Poucos autores seriam mais indicados para abrir a edição deste ano do Festival Literário da Madeira (FLM) — que tem como tema “Literatura e Jornalismo, a palavra que prende e a palavra que liberta” — do que Mick Hume e Ricardo Araújo Pereira. O primeiro, jornalista e escritor britânico, ficou particularmente famoso depois de publicar o livro Direito a Ofender: A liberdade de expressão e o politicamente correcto, em 2012; o segundo, dispensa apresentações entre os espectadores e leitores portugueses. Os primeiros a subir ao palco do Teatro Municipal Baltazar Dias, no Funchal, nesta oitava edição do FLM, Hume e Araújo Pereira conversaram durante cerca de uma hora sobre a importância da liberdade de expressão e o que ela significa nos dias de hoje, numa troca de ideias moderada pelo jornalista João Paulo Sacadura.

Mick Hume, que passou “a vida inteira” a defender a liberdade de expressão, até para aqueles que preferia não ter de escutar, começou a conversa desta terça-feira por afirmar que vale sempre a pena “dizer tudo o que queremos dizer”. “O direito a ofender é muito importante para a liberdade de expressão”, disse o autor perante uma casa cheia. “Não podemos ter liberdade de expressão se isso significa [apenas] que podemos concordar com tudo. Tem também de significar que podemos discordar com tudo. Não podemos dizer que temos direito à liberdade de expressão se esta acaba quando dizemos alguma coisa que as pessoas consideram demasiado ofensiva ou que foi demasiado longe. A corrente dominante não precisa de ser defendida. Nunca ninguém proibiu um livro por ser demasiado aborrecido. Talvez devessem tê-lo feito, mas ninguém o fez… Este é o meu ponto de partida”, explicou.

Isto significa que “podemos ser ofendidos” e que “temos o direito de ser ofendidos”. “Também nos podemos sentir ofendidos, mas não me podem dizer que não posso dizer determinadas coisas”. Até porque isso vai de encontro aos princípios básicos da liberdade de expressão, que estão a ser ameaçados com o recurso à ofensa, hoje usada “para acabar com o argumento político”. “Existe o direito à liberdade de expressão e à liberdade de ouvir tudo para podermos julgar o que é verdade.” Ou seja: cada pessoa deve ser livre de dizer o que quiser — até as coisas mais chocantes –, para que os outros possam construir a sua própria opinião. Sem filtros ou paninhos quentes.

A conversa entre os dois autores foi conduzida pelo jornalista João Paulo Sacadura, no Teatro Municipal Baltazar Dias, no Funchal

Ricardo Araújo Pereira defendeu a mesma opinião. “O arquiteto [José António] Saraiva disse que, se ele mandasse, os homossexuais não podiam fazer operações. Aqui não há só um valor, há vários. Não estou só a garantir o direito do arquiteto Saraiva de falar — estou a garantir o meu direito de o ouvir. Por uma questão de higiene — quero saber onde é que ele está para poder atravessar para o outro lado”, exemplificou o humorista, defendendo que proibir determinadas opiniões impede que estas sejam contestadas. “Calar essa ideia não é rebater essa ideia. O arquiteto Saraiva deve poder voltar a dizer aquilo. A nossa sociedade já entendeu que há pessoas que nascem num corpo que não corresponde àquilo que pensam de si próprias. As coisas que ele diz não causam dano a ninguém. O país não vai voltar atrás. Ele está a dizer aquilo e há pessoas a dizer o contrário. E com melhores argumentos.”

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Isto não significa, contudo, que não existam alturas em que a decisão mais prudente é “não dizer tudo”. Mas é importante que seja possível tomar essa decisão. “Decidir não o fazer é completamente diferente de não o poder fazer”, afirmou Mick Hume, para quem as palavras não são uma ameaça. “Uma ameaça é quando a expressão, as palavras, se tornam parte de uma ação. Mas expressar uma opinião violenta não é a mesma coisa. As palavras estão, cada vez mais, a ser tratadas como se fossem um crime — um crime violento. Se disser que ‘odeio ruivos e que todos os ruivos deviam desaparecer’, isso é uma opinião ofensiva. Se disser ‘vamos atirar aquele ruivo de um penhasco’, deixa de ser uma opinião e passa a ser uma ação.” É aí que está a diferença.

“O humor coloca problemas à liberdade de expressão que outro tipo de discurso não provoca”

Questionado sobre os limites do humor, Ricardo Araