Os anúncios de emprego pedem “especialistas em redes sociais”, “operadores de internet”, “gestores de conteúdo” e “copywriters”. Na descrição das funções, conta uma investigação especial da cadeia de televisão finlandesa YLE, pedem-se pessoas “capazes de trabalhar na internet, de produzir conteúdo online para diferentes tipos de audiência e de reescrever textos”. É assim que se contratam trolls para a Agência de Pesquisa na Internet, a famosa “fábrica” em São Petersburgo, que teve 13 trabalhadores formalmente acusados pelo procurador-especial norte-americano Robert Mueller, encarregado de investigar possíveis ligações da campanha Trump ao Kremlin, or suspeitas de terem tentado influenciar as eleições presidenciais nos EUA.

A “fábrica” criou perfis falsos em redes sociais, escreveu posts, inundou caixas de comentários. O objetivo era o de influenciar as opiniões públicas internacionais, em especial a russa — num primeiro momento após o início da guerra na Ucrânia, depois em vésperas da eleição presidencial norte-americana. Ao todo, diz a revista Atlantic, 125 milhões de norte-americanos viram posts organizados pela “fábrica” no Facebook e mais de meio milhão interagiu com trolls russos. Mas como é ao certo o dia-a-dia de um troll na Agência de Pesquisa na Internet?

Os horários

A “fábrica” de São Petersburgo funciona 24 horas por dia, e há dois turnos de 12 horas a serem preenchidos pelos trabalhadores, que trabalham dois dias seguidos, descansam outros dois, e assim sucessivamente. “É preciso chegar precisamente a horas e trabalhar das nove da manhã às nove da noite”, revelou ao Washington Post um antigo funcionário, Marat Mindiyarov.

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Já em 2015, uma antiga trabalhadora, Ludmila Savchuk, tinha dado esta informação à revista do New York Times, garantindo que fazia turnos de 12 horas. “Às nove da noite em ponto havia uma multidão a sair do edifício. Às nove da noite em ponto”, contou.

Os salários

Os salários parecem variar consoante a importância das funções ocupadas, mas é consensual entre os ex-trabalhadores e a investigação de Mueller que são bem pagos, tendo em conta a média na Rússia.

O valor mais alto foi mencionado ao New York Times pelo antigo funcionário Aleksei, que disse ter sido atraído por um ordenado um pouco acima dos mil dólares. “Eu era jovem e não pensei nas questões morais. Escrevia porque adorava escrever, não estava a tentar mudar o mundo”, explicou. No mesmo artigo, outro ex-trabalhador, Sergei, diz que recebia cerca de metade.

Em 2015, um artigo do jornal Guardian sobre a “fábrica” dizia que o salário mais alto era de cerca de 900 euros, pago apenas aos trolls que escrevia em língua inglesa. Já Savchuk, a ex-funcionária que falou com a revista do New York Times, garante que o seu salário era de cerca de 600€, “quase tanto como ganha um professor universitário”. Nenhum trabalhador tinha contrato escrito, mas todos assinaram um acordo de confidencialidade.

As tarefas

Savchuk explica que na “fábrica” os funcionários estão distribuídos por departamentos que tratam de cada rede social: LiveJournal, VKontakte (estas duas populares na Rússia), Facebook, Twitter, Instagram e caixas de comentários. A antiga trabalhadora conta que a sua função no departamento de Projetos Especiais era a de criar personagem virtuais no LiveJournal, que deveriam parecer pessoas reais. Para isso, postava sobre temas mundanos como dietas ou feng shui e, pelo meio, opinava sobre política. “A cada dois turnos, tinha de atingir uma quota de cinco posts políticos, dez posts não políticos e 150 a 200 comentários em posts de outros funcionários.”

Lyudmila Savchuk, a ex-trabalhadora da Agência (AFP PHOTO / OLGA MALTSEVA)

Marat, que falou ao Washington Post, corrobora agora esse relato de 2015, dizendo que tinham instruções específicas como o número de comentários que tinham de fazer por dia (135) e o número de caracteres que cada um deveria ter (200). Para além disso, havia uma lista com os tópicos que deveriam ser abordados nesse dia: “O Presidente Vladmir Putin ou o Presidente Barack Obama, ou os dois juntos; a Ucrânia; o heroísmo do ministro da Defesa russo; a guerra na Síria; a oposição russa; o papel da América na difusão do vírus Ébola”, ilustra o New York Times.

Em 2015, o Guardian contava que os funcionários deveriam basear-se na informação disponível no site Ruxpert, definido como uma Wikipédia russa “patriótica”.

