Armandina chega num passo incerto. Levanta o olhar para o edifício de fachada branca, gigante como as chamas que rodearam Penacova este domingo. A mulher avança mais uns metros, depois estaca. Talvez não queira ouvir as notícias que têm para lhe dar do filho. “Às vezes eles mentem-me, dizem-me que ele está cá, que não saiu, mas eu sei que é para eu não me atrapalhar”, desabafa, antes de se decidir a subir as escadas que a conduzem ao quartel.

O filho está lá. Esgotado, mas inteiro. Passou as últimas 36 horas a correr o concelho numa luta que acaba sempre numa derrota a favor das chamas. A mãe também não foi à cama. Não consegue fechar os olhos. É o medo. A terra perdeu três dos seus.

Na noite de segunda-feira, só o cheiro a madeira queimada denuncia o pesadelo das horas anteriores. Não há fumo no ar. As encostas estão agora escondidas pela escuridão da noite. É difícil acreditar que na noite anterior o fogo varria toda a região. À beira da estrada, a caminho de Penacova, uma ambulância dos bombeiros passa por um pequeno foco de incêndio, uns seis metros quadrados de chamas ali mesmo junto ao alcatrão. “Está a arder há 24 horas, é deixar esgotar”, diz para a colega do lado o bombeiro que vai ao volante.

Vêm de Travanca do Mondego, uma aldeia a 13,5 quilómetros do centro da vila. Minutos antes, carregavam do interior de uma casa de paredes negras um pequeno saco, mais pequeno que uma mala de viagem. Era o corpo da terceira vítima do concelho. Ainda com a memória de Pedrógão Grande fresca, a mulher não seguiu as indicações do marido, com medo de ser apanhada pelo fogo quando procurasse refúgio na casa dos vizinhos. “Os de Pedrógão morreram a fugir de casa”, lembra a bombeira. Ali, foi a casa que a matou.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

O descanso dos combatentes

Os olhos de António Simões, raiados de vermelho, denunciam-no. O discurso arrastado também. Saiu do quartel ao início da manhã de domingo com os seus 100 homens e mulheres e com o filho de Armandina entre os elementos da corporação. Iam em direção a Vila Nova de Poiares dar apoio ao concelho vizinho mas tiveram que voltar para trás quando perceberam que as chamas se dirigiam para Penacova.

Sentado num sofá dos corredores da sua unidade, António Simões goza os primeiros cinco minutos de descanso em muito tempo. Não dá ordens, já não precisa de mobilizar ninguém para a frente do fogo. “Temos 100 homens e 10 carros e foi com isso que percorremos o concelho de uma ponta à outra”, diz, lamentando a falta de apoio das corporações à volta. Depois, interrompe o que ia a dizer, como se se tivesse arrependido do seu próprio julgamento.

Mortágua, Santa Comba Dão, Arganil, Tábua – para onde quer que os olhos se virassem à volta de Penacova, as chamas estavam lá. Cada um acudiu aos seus e só por “milagre” – ouve-se por ali – não morreu mais gente. As últimas horas não saem da cabeça do comandante. “Por mais que fossem os meios, não era possível parar um fogo assim”, diz em surdina, como se falasse para si mesmo.

O comandante teve “medo”. Desânimo, nunca. Medo, sim. Estava a regressar à base na madrugada de segunda-feira, o concelho tinha sete largas feridas abertas serra acima e António Simões esbarrou de frente contra um desses muros. Era de um laranja vivo, 30 metros de altura, muitos, mas mesmo muitos graus de calor. Pensou que não escapava. Teve medo de morrer queimado. As unhas negras são a marca da finta que pregou ao destino.

Armandina volta mais tranquila do quartel. “Eu bem lhe disse que ele estava bem”, conta-lhe Pedro Coimbra. O deputado à Assembleia da República e o bombeiro estiveram juntos no terreno, partilharam um pedaço de pão e de presunto “num barranco”, com as chamas a servir de cenário enquanto disfarçavam o aperto no estômago.

Alice, comandante adjunta dos bombeiros de Penacova passa em frente ao quartel e Pedro Coimbra dá-lhe um abraço. “Já viste a marca que tenho nas costas?”, pergunta-lhe, enquanto aponta para a linha de dentes vincada na omoplata. Pedro é um filho da terra. Quando soube que as chamas estavam a consumir o concelho veio para cima e não saiu um minuto do terreno. Foi isso que lhe valeu a marca ao cimo das costas. Estava em Miro a tentar socorrer um homem nos seus 70 e poucos anos. As chamas estavam prestes a invadir-lhe a casa mas o homem recusava-se a partir. O deputado chamou um amigo e, em ombros, conseguiram arrastar dali o resistente. A dentada foi a vingança de quem se viu forçado a virar as costas às quatro paredes que a vida lhe permitiu levantar do chão.

As primeiras vítimas da tragédia

A menos de um quilómetro dali, dois irmãos perdiam-se para as chamas. Foram as primeiras vítimas de que o país ouviu falar nos incêndios que devastaram o centro e norte do país no último domingo. Um era apicultor, o outro engenheiro, 41 e 43 anos. Há quem diga que, quando souberam que o fogo estava a atravessar o concelho, tentaram salvar a sua produção de mel.

Os irmãos dividiam o tempo entre Vale Maior e Coimbra. Durante a semana costumavam passar o tempo na cidade, onde geriam alguns negócios de família, e ao fim de semana subiam os 36 quilómetros até à casa do pai. Eram presença frequente por ali.

No domingo, viram as chamas aproximarem-se do armazém onde guardavam o material usado na produção do mel e desceram o vale onde têm a sua produção numa corrida contra o tempo. Só quando chegaram ao armazém perceberam que as chamas estavam perto demais. Ainda tentaram escapar. Já era tarde. “O pai estava lá perto, só não morreu porque não calhou”, diz Pedro Coimbra, amigo de um dos irmãos.

Os bombeiros também estavam por perto. Mas a forma como as chamas se lançavam ao terreno verde não lhes deu hipótese de fazer o que fosse, era impossível chegarem perto dos dois homens. “Eu comando este quartel há mais de 30 anos e nunca vivi nada parecido com isto”, desabafa António Simões. Essa é uma das suas mágoas: ter perdido os dois irmãos – e uma senhora, carbonizada dentro de casa – para as chamas. Isso, e ter ficado à sua mercê quando o fogo lhe roubou o concelho. Foi dos primeiros a encontrar os irmãos. Quando encontrou os dois homens, os corpos estavam prostrados, cabeça com cabeça. Morreram a tentar abraçar-se.