Esta não é a primeira vez que Maria Imaginário e Mariana, a Miserável se juntam debaixo do mesmo teto. À terceira exposição da dupla, que inaugura no dia 9 de novembro no Art Room, em Lisboa, este trabalho criativo a quatro mãos começa a ganhar contornos de bienal. Há dois anos, ocuparam a Abysmo para reinterpretar êxitos do cancioneiro romântico popular português. Há quatro, pintaram a Mona Lisa de Da Vinci à imagem e semelhança dos seus próprios cânones estéticos. Hoje, é sem esforço que voltam a acertar frequências. Dizem-se almas gémeas, nos triunfos e desgostos amorosos, mas também na arte. “Aparentemente, o nosso trabalho é bastante diferente, mas não é. Falamos muito sobre as mesmas coisas, mesmo quando trabalhamos em separado. Depois, calha sempre a nossa vida estar mais ou menos parecida”, conta Mariana Santos, a Miserável, precisamente.
“Gosto muito da Mariana e acho que ela também gosta muito de mim. Temos um cérebro que pensa da mesma forma e o mesmo tipo de sentido de humor, embora a estética seja muito diferente”, completa Edna Costa, o nome de Maria Imaginário na vida real. Estéticas diferentes, o mesmo sentido de humor e a mesma ironia. E se eles são precisos aqui.
Desengane-se quem pensa que com os assuntos do coração não se brinca. Elas brincam, resolvem-nos como sabem e põem-no na tela. À primeira vista, é tudo fofo e cor-de-rosa. À segunda, encontramos a mesma melancolia com que canta Amy Winehouse. Love is a losing game, agora multiplique isso por 10 telas, um labirinto sem saída e 14 desilusões amorosas irmãmente repartidas pelas duas autoras.
Como boas degeneradas da ilustração que são, privilegiaram os pequenos formatos. A maior peça é provavelmente a tenista de Mariana, esmurrada, rodeada de cais, mas de raquete na mão, pronta para enfrentar outro adversário no court. Ao lado, Maria Imaginário deu forma à eterna disfunção entre cérebro e coração. Na tela, os dois baloiçam descoordenados, o primeiro assombrado pelo fracasso, o segundo inebriado pelo romance.
Achámos que era uma boa maneira de arrumar as coisas. Isto é o nosso lado irónico: tudo bonitinho e não sei quê, mas magoa como o caraças”, diz Mariana Santos.
Edna e Mariana conheceram-se há sete anos e até hoje são a relação à distância mais bem sucedida que já tiveram. A primeira vive em Lisboa, a segunda no Porto, o que não as impediu de acertarem o passo no que toca à vida sentimental. Sincronizadas no amor, para o bem e para o mal, foram convidadas a montar esta exposição pelo próprio Art Room, uma galeria instalada num pequeno sótão do Príncipe Real, ultimamente voltada para nomes da ilustração e da arte urbana. Sem o terem planeado, as duas amigas começaram a arquitetar a exposição no Dia dos Namorados, sentadas frente a frente num sítio a que chamam “café de bloggers”.
O nome Cecilia Giménez foi a primeira coisa que lhes veio cabeça. Aliás, já lá estava a latejar há uns anos. Queriam fazer uma exposição sobre erros e isso levou-as à senhora espanhola, autora do restauro amador do Ecce Homo de Borja. “As intenções dela foram as mesmas que as nossas, no amor e na vida. Só que nunca corre bem. Mesmo assim, estamos aqui de peito aberto, a ir à luta”, explica Edna.
De repente, a visão é outra: a da viúva oitentona vestida de cor-de-rosa a expulsar um batalhão de jornalistas do quintal de casa. Em Portugal, tem pelo menos duas fãs, cheias de boas intenções, mas a quem os ventos do amor não têm soprado de feição. Não é preciso recostá-las num divã, está tudo nos quadros.
