estas duas músicas iniciais, foram depois acrescentadas outras, o que acabou por levar ao corrente processo que tem também Ricardo Landum como arguido. O caso levou também à descoberta de que a SPA tinha recebido várias queixas de autores que alegavam terem sido plagiados por Tony Carreira. Nunca chegou a haver uma denúncia formal porque Carreira conseguiu chegar a um acordo com os mesmos, num processo mediado pela própria SPA. O assunto, garante o cantor, está mais do que encerrado: as “questões passadas de direitos autorais foram resolvidas em devido tempo com quem de direito”, refere um comunicado emitido pela Regiconcerto, a empresa que o representa, por altura da divulgação do despacho de acusação.
Mas uma coisa é certa: ainda existe um problema para resolver. Apesar de ter garantido que “não há aqui crime” nenhum, Tony Carreira (cujos representantes o Observador tentou contactar sem sucesso) está a ser acusado de onze crimes de usurpação e outros onze de contrafação. O caso pode chegar a tribunal muito em breve.