As coisas eram simples e naturais nos velhos “monster movies” de há 50 e 60 anos. Os monstros, viessem eles de fora da Terra ou surgissem no nosso planeta, era criaturas ameaçadoras, hostis, destruidoras, sendo combatidas e derrotadas por um herói ou grupo de heróis. Agora, o cinema pede-nos que compreendamos o ponto de vista dos monstros, que empatizemos com eles, que nos metamos na sua pele. É o que acontece em “A Forma da Água”, de Guillermo del Toro. O realizador mexicano (“Nas Costas do Diabo”, “Hellboy”, “O Labirinto do Fauno”) esteve em conversações com a Universal para assinar o “remake” do clássico de Jack Arnold “O Monstro da Lagoa Negra” (1954), mas o estúdio rejeitou – compreensivelmente – a sua ideia de fazer o filme da perspectiva da criatura e rematá-lo com um final em que o monstro e a heroína vivem felizes para sempre.

[Veja o “trailer” de “A Forma da Água”]

Del Toro avançou então para o seu próprio projecto e escreveu, com a argumentista Vanessa Taylor, “A Forma da Água”, que é ao mesmo tempo uma homenagem a “O Monstro da Lagoa Negra”, e uma subversão tipicamente contemporânea do modelo tradicional dos “monster movies”. O filme passa-se em Baltimore, em 1962, pouco antes da Crise dos Mísseis de Cuba e com um vago pano de fundo de agitação ligada aos protestos pelos direitos civis. A muda e tímida Elisa (Sally Hawkins) é empregada de limpeza num laboratório ultra-secreto para onde foi trazida pelo brutal coronel Strickland (Michael Shannon), uma criatura anfíbia (Doug Jones) capturada no Amazonas, que o governo americano quer utilizar (nunca se percebe bem como) contra a URSS, que por sua vez infiltrou um espião (Michael Stuhlbarg) nas instalações, para sabotar as pesquisas.

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[Veja a entrevista com Guillermo del Toro]

https://youtu.be/wpU0T2ag9zY

Cópia descarada do humanóide aquático de “O Monstro da Lagoa Negra”, a criatura tem bom fundo, mas é maltratada e torturada pelo cruel Strickland, que só percebe de repressão e não de comunicação. Elisa, às escondidas, começa a entender-se com o monstro, à força de ovos cozidos e de música romântica, e quando percebe que o seu amigo anfíbio não vai ter um bom fim, decide passar à acção. Mas já muito antes disso “A Forma da Água” revelou ser um filme dominado pela mais chapada inverosimilhança. Por mais boa vontade que tenhamos, é impossível fazer a devida suspensão da descrença e aceitar a história que del Toro nos conta, tão mal construída está, tantas e tão grandes são as suas incoerências internas.

[Veja a entrevista com Sally Hawkins e Octavia Spencer]

Assim, “A Forma da Água” tem o laboratório ultra-secreto e super-seguro menos secreto e seguro da história do cinema fantástico e de ficção científica, sem guarda permanente nem controlo rigoroso de acesso. As empregadas da limpeza entram lá como se fosse a pensão da coxa, sem a menor supervisão, ficam sozinhas a trabalhar e os responsáveis nem sequer se preocupam em ocultar a criatura dos olhos delas. Elisa passa horas perdidas a partilhar ovos cozidos com o homem-peixe e a passar-lhe música num gira-discos. Só falta trazer uns peixinhos vermelhos para lhe fazerem companhia no tanque. Quanto à criatura, apesar dos seus poderes de cura, ressuscitação e auto-regeneração, e de aparentemente ser imortal, não tem força sequer para rebentar com os cadeados das grilhetas que a prendem. Isto para já não falar na sequência da evasão, digna de uma fita dos Três Estarolas, ou no sexo inter-espécies, demonstrando que, para certas mulheres, o cheiro a peixe pode ser afrodisíaco.

[Veja a entrevista com Michael Shannon]

Realizado tal como está escrito, às três pancadas, “A Forma da Água”, além de ser, sem querer, de rir às gargalhadas, é também um filme que embora se passe nos anos 60, preenche com zelo as caixinhas do formulário da correcção política actual. As personagens são “outsiders” e incompreendidas, vítimas de alguma forma de discriminação ou opressão social. Elisa é muda e solitária, Giles, o seu vizinho (Richard Jenkins) é homossexual, Zelda (Octavia Spencer), a sua colega e intérprete, é negra e desprezada pelo marido. E o que é a relação que se estabelece entre Elisa e o monstro aquático senão um hino à compreensão e aceitação da “diferença”, da “diversidade”, do “outro” – mesmo que com escamas, barbatanas e a cheirar a lota? Quanto ao malvado Strickland, acumula todos os defeitos: sexista, racista, hipócrita, violento e, claro, cristão. Ainda por cima, não lava as mãos depois de urinar.

Mau cinema fantástico com a “mensagem” político-social da moda embutida, “A Forma da Água” foi, incrivelmente (ou talvez não), nomeado para 13 Óscares. Hollywood não só já não sabe reconhecer peixe estragado quando o vê, como ainda por cima o quer premiar.