“Ninguém manda em mim. Estou-me a borrifar, eu faço o que eu quero”
O momento é de libertação para Maria Imaginário. “Acho que sempre fui um bocado literal, mas cada vez mais faço as coisas in your face, não quero saber. Acho que isso vem do facto de estar mais confortável com o que sinto. Queres ser literal? Sê literal”, afirma a artista. Desabafo adolescente? Edna e Mariana preferem falar num processo de catarse que os 30 tornaram mais honesto e transparente. “Quando sais de uma coisa que foi muito má para ti e não te importas de cair outra vez, isso é um sinal de maturidade. Aprendeste ali qualquer coisa, não ficas com aquela atitude típica juvenil de não te quereres meter mais nisto”, acrescenta Mariana.
Eu tenho aqui um quadro com a cara do meu ex-namorado. É preciso ter coragem para trabalhar sobre a minha vida e não fazer só desenhos esteticamente bonitos. Isso envolve maturidade, o facto de fazer isto sem ter medo que os outros pensem que não estou resolvida e que somos umas losers“, diz Edna Costa.
Edna e Mariana contagiam-se uma à outra. Não no traço, mas no processo que as leva a pôr as emoções na tela. O otimismo da primeira contrabalança com o raciocínio tendencialmente pessimista da segunda. Pessimista, mas audaciosa. Na liberdade criativa, Mariana tem muito pouco de miserável. Pinta e desenha cada vez com menos filtro e incentiva Maria Imaginário a fazer o mesmo.
“Há uma data de coisas em que nos bloqueamos por causa de outras pessoas. Ela [Edna] tem todo o mérito pelo trabalho que faz, pelos anos a que está a fazer isto e pelo que já sacrificou. E eu sinto isso na pele. Já temos tantas barreiras à nossa volta, já é tão difícil sermos trabalhadoras independentes, fazermos aquilo que fazemos em Portugal e sermos mulheres a fazê-lo que fui aprendendo com os anos a ser mais livre em certas coisas”, completa Mariana.
“Não tive férias este ano, mas faço o que gosto, vivo disso e é incrível”
A arte enquanto profissão e fonte de rendimento também pode ser um losing game, que o digam as duas autoras. Aos 30 e com sete de carreira, Mariana deixou de viver com a ajuda do pai há três anos. Quando renunciou ao design, a área de formação, caiu de paraquedas no cubículo que é a ilustração em Portugal. Deu a volta por outro lado e começou a fazer exposições, primeiro pequeníssimas, depois pequenas.
Hoje, trabalha em duas frentes: peças que nascem unicamente do seu génio criativo, como as que fez para esta exposição, e trabalhos comerciais, encomendados por marcas e empresas. Os próximos passos são aumentar as vendas das primeiras e selecionar cada vez mais os segundos.
Não, não sou rica. Não, não é fácil. Sim, trabalho nos domingos, nos feriados e à noite. Não tive férias este ano, mas faço o que gosto, vivo disso e é incrível”, admite Mariana.
Maria Imaginário está no mesmo pé. Também há sete anos nestas andanças, só em maio é que conseguiu começar a viver apenas da sua produção artística. O sonho de viver dos quadros que vende demorou 15 anos a tornar-se realidade. Trabalhou em lojas, no Oceanário e em museus, primeiro para pagar o curso da Ar.Co, depois porque o que vendiam não chegava para pagar as contas. Entretanto, o cenário ficou mais risonho. Há mais encomendas de quadros e os que expõe vendem-se cada vez mais depressa.
Quanto à questão da bienal, Edna e Mariana preferem não fazer grandes promessas. Até aqui, foi o acaso a certificar-se de que todas as exposições da dupla cumpriam calendário, no futuro não há-de ser diferente. “Não sabemos onde é que vamos estar daqui a dois anos, mas vivemos bem com isso”, conclui Mariana.
A exposição “Love is a Losing Game” pode ser vista até 21 de novembro na Art Room, de terça-feira a sábado, das 14h às 19h.