Primeira fase: a guerra na Ucrânia

De acordo com os relatos de ex-trabalhadores e a investigação de vários media, no início a “fábrica” tinha como principais objetivos promover uma visão do mundo de acordo com os interesses do Kremlin, sobretudo na sequência da invasão da Crimeia e da guerra no leste da Ucrânia. Em 2015, por exemplo, um antigo funcionário contava uma instrução que recebeu para fazer um post que ilustrasse como Putin se apressou a prestar condolências a François Hollande, na sequência do ataque ao jornal satírico Charlie Hebdo.

A investigação da YLE também descobriu outros exemplos, como uma história partilhada de forma viral sobre um alegado avião ucraniano que teria sido o responsável pela queda do avião da Malaysia Airlines no leste do país — a foto utilizada para ilustrar o artigo era falsificada. E recolheu várias das frases repetidas em diversos posts e comentários, como o uso da palavra “fascistas” para descrever os soldados ucranianos.

Segunda fase: as eleições nos EUA

A Agência de Pesquisa na Internet percebeu rapidamente o potencial de se focar nos internautas norte-americanos e aproveitou as eleições presidenciais para tentar desestabilizar o eleitorado. Marat, o trabalhador que falou com o Washington Post, recorda que tentou transferir-se para o departamento do Facebook — onde o salário era mais alto –, mas não conseguiu porque os seus conhecimentos de inglês não eram suficientes.

Segundo o jornal russo RBC, citado pelo Vox, cerca de 90 trabalhadores foram colocados na “secção EUA” no outono passado. Também o jornal russo em língua inglesa Moscow Times confirmou a existência deste departamento, explicando que as instruções dadas passavam por lições de gramática inglesa e ordens para assistir à série “House of Cards”.

Robert Mueller, procurador-especial nomeado para investigar as ligações da campanha Trump à Rússia, que acusou 13 trabalhadores da Agência (Alex Wong/Getty Images)

Entre os tópicos abordados pelos trolls deste departamento, rapidamente os ataques a Hillary Clinton se tornaram regra, de acordo com a investigação do FBI. O New York Times conta que as hashtags  #Trump2016, #TrumpTrain [O Comboio de Trump], #MAGA [sigla do slogan de campanha “Make America Great Again”] e #Hillary4Prison [Hillary para a Prisão] foram várias vezes usadas pelos trolls russos. Outros exemplos são a publicação de posts que comparam Clinton a Hitler ou as fotomontagens com Bin Laden. A acusação garante que os próprios trolls criaram uma conta falsa de Twitter para representar o Partido Republicano no Tennessee, que chegou a ter mais de 100 mil seguidores e cujos posts foram retweetados por Michael Flynn e Kellyanne Conway. Já para não falar do próprio Donald Trump.

Os truques tecnológicos

A acusação de Mueller também destapou os meios tecnológicos avançados utilizados por esta agência. De acordo com o FBI, a “fábrica” roubava números de Segurança Social norte-americanos que combinava com fotos falsas e contas PayPal, para dar a ilusão de que muitas contas pertenciam a pessoas reais. O site The Verge conta ainda que os trabalhadores utilizavam VPN (redes privadas virtuais) que davam a ilusão de estarem a utilizar a internet através de uma rede norte-americana e não a partir da Rússia.

Dentro do edifício de São Petersburgo, os computadores estavam programados para todos os posts serem encaminhados para todas as contas falsas da rede, que abririam os posts, a fim de criar números de visualizações de página mais altos e interferir com os algoritmos das redes sociais.

Quem financia a Agência?

A investigação do FBI aposta em Evgeny Prigozhin, um oligarca russo conhecido como “chef do Kremlin” pelas suas ligações a serviços de catering da presidência. Os media russos já avançavam com essa suspeita desde pelo menos 2015, tendo uma jornalista do Novaya Gazeta descoberto que um dos gestores de equipa era empregado da Concord, uma holding de Prigozhin. Para além disso, há uma fuga de emails que dá conta de alegados pagamentos diretamente da Concord para a Agência.

O ambiente de trabalho na “fábrica”

Os antigos trabalhadores são unânimes nas queixas, ou não tivessem acabado por sair — uns, como Savchuk, desiludidos, outros, como Sergei, simplesmente esgotados com o ritmo de trabalho. A maior parte queixa-se do ambiente de trabalho. “Pintam um cenário de um local sem graça e draconiano, com multas para os que chegam atrasados ou que não atingem um determinado número de posts por dia”, relatava já o Guardian em 2015.

É como uma linha de produção, toda a gente está ocupada a escrever alguma coisa. Há a sensação de que se chegou a uma fábrica e não a um lugar criativo”, ilustrou Marat Mindiyarov. “Cheguei lá e senti-me imediatamente como uma personagem do 1984 de George Orwell — um lugar onde se tem de escrever que o branco é preto e que o preto é branco.”