Deviam ter sido 150 milhões de euros, mas só cinco milhões de euros chegaram aos consumidores de eletricidade. O conselho tarifário do regulador avisa que o regime legal da Contribuição Extraordinária sobre o Setor Energético (CESE) continua por cumprir — um regime criado no Orçamento do Estado de 2014 que previa que a receita obtida com esta taxa sobre as grandes empresas de energia fosse afeta ao Fundo de Sustentabilidade do Sistema Elétrico, para financiar políticas do setor energético de cariz social e ambiental e para abater ao défice tarifário.

Mas até agora, apenas foram transferidos cinco milhões de euros (relativos a 2016). “Transferências residuais”, face ao valor previsto de 150 milhões de euros, que levaram a Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE) a excluir da proposta de tarifas de eletricidade para 2018 qualquer contributo da receita com esta contribuição, ao contrário do que aconteceu nos últimos três anos.

O conselho tarifário do regulador é o órgão que integra os operadores do setor elétrico, autarquias e representantes dos consumidores. No seu parecer sobre a proposta de tarifas para 2018, divulgado na sexta-feira, o conselho avisa que a “ausência reiterada dessa transferência tem penalizado os consumidores, dado que não só não se registou uma redução de 145 milhões de euros da divida tarifária e do seu respetivo serviço (os juros pagos pelos clientes nos preços), como se continua a suportar juros — na ordem dos 600 mil euros por ano, quando se fazem os ajustamentos dos proveitos”, valores devidos às empresas e que são cobrados no preço da eletricidade.

A contribuição extraordinária sobre o setor da energia foi criada pelo anterior Governo e deveria assegurar uma receita anual de 150 milhões de euros, cobrada sobretudo às grandes empresas do setor — a EDP, a REN e a Galp. O seu regime previa que a receita fosse entregue ao Fundo de Sustentabilidade Sistémica do Setor Energético (FSSSE), por transferência do Governo, da qual sairia o dinheiro a usar em benefício dos preços e em outros projetos.

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O decreto-lei que cria este fundo em 2014 estabelece a consignação total da receita com a CESE para este mecanismo, fixando um máximo de cem milhões de euros para o financiamento de políticas energéticas de natureza social e ambiental, não especificadas. O resto da receita seria canalizado para a redução da dívida tarifária. E é este valor, que se previa serem 50 milhões de euros por ano, que está em falta.

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O défice tarifário corresponde à dívida dos consumidores às elétricas — essencialmente EDP — e pela qual têm de pagar juros anuais que estão incluídos no preço da eletricidade. Apesar de assinalar a redução de 743 milhões de euros no défice, o próprio secretario de Estado da Energia, Jorge Seguro Sanches, reconhece, na sua reação oficial à descida de 0,2% no preço da eletricidade em 2018, que o serviço da dívida representa mais de um terço das receitas do mercado final da eletricidade. Quase 1.800 milhões de euros em 2017.

Mas se as empresas são credoras do sistema, o sistema é credor do Estado que não tem cumprido a legislação que sustentou a criação da CESE, fundamentada como uma contribuição financeira para o sistema elétrico e não como um imposto. Foi aliás este destino consagrado na lei que sustentou um parecer recente do conselho consultivo da Procuradoria Geral da República em que se defende que a contribuição deve ser cobrada a todas as centrais elétricas que não podem repercutir os seus custos nos preços.

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O travão às transferências começou logo com o Governo PSD/CDS, por falta de resposta do Ministério das Finanças, um cenário que terá voltado a repetir-se com o atual Executivo, a avaliar pelos dados divulgados nos documentos que suportam a proposta de preços da eletricidade para 2018.

Transferência autorizada, mas já sem impacto nos preços de 2018

O Observador sabe que o Ministério das Finanças desbloqueou muito recentemente uma nova transferência para as tarifas. A decisão foi tomada num contexto de maior tranquilidade nas finanças públicas, mas já depois de estar concluído o processo de fixação das tarifas da eletricidade para 2018, onde se regista uma descida de preços, a primeira em 20 anos. A transferência só poderá ter impacto positivo nos preços de 2019. Fica uma almofada financeira para as tarifas de um ano, que por sinal até é de eleições legislativas, podendo compensar um eventual o impacto negativo que a seca venha a ter nos preços.

Mas tudo indica que o montante a passar para o sistema elétrico será inferior ao reclamado pelo conselho tarifário. A receita anual da CESE nunca chegou a atingir os 150 milhões de euros inicialmente previstos, tendo-se ficado por 90 milhões de euros. A EDP e a REN contestaram judicialmente o pagamento desta contribuição, mas a Galp, não se limitou a contestar, também não pagou. Além da receita ter ficado aquém do estimado, também já não será feita qualquer transferência relativa à cobrança de 2015.

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Sublinhando que a realização das transferências para o fundo é “uma garantia adicional” para o reforço do percurso que conduz ao equilíbrio do sistema elétrico, o conselho tarifário recomenda à ERSE que exerça as diligências necessárias junto da tutela para que sejam garantidas as transferências em falta acrescidas dos montantes de juros suportados pelos consumidores.

Na resposta ao conselho tarifário, a ERSE garante que tem feito diligências “de forma persistente e sem resultados”, e compromete-se a fazer todas as ações necessárias, no limite das suas competências, para “assegurar que sejam transferidos do FSSSE os montantes devidos ao sistema elétrico”. E acrescenta que serão “solicitadas às autoridades competentes esclarecimentos relativos à aplicação da CESE e às transferências do FSSSE”.

O regulador justifica a não inclusão de qualquer valor nas tarifas de 2018 com uma “abordagem prudente” que, no entanto, em nada “altera a interpretação da ERSE de que o sistema elétrico nacional é atualmente credor do FSSSE, nem altera as suas legítimas expetativas quanto às futuras transferências de montantes de CESE desse fundo para o SEN, que serão posteriormente consideradas para efeitos tarifários no cálculo dos ajustamentos finais. Dito do outro modo, qualquer montante transferido do FSSSE para o SEN será, naturalmente, deduzido, acrescido de juros, às tarifas calculadas no ano seguinte ao da transferência”.

Saldos de gerência da ERSE deviam ser devolvidos às tarifas, mas não foram

A contribuição sobre a energia não é a única receita que está a ser retida pelo Estado e que poderia beneficiar os preços da eletricidade. No mesmo parecer, o conselho consultivo alerta para devolução dos saldos de gerência acumulados pela ERSE — 11 milhões de euros desde 2009 — às tarifas elétricas. A medida, prevista nos estatutos da entidade reguladora aprovados em 2013, “teria um impacto positivo na formação das tarifas contribuindo para o seu desagravamento”, mas não foi concretizada.

A ERSE responde com as “várias insistências que tem desenvolvido junto dos departamentos ministeriais competentes, no sentido da entrega dos saldos de gerência aos consumidores, que o financiaram por intermédio das tarifas e que têm agora a expetativa, e o respaldo legal, de ver restituído tal valor por intermédio das mesmas, o que até ao presente não foi possível concretizar”. O saldo está depositado no IGCP (agência para a gestão da dívida pública) que é tutelado pelo Ministério das Finanças.