Inamovíveis. É assim que os juízes são definidos pela própria Constituição Portuguesa, que acrescenta que os magistrados não podem ser transferidos, aposentados ou demitidos do exercício das suas funções. Também não podem ser despromovidos ou detidos, a menos que incorram num crime punível com mais de três anos de prisão. Mas, há exceções. Os juízes podem ser responsabilizados civil, criminal e disciplinarmente. Neste último caso, a tarefa é do Conselho Superior de Magistratura (CSM), que já está a analisar o caso dos acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, conhecidos esta semana.
São pelo menos quatro os acórdãos assinados pelo juiz Neto de Moura cuja fundamentação é considerada polémica. Em causa estão crimes de violência doméstica e, em pelo menos dois dos casos, o magistrado refere-se ao adultério como uma atenuante para o crime — o que não está previsto na lei desde o 25 de Abril (como, aliás, lembrou Marcelo Rebelo de Sousa). A haver matéria que o justifique, o juiz pode vir a ser alvo de um processo disciplinar.
Aberto inquérito ao caso do acórdão polémico sobre violência doméstica
Os casos de juízes que violaram os seus deveres e que chegaram ao CSM não são assim tão poucos. Entre 2015 e 2016 foram abertos 27 processos disciplinares. Este ano foi encerrado um processo com a pena disciplinar mais grave: a demissão. Trata-se de uma juíza desembargadora, também do Tribunal da Relação do Porto, condenada a uma pena de cadeia suspensa de dois anos e meio de prisão. Joana Salinas, que também foi condenada a pagar 5 500 euros à Cáritas do Porto, contratou duas advogadas para lhe elaborarem os acórdãos da Relação. Segundo a acusação, as juristas eram pagas para esse serviço com dinheiro da Cruz Vermelha — com quem mantinham avenças mensais.
Nos últimos dez anos foram expulsos 16 juízes, 15 por via da pena disciplinar de aposentação compulsiva e um por via da demissão, segundo os relatórios anuais do CSM. A demissão de Joana Salinas é, aliás, a segunda demissão de um juiz registada ao longo da última década. Atualmente há cerca de 1800 juízes em efetividade de funções.
Num processo disciplinar menos grave, o CSM condenou o juiz Rui Rangel ao pagamento de uma multa correspondente a 15 dias de salário por ter violado o dever de reserva. Rangel falou do caso Operação Marquês, em que Sócrates é acusado de crimes de corrupção e branqueamento, num programa televisivo. E, mais tarde, acabou por ter intervenção na apreciação de um recurso do ex-primeiro-ministro no Supremo Tribunal de Justiça.
O CSM moveu também um inquérito contra o juiz Carlos Alexandre, quando este deu uma entrevista à SIC, em setembro de 2016, na sequência de uma queixa do ex-primeiro-ministro. Mas o caso foi arquivado e nem sequer houve processo disciplinar. “Pese embora sendo pouco felizes na sua expressão algumas dessas declarações, as mesmas não se revestiam de relevância disciplinar”, considerou aquele órgão, com oito votos a favor e sete contra. Um mês antes, o CSM tinha analisado outra queixa contra Carlos Alexandre, desta vez vinda do juiz desembargador Antero Luís, antigo diretor do SIS. O magistrado não gostou que, no âmbito do processo dos Vistos Gold, o juiz de instrução tivesse levantado e enviado suspeitas contra si para o Supremo Tribunal, para que fossem investigadas. Também este caso foi arquivado e não deu processo disciplinar.
Três anos antes, em 2013, foi a vez do juiz de instrução do chamado processo Casa Pia ser alvo de um inquérito. O juiz Rui Teixeira foi mesmo alvo de um processo disciplinar e foi-lhe aplicada uma pena de “advertência registada”. O magistrado ainda recorreu para o Supremo Tribunal, mas este não lhe deu razão. Em causa os vários despachos que assinou e endereçou à Direção-Geral de Reinserção Social (DGRS ) para que apresentasse os relatórios sociais de arguidos sem adoção do acordo ortográfico, sob pena de os mesmos não serem pagos. O juiz contrariou, assim, uma deliberação do CSM que, em 2012, tinha determinado que os juízes não podiam indicar aos intervenientes processuais quais as normas ortográficas a aplicar.
