Os atores estão em palco para fazerem deles próprios. Confessam vitórias e derrotas, trazem memórias de quando começaram na representação, falam de audições em que participaram e expõem abusos de encenadores, realizadores e professores de teatro. Recordam espetáculos ou anúncios de TV em que já entraram. Mas o espectador não irá perceber se aquilo que cada um deles conta se passou mesmo com o próprio ou com o ator que está ali ao lado.

“Não é uma peça sobre métodos de representação, não é uma aula teórica, longe disso. É um olhar sobre o trajeto de cada um destes intérpretes e sobre os trabalhos que foram fazendo ao longo do tempo”, explica o encenador, Marco Martins. “É sobre a profissão de ator no contexto português, um contexto muito particular que obriga muitas vezes os atores a terem de fazer televisão, locução ou outras atividades que suportem a possibilidade de fazerem teatro ao mesmo tempo.”

A peça intitula-se “Actores” e estreia-se na quinta-feira, dia 11, no Teatro Municipal São Luiz, em Lisboa. Marco Martins – que ainda há poucas semanas encenou, com Beatriz Batarda, “Todo o Mundo é um Palco”, no Teatro da Trindade, e que é também realizador de filmes como “Alice” (2005) ou “São Jorge” (2016) – dirige aqui cinco atores: Bruno Nogueira, Carolina Amaral, Miguel Guilherme, Nuno Lopes e Rita Cabaço.

“Comecei no El Corte Inglés vestido de pastor a contar histórias a crianças no Natal”, diz um dos intérpretes. “Uma vez, um casal veio ter comigo, disseram que gostavam imenso de me ver e se alguma vez tivessem alguma coisa a três seria comigo”, recordam outros. Sucedem-se revelações e memórias aparentemente autobiográficas, que talvez sejam, afinal, o retrato das mil vidas que cada ator tem dentro e fora de cena. Se fosse um filme, seria um documentário de ficção.

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“Quando era pequeno o meu pai fugiu de casa e fiquei a viver com o meu irmão mais velho; quando tinha sete anos o meu pai morreu na guerra; já trabalhei numa orquestra, mas não sabia tocar instrumento nenhum; já fui um sem abrigo durante anos e depois recuperei; fui pastor de cabras aos seis anos; já estive presa porque engravidei do meu professor; já me raptaram uma filha; fui líder de um grupo de mulheres que rejeitou ter sexo para os homens não irem para a guerra.”

“Actores” dura cerca de duas horas e tem sete cenas, bem demarcadas aos olhos do público. Abre com uma projeção de fotografias e ilustrações bizarras, onde se veem médicos e doentes de outrora com rostos tristes ou pasmados, a fazer lembrar as máscaras do teatro grego clássico. Cenário branco, figurinos minimais. A banda sonora inclui Suicide e Giuseppe Verdi.

É um espetáculo aguardado com expectativa, dada a notoriedade do encenador e dos intérpretes. Há dias, num ensaio aberto à imprensa, uma cena marcante foi protagonizada por Nuno Lopes, transformado em homem das cavernas ou macaco em fúria, talvez uma demonstração de que o ator pode levar o corpo e a mente ao limite, a ponto de perder o controlo. O momento surge num vídeo de promoção da peça, divulgado pelo São Luiz:

https://www.youtube.com/watch?v=FgdJy93BJBo

Nos últimos dois meses, o encenador e os atores ensaiaram numa sala do Polo Cultural das Gaivotas, perto de Santos, em Lisboa – quase todos os dias, das 15h00 às 23h00, com pausa para jantar. Nesta quinta-feira mudaram-se para o São Luiz, o espaço definitivo. No verão estiveram em residências artísticas em Guimarães e Cascais e tiveram a colaboração dos bailarinos Vânia Rovisco e Victor Hugo Pontes, que os ajudaram na exigente fisicalidade do espetáculo.

