A proposta da nova Lei de Bases da Saúde, de António Arnaut e João Semedo, defende a revisão do valor e das modalidades do financiamento do Serviço Nacional de Saúde e a discriminação positiva na prevenção da doença.
No documento enviado esta sexta-feira à Lusa e intitulado “Salvar o SNS”, os seus autores, António Arnaut, criador do Serviço Nacional de Saúde (SNS), e o antigo coordenador do Bloco de Esquerda João Semedo, esclarecem que “a grande e principal motivação política” desta proposta “é fazer regressar o SNS aos seus valores e princípios fundadores e constitucionais”.
Ou seja, “o direito à saúde para todos e assegurado pelo Estado através do SNS. Um SNS universal, geral e gratuito, de gestão integralmente pública, cuja prestação de cuidados obedeça a padrões de qualidade e humanidade e que se relacione com as iniciativas privadas e sociais na base da complementaridade e não da concorrência”.
A este propósito, os autores lembram que em 2016 o SNS pagou aos seus fornecedores e prestadores privados mais de 5 mil milhões de euros, estimando-se que entre 1,5 e 2 mil milhões de euros correspondam a serviços e prestações de saúde que o SNS “poderia e deveria assegurar sem necessidade de recorrer a prestadores privados”.
Em resumo – escreve o médico João Semedo – o que pretendemos é uma Lei de Bases da Saúde em linha com a lei do SNS, a lei Arnaut de 1979″, traduzindo e incorporando as mudanças ditadas pela modernidade e pela evolução da medicina e das ciências da saúde.
A proposta defende o regresso à gestão da administração pública e ao respeito das carreiras, contratos e direitos laborais e a reforma dos modelos de organização, funcionamento e articulação das unidades do SNS e destas com a comunidade.
Neste capítulo, da Organização do SNS, os autores defendem que em cada concelho pode existir e funcionar uma comissão concelhia de saúde, e que a lei pode prever a criação de modelos organizativos de coordenação e articulação entre unidades de saúde do SNS de uma determinada área geográfica, designados por sistemas locais de saúde.
Em relação às taxas moderadoras, referem que a lei pode prever a cobrança de taxa moderadora nas prestações de saúde realizadas em SNS ou por este convencionadas que não tenham sido prescritas por médicos ou outro profissional de saúde.
Sem prejuízo do número anterior, estão isentos de pagamento de qualquer taxa todos os cuidados prestados no domínio dos cuidados primários e nos serviços de urgência, incluindo o transporte do doente”, lê-se no documento.
António Arnaut, considerado o ‘pai’ do SNS, advogado e militante do PS, partido que ajudou a fundar, considera que “a dignificação das carreiras sempre foi uma das suas preocupações, mais do que o financiamento”.
“A sustentabilidade e a qualidade do SNS dependem essencialmente desse vínculo legal e afetivo. Sem profissionais motivados e respeitados não há SNS digno desse nome”, escreve Arnaut no documento, em forma de livro, publicado pela Porto Editora, que tem prefácio do bispo Januário Torgal Ferreira.
O médico e militante do BE João Semedo aponta os “três momentos-chave do assalto ao SNS”, que “promoveram e facilitaram a dinâmica privatizadora do SNS e a sua descaracterização como serviço público de saúde geral, universal e gratuito”.
Semedo cita a revisão constitucional de 1989, que introduziu o conceito de um SNS “tendencialmente gratuito” e acabou com a gratuitidade, a Lei de Bases da Saúde aprovada em 1990, que introduziu o conceito de concorrência entre o SNS e os operadores privados, e a transformação em 2002 dos hospitais públicos em sociedades anónimas.
Considera ainda que os principais erros e opções ideológicas que levaram à crise do SNS foram “o subfinanciamento crónico, a incapacidade de reformar o modelo assistencial e a secundarização das políticas de prevenção da doença e promoção da saúde, cuja despesa não chega aos 4% da despesa total em saúde”.
Sempre que há uma dificuldade orçamental é pela prevenção que começam os cortes. Os resultados estão à vista nos anos potenciais de vida perdidos em doenças evitáveis por alteração de hábitos e comportamentos: 19.300 no cancro do pulmão, 9.302 na infeção VIH/Sida e 4.300 na diabetes, segundo estudos publicados pela Direção-Geral de Saúde”, acrescenta.
Em seu entender, a prevenção da doença e a promoção da saúde, à exceção dos programas de vacinas, são a “grande aposta perdida, o maior fracasso da política de saúde”.
Semedo considera ainda que “muitos dos problemas que motivaram os processos de luta e de greve dos profissionais do SNS, ao longo deste ano, têm a sua origem na atual Lei de Bases”.
A intenção dos autores é que esta iniciativa política e editorial estimule um grande debate entre os portugueses, profissionais de saúde ou não, e uma ampla mobilização cívica em defesa do SNS, condições indispensáveis para que a nova Lei de Bases da Saúde, quando aprovada, seja bem melhor que a proposta agora apresentada.