Então e o Rushdie? Ou o Barnes? O McEwan, a Hillary Mantel, o St Aubyn ou o Martin Amis? Ou aquele tipo que vive em Hackney, tem uma barba comprida com flores, usa soquetes brancos e escreve poesia concreta sobre a sua última ida ao Tesco? Pois é, sempre que alguém é distinguido, pululam alternativas. E este ano a academia sueca resolveu escolher o britânico Kazuo Ishiguro como vencedor do Prémio Nobel de Literatura. Se era para escolher um inglês, bom, havia muito por onde pegar mas a bênção acabou por agraciar um autor, digamos, consensual (para não usar o termo mainstream), uma espécie de literato de bata branca, que escreve com muita competência mas que suja pouco a bancada de trabalho.

O que é facto é que depois do terramoto Dylan era necessário acalmar as hostes livrescas e nada melhor do que um homem já galardoado, agraciado e adaptado ao cinema para amansar as hostes. Por um lado, são más notícias para escritores da craveira de Chico Buarque ou Neil Young, que vêem a maré do Nobel recuar para longe das cantigas. Por outro, aumentam as esperanças daqueles que privilegiam o formato livro.

Como sucede todos os anos, as bolsas de apostas apontavam favoritos, uma e outra vez defraudados: Philip Roth, António Lobo Antunes ou Haruki Murakami, que vê o prémio fugir para as mãos de outro homem nascido no Japão. Também se perfilava Margaret Atwood, graças à adaptação televisiva de A História de Uma Serva, mas para já a canadiana terá de esperar sentada ao lado do arquitecto Saraiva e de José Rodrigues dos Santos, o homem que, segundo a revista Sábado, está a abalar a civilização ocidental. Creio que não será pelos melhores motivos.

A verdade é que este prémio pode ser lido como um doce oferecido aos britânicos, que têm andado com a auto-estima pelas ruas da amargura. Entre os nervos do Brexit e os acessos de tosse de Theresa May, passando pela ameaça terrorista permanente, tem sido difícil inchar o peito e cantar o “God Save The Queen”. Nada melhor do que um Nobel na categoria mais pop para consegui-lo, sobretudo quando se distingue alguém que vive num país que está a cortar os laços com a União Europeia e que escreveu um romance com o título Nunca Me Deixes.

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A academia resolveu então dar ares de bem-comportada e escolheu um romancista relativamente tépido, na melhor tradição da cerveja insular, que trabalha alguns dos temas mais glosados da literatura – a memória, o tempo, o amor, a guerra, o indivíduo versus as suas circunstâncias – e que até já tinha vencido um Booker e umas medalhas do Império. Tinha inclusive chegado às massas na primeira metade dos anos 90 a cavalo numa adaptação ao cinema de Os Despojos do Dia, encabeçada pelas estrelas Anthony Hopkins e Emma Thompson.

O que é curioso é que a porta-voz teceu os elogios da praxe ao autor e à sua obra (aquela miscelânea onde aparecem recorrentemente as palavras humanismo, relevância e integridade) mas inovou ao apresentar o escolhido como uma mistura entre Jane Austen, Franz Kafka e Marcel Proust, curiosamente três autores que nunca venceram o Nobel (certo, a Jane Austen nasceu antes, mas mulheres premiadas com o Nobel são mais raras do que portugueses a viver em Alfama). Ou seja, estamos na presença de um autor que é uma espécie de compromisso entre a velhinha picadora minipimer da Braun e a muito versátil Bimby.

Enfim, às vezes é melhor quando não se procura justificar as razões de um prémio que parece funcionar numa lógica de lotaria, de euromilhões literário, que este ano resolveu agraciar os editor de Kazuo Ishiguro (é o caso da Gradiva em Portugal), que aproveitam para tirar o pó às paletes de livros guardados em armazém e para compor um pouco as contas num mercado que atravessa algumas dificuldades.

Apesar de ser um autor pouco prolífico – publicou até hoje sete romances e um livro de contos – Ishiguro já tocou várias épocas e géneros. Trouxe à liça mordomos com a neura, jovens mergulhados numa distopia (olá, Atwood) e casais proto-medievais à bulha com um dragão (olá, miudagem do Game of Thrones). E sem ter exactamente aquilo a que se possa chamar rasgo, é um autor que cumpre. Certo, Ishiguro não é o Maradona, mas a Argentina também precisou do Burruchaga para chegar à glória, no ano em que atropelou a Inglaterra com a ajuda da mão de Deus. Lá está, os bifes andam há muito tempo a precisar de consolo. Os suecos resolveram dar uma mãozinha (no pun intended).

Pedro Vieira é pivô de televisão e ilustrador relutante