“Essas duas residências serviram para explorar o trajeto de cada um dos intérpretes. Fiz entrevistas com eles e partir daí nasceu o texto. Gravei as entrevistas, ou conversas, como se queira chamar. Gravo sempre tudo em vídeo”, conta Marco Martins ao Observador. “É um instrumento de trabalho, um auxiliar de memória, mas muitas vezes nem volto a ver as gravações, porque a memória, por vezes, é melhor e mais seletiva Mas também há vezes em que me dizem coisas muito boas nas gravações e no período de ensaios essas coisas deixam de ser tão boas, por causa do processo de repetição. Aí volto ao vídeo. Não para mostrar aos intérpretes, mas para ver outra vez aquela coisa que tinha corrido bem na entrevista gravada e que quero usar no espetáculo dessa maneira. Às vezes é uma emoção, apenas, pequenas coisas que nem sabemos nomear e que é preciso ver outra vez.”

A câmara estática de Marco Martins testemunhou longas conversas que teve com os atores, durante as quais lhes pediu que contassem momentos fundamentais da vida pessoal e profissional. Episódios significativos, personagens que fizeram, sensações que experimentaram.

“Foi um processo atípico, porque a minha abordagem a uma personagem ou um texto nunca passa pelas experiências pessoais de cada ator. Nunca faço uma pergunta pessoal com o objetivo de aproveitar para uma personagem, não acho interessante. Trabalho muito mais a partir de observação e investigação. Em última análise, uso a imaginação para criar a maneira como a personagem se porta em determinadas circunstâncias. Aqui, pela primeira vez, falámos das nossas experiências da vida privada e de como isso afeta ou não o trabalho”, descreve o criador.

Pelo que se viu no ensaio, Marco Martins também entra como personagem, em voz off, fazendo de encenador abusivo em cenas que reconstroem audições de má memória. “Importa-se de repetir, de tirar os óculos, de soltar o cabelo, importa-se de falar mais alto”, diz o encenador-personagem.

“É uma multiplicidade de registos e desdobramentos”, explica Marco Martins ao Observador. “Parto de episódios da vida, mas ficamos no campo da ficção, a verdade está sempre no meio. As várias máscaras que o ator vai criando são uma das ideias do espetáculo. Outra ideia presente, e que foi por nós muito trabalhada, é a memória enquanto fonte de ficção. A nossa memória é ela própria uma ficção. Quando estou a contar um determinado acontecimento estou também a fazer uma reconstituição dos factos, de acordo com o que me lembro, com o interlocutor, com as circunstâncias.”

[excertos da atuação de Bruno Nogueira]

https://www.youtube.com/watch?v=xTsYEGOSFu0

Bruno Nogueira, Miguel Guilherme e Nuno Lopes já se cruzaram várias vezes com Marco Martins e essa foi uma das razões para terem sido convidados. Rita Cabaço está pela primeira vez a trabalhar com este encenador. Carolina Amaral foi uma escolha tardia, porque originalmente era Luísa Cruz quem entrava. O texto da peça assume a troca, com Carolina Amaral a incorporar traços biográficos de Luísa Cruz e a falar sobre isso. Esta atriz participou nos primeiros ensaios, e vem creditada na ficha técnica como cocriadora, mas em paralelo estava a trabalhar numa telenovela e acabou por não ter tempo para as duas tarefas.

A proposta é a de “olharmos para o trabalho de ator de forma desconstruída, o que por norma não se vê em palco”, diz o encenador. “O desgaste emocional é vivido de forma muito distinta por cada ator, são muito diferentes as abordagens à profissão e, em última análise, são muito diferentes as razões por que cada um deles tem esta e não outra profissão.”

“Actores” é apresentado entre 11 e 28 de janeiro na Sala Luís Miguel Cintra (sala principal do São Luiz) – quarta a domingo, às 21h00, com sessão extra ao domingo, pelas 17h30. No dia 21, terá audiodescrição e interpretação em língua gestual portuguesa.