Desde que Greta Garbo foi uma Mata Hari muito fantasiosa e “kitsch” no filme de 1931 com o mesmo título, que as mulheres não têm tido muita sorte com as personagens de espias ou agentes secretas no cinema. Nunca houve o equivalente feminino de um James Bond, um Harry Palmer, um George Smiley ou mesmo um Matt Helm. As tentativas mais recentes, por exemplo, têm sido desastrosas: o absurdo “Salt”, de Phillip Noyce, com Angelina Jolie no papel de uma agente da CIA acusada de ser espia dos russos, e o espalhafatoso “Atomic Blonde-Agente Especial”, de David Leitch, em que Charlize Theron interpreta, sem pinga de verosimilhança, uma agente do MI6 enviada em missão para Berlim pouco antes da queda do muro. E há ainda a inofensiva comédia “Spy”, de Paul Feig, onde Melissa McCarthy faz uma analista da CIA que se oferece como voluntária para ir combater um super-vilão.
[Veja o “trailer” de “Agente Vermelha”]
E eis que Jennifer Lawrence entra em jogo em “A Agente Vermelha”, de Francis Lawrence, adaptado do livro de Jason Matthews, um ex-operacional da CIA. Ela interpreta Dominika Egorova, uma primeira bailarina do Bolchoi que parte uma perna em palco e não pode voltar a dançar, o que significa que irá perder todos os privilégios que vêm com o seu estatuto. Nomeadamente, o apartamento onde vive com a mãe doente e a enfermeira que cuida dela. O tio de Dominika (Matthias Schoenaerts) tem uma importante posição nos serviços secretos e, para manter todas as suas regalias, ela é recrutada a contragosto para uma escola dos serviços secretos, onde raparigas e rapazes escolhidos a dedo (os “sparrows” do título original da fita, “Red Sparrow”) são implacavelmente ensinados a usar os seus corpos e mentes para executar missões especiais. E cabe a Dominika seduzir um agente da CIA (Joel Edgerton) que “gere” um informador russo altamente colocado no poder.
[Veja a entrevista com Jennifer Lawrence]
Francis Lawrence (que já dirigiu Jennifer Lawrence na série “Hunger Games”) e o argumentista Justin Haythe parecem ir tentar que “A Agente Vermelha” não repita os lugares-comuns e as convenções barbudas do filme de espionagem do tempo da Guerra Fria, começando logo pela novidade da personagem principal. Embora seja isso que a fita acabe depressa por fazer, num novo contexto político e geoestratégico, tendo em conta que a “ameaça russa” foi ressuscitada nos EUA e no mundo ocidental, e o Kremlin de Vladimir Putin é agora alvo de uma campanha de diabolização contínua junto da opinião pública (Putin, aliás, que nunca aparece na fita, mas é várias vezes referido por algumas das personagens do lado russo da história). Qualquer ilusão que “Agente Vermelha” poderá aspirar a navegar perto, ou mesmo nas águas turvas de um John Le Carré ou de um Len Deighton, desfaz-se rapidamente. Até adivinhamos à distância a identidade do traidor russo.
[Veja a entrevista com o realizador Francis Lawrence]
O que não é nada do tempo dos velhos filmes de acção e espionagem da Guerra Fria, é a violência muito gráfica e a abundância de sexo e nudez (muito à custa da própria Jennifer Lawrence, nesta altura a actriz mais bem paga do mundo) que o enredo contempla. Só que para o caso tanto faz, porque Francis Lawrence é um realizador indiferente e sem estilo, o argumento dá tantas voltas e reviravoltas que às vezes lhe perdemos o norte, a caracterização das personagens é superficial, Edgerton e Lawrence não têm a menor química — é como se estivessem a tentar fazer faísca no meio de uma tempestade de neve em Moscovo –, e a própria actriz não fica bem servida com este papel. Não se pode tirar de uma personagem aquilo que ela não tem. E Dominika tem muito pouco para se espremer.
[Veja a entrevista com Joel Edgerton]
“A Agente Vermelha” tem a participação, na maioria dos papéis secundários, de um vistoso ramalhete de actores, quase todos britânicos – Jeremy Irons num general impassível, Charlotte Rampling na gelada directora da escola dos agentes especiais, Joely Richardson na mãe de Dominika, Ciaran Hinds num ministro todo-poderoso. E todos sem excepção (incluindo a própria Jennifer Lawrence) falam inglês com aquele sotaque russo de anedota que nunca ninguém se lembrou de arquivar, por ridículo e abundantemente gozado nas muitas paródias feitas a este género. Os regimes vão e vêm, as ideologias desabam e extinguem-se, o equilíbrio de forças das superpotências altera-se, mas há coisas que nunca mudam nos filmes de espionagem. Começando pelos sotaques involuntariamente cómicos.