Mais de 250 pessoas, incluindo dezenas de crianças, morreram entre segunda e terça-feira em Ghouta oriental, um enclave rebelde nos arredores da capital síria, Damasco, durante vários bombardeamentos levados a cabo pelas forças do regime de Bashar al-Assad. De acordo com o Observatório Sírio para os Direitos Humanos, este foi o ataque mais mortífero naquela zona desde o ataque químico de 2013 que matou centenas de pessoas (alguns relatórios colocam atualmente o número de mortos desse ataque em cerca de 1.400).
É aquilo a que um médico, cujo testemunho já se tornou um símbolo deste ataque, descreve como o “massacre do século XXI“.
Numa tentativa de recuperar aquele enclave na zona oriental da cidade de Damasco, que continua nas mãos dos rebeldes sírios que lutam contra as forças do regime de Assad, o governo sírio avançou para um ataque de peso contra a região, onde se estima que vivam cerca de 400 mil pessoas. Os ataques noturnos destruíram ou danificaram pelo menos cinco hospitais e dezenas de casas.
Segundo voluntários das organizações humanitárias presentes no local citados pela imprensa internacional, dezenas de crianças estão entre as vítimas mortais, com famílias inteiras a terem sido retiradas sem vida dos escombros. Entre as vítimas estão também vários médicos e enfermeiros, uma vez que parte dos ataques foram dirigidos a hospitais.
“Isto é uma guerra? Não, é massacre”. Morreram mais de 90 pessoas em Ghouta oriental
Num vídeo partilhado nas redes sociais por elementos leais ao regime é possível ver o general Suheil al-Hassan, que está à frente de uma brigada do exército sírio, a lançar ameaças antes do ataque. “Prometo, vou ensinar-lhes uma lição, no combate e no fogo. Não vão encontrar quem vos resgate. E se encontrarem, vão ser resgatados com água como se fosse óleo a ferver. Vão ser resgatados com sangue”, diz al-Hassan, segundo uma tradução do The New York Times.
“Podemos morrer a qualquer momento”
Os testemunhos de quem vive em Ghouta dão conta de um desespero total, com a maioria dos residentes a fecharem-se em casas e bunkers para resistir o mais que podem aos ataques. “Podemos morrer a qualquer momento. Nunca se sabe de onde podem vir os rockets para acabar com as nossas vidas”, disse ao The New York Times Tareq al-Dimashqi com a sua mulher e com a sua filha, de apenas cinco meses.
“Ainda estamos vivos, não podemos andar fora da casa, nem mesmo uns poucos metros”, acrescentou Dimashqi, sublinhando que ele e a mulher estão a passar dificuldades para alimentar a filha Loulou. “Só tenho esta bebé e não conseguimos encontrar comida para ela. Não temos outra opção a não ser resistir até ao último momento. A morte e a vida tornaram-se iguais para mim”, disse.
Um outro residente, Shadi Jad, pai de uma criança com apenas três semanas, disse ao mesmo jornal que o filho não viu o sol nem respirou ar puro durante 48 horas. “Temos uma pequena janela no nosso abrigo. Levo-o para junto da janela alguns segundos para ele apanhar um pouco de calor do sol“, contou Jad.
“Os civis nunca foram autorizados a sair” de Ghouta, conta um outro habitante, Wassim Khatib, sublinhando que as negociações que poderiam levar à evacuação das pessoas que ali vivem não foram bem sucedidas. “Se o regime quisesse que os civis fossem evacuados, podiam ter anunciado isso ou pelo menos deixado folhetos”, comentou.
Ao jornal britânico The Guardian, um médico de Ghouta contou um testemunho que tem estado a correr o mundo. “O que é maior terrorismo que matar civis com todos os tipos de armas? Isto é uma guerra? Não é. É chamado massacre”, disse o médico, sublinhando que o mundo está “perante o massacre do século XXI”.
“Há pouco, veio ter comigo uma criança que tinha a cara azul e mal respirava, com a boca cheia de areia. Esvaziei-a com as minhas mãos. Acho que o que fazemos aqui não vem em nenhum manual de medicina”, disse ainda o médico.
O ataque levou a Unicef a publicar um comunicado em branco. “Nenhuma palavra fará justiça às crianças mortas, às suas mães, aos seus pais e aos seus entes queridos”, lê-se na frase que antecede um comunicado em branco. Numa nota aos jornalistas sobre este comunicado, a Unicef explica que lança uma declaração em branco por já não ter palavras para descrever o sofrimento das crianças. “Os que infligem este sofrimento ainda têm palavras para justificar os seus atos bárbaros?”, pergunta a organização.
O que é o enclave de Ghouta oriental e porque foi atacado?
Desde que a guerra civil estalou na Síria em 2011 — com os rebeldes a lutarem pela destituição de Bashar al-Assad, o governo a contra-atacar com os apoios russo e iraniano, com o Estado Islâmico a combater uns e outros, e com os curdos no norte do país a agravar a situação –, o conflito evoluiu rapidamente para uma guerra de todos contra todos.
O enclave de Ghouta é um subúrbio da capital, Damasco, que está sob o controlo dos rebeldes e que tem sido palco de alguns dos confrontos mais violentos entre forças leais ao regime e oposição. Em agosto de 2013, o governo lançou naquele enclave um dos mais mortíferos ataques químicos dos últimos anos, com centenas de pessoas a morrerem devido à utilização de gás sarin. Pelo menos 300 pessoas morreram, mas a contabilização do governo dos Estados Unidos chegou aos 1.429.
Em tempos, aquela zona, onde grandes prédios habitacionais conviviam com extensas áreas verdes, já foi uma das zonas mais frequentadas de Damasco, onde as famílias passeavam e faziam piqueniques durante o fim de semana. As estimativas apontam para cerca de 400 mil habitantes no enclave, mas o governo sírio tem argumentado que há neste momento muito poucos civis a residir em Ghouta oriental, e que os que lá vivem estão a ser usados pelos rebeldes como escudos humanos.
Ao mesmo tempo que o exército sírio bombardeava o enclave rebelde de Ghouta, milícias leais ao regime avançavam no norte do país rumo ao enclave curdo de Afrin para apoiar as mílicias curdas no combate contra a Turquia. No mês passado, forças turcas cruzaram a fronteira para lançar um ataque e expulsar os curdos daquela região. O apoio sírio aos curdos poderá agora fazer escalar a tensão na zona norte do país.