Ao ser confrontado com um pedido de esclarecimento por parte da coordenadora da equipa da DGRS “Pinhal Litoral”, o juiz respondeu da seguinte forma:
“Se se tivesse lido o que se deixou escrito, facilmente se teria chegado à conclusão que o que se quer é que o relatório a produzir seja escrito em Português. (…) Nos tribunais, pelo menos neste, os factos não são fatos, as actas não são uma forma do verbo atar, os cágados continuam a ser animais e não algo malcheiroso e a Língua Portuguesa permanece inalterada até ordem em contrário”, respondeu Rui Teixeira, por escrito, à coordenadora de uma equipa da Direção Geral de Reinserção Social que lhe tinha enviado um pedido de esclarecimento.
“Sobre o manto da função jurisdicional não podem estar incluídas posições pessoais estranhas ao objeto do processo, por isso se conclui que a concreta atuação do recorrente não se insere no âmbito da função jurisdicional”, decidiram os juízes do Supremo. Por outras palavras menos jurídicas, consideraram que Rui Teixeira violou o dever de correção ao responder daquela forma.
Leia aqui o acórdão do juiz que desvalorizou agressão por causa de adultério
Mas mesmo que não existam queixas e aberturas de inquéritos, os magistrados passam por processos de avaliação e são-lhes atribuídas notas, que têm implicações na sua carreira.
Como são avaliados os juízes?
Os juízes são avaliados através de inspeções ordinárias e extraordinárias feitas por juízes mais experientes, os chamados inspetores judiciários. Além destas inspeções, se o Conselho Superior de Magistratura (CSM) — o órgão que regula e disciplina os juízes — tiver conhecimento da violação dos deveres profissionais por parte de algum juiz, pode abrir um inquérito com vista a um processo disciplinar contra o magistrado. O Estatuto dos Magistrados Judiciais e o Regulamento dos Serviços de Inspeção do Conselho Superior da Magistratura são os dois diplomas que regulam o controlo dos juízes.
Quais são os critérios destas avaliações?
O regulamento das inspeções faz incidir a avaliação em três vertentes: na capacidade humana do juiz; na adaptação ao serviço; e na preparação técnica. Na capacidade humana do juiz, é avaliada a sua independência e isenção, assim como a sua relação com outros profissionais. Na adaptação ao serviço, avaliam-se questões como a assiduidade, o zelo e a dedicação e a produtividade — ou seja, a taxa de resolução de processos por ano. Na preparação técnica tem-se em linha de conta, por exemplo, a capacidade sintética e a linguagem simples do magistrado.
As avaliações são feitas com Muito Bom, Bom com Distinção, Bom, Suficiente e Medíocre. As notas determinam o futuro de cada magistrado e são fundamentais para que estes consigam chegar a determinado tribunal, onde ambicionaram trabalhar. Dificilmente um juiz que não tenha duas classificações de “Muito Bom” acede a um Tribunal da Relação. Por outro lado, os juízes que tenham notas mais baixas são colocados em tribunais considerados menores, por terem processos menos complexos. Entre 1 de setembro de 2015 a 31 de agosto de 2016, segundo o relatório anual do CSM, 179 magistrados tiveram a nota máxima. Apenas um foi avaliado com medíocre.
Os juízes são avaliados de quanto em quanto tempo?
Os juízes de primeira instância são classificados em inspeção ordinária, pela primeira vez, um ano depois de terem iniciado funções. As avaliações seguintes, por esta via, são feitas a cada quatro anos. Já as inspeções extraordinárias, como o nome indica, podem ocorrer no intervalo das inspeções ordinárias, desde que decorridos já dois anos da última avaliação.
Enquanto a avaliação ordinária é feita apenas a juízes de primeira instância, os juízes do Tribunal da Relação podem ser avaliados através das inspeções extraordinárias. Estas avaliações podem ser de iniciativa do próprio magistrado, porque lhe interessa ser avaliado para poder ser promovido para o Supremo Tribunal, por exemplo, ou por iniciativa do CSM — por constatar que há necessidade de avaliar extraordinariamente um juiz e perceber se ele deve manter as funções que ocupa.
O vice-presidente do CSM, Mário Morgado, explicou ao Observador que, desde a reestruturação do mapa judiciário, o juiz presidente de cada comarca informa o CSM, por via informática, sobre o desempenho do seu tribunal e dos juízes que lá prestam serviço a cada três meses. “Mal se detete uma situação anómala, podemos decidir por uma inspeção extraordinária ou, até, um processo disciplinar”, explicou.
Segundo o relatório anual do CSM, de 1 de setembro de 2015 a 31 de agosto de 2016, foram realizadas e decididas pelo Conselho Superior da Magistratura 330 inspeções judiciais ordinárias e 19 inspeções extraordinárias, num total de 349 inspeções.
As inspeções podem ter consequências disciplinares?
As inspeções não têm, em regra, uma finalidade disciplinar, nem servem como forma de ação disciplinar sobre os juízes. As inspeções ordinárias avaliam o mérito dos magistrados, classificando-os com uma nota que terá efeitos na sua colocação, transferência e promoção. Já em relação ao objeto de uma inspeção extraordinária, depende de quem a pediu. No entanto, num caso ou noutro, caso a nota final seja Medíocre, origina um processo disciplinar — porque esta é a única via que o CSM tem para aplicar uma sanção.
O processo disciplinar, em caso de avaliação medíocre, visa averiguar se o juiz teve aquela avaliação num caso isolado ou se, de facto, deve ser afastado de serviço, sendo suspenso ou aposentado compulsivamente. Sendo que a figura da aposentação compulsiva, segundo o juiz Mário Morgado, está a cair em “desuso”, seguindo a tendência idêntica dos outros setores da Administração Pública (esta aposentação permitia que o juiz afastado, tivesse direito a uma aposentação independentemente da sua idade ou tempo de serviço). Esta é, na verdade, a única classificação que tem efeitos disciplinares.
É possível avaliar um juiz de acordo com o conteúdo das suas sentenças, ou apenas se analisa a forma?
O tipo de linguagem utilizado pelos juízes é sempre avaliado, seja em avaliações ordinárias ou extraordinárias. Fora destes casos, é sempre possível abrir um inquérito que pode, ou não, originar um processo disciplinar. Segundo o juiz Mário Morgado, “apesar das decisões dos tribunais serem em principio insindicáveis”, o CSM, através dos seus inspetores, pode agir “em caso de erro jurídico crasso e grosseiro”. ” Imagine que um juiz com convicções religiosas se põe a dizer que é contra o divórcio ou a adoção, isso é valorizado”, exemplifica.
Aliás, prova disso, foi a sua mais recente decisão em abrir um inquérito aos acórdãos sobre crimes de violência doméstica que têm sido divulgados e que têm remissões para o Antigo Testamento e para o adultério, enquanto atenuante (atenuante esta retirada da lei logo após o 25 de Abril). Neste caso, o juiz Joaquim Neto de Moura é o magistrado comum a todas estas decisões. Neste momento o CSM está a reunir todas estas informações para poder apresentar ao Plenário do Conselho, que tem sessão marcada para 5 de dezembro. Aqui será decidido, de acordo com essa informação, se o CSM avança com um processo disciplinar e contra quais juízes.
Quais as consequências dos processos disciplinares?
Sempre que há motivos para mover um processo disciplinar, o CSM começa por abrir um inquérito, ouve o juiz em questão e decide se avança para o processo disciplinar. Caso não haja matéria disciplinar, o CSM arquiva o processo. Se houver motivos para castigar o juiz, existem vários tipos de penas: a advertência, a multa, a suspensão de serviço, a inatividade e, as mais graves: aposentação compulsiva ou, num caso extremo, a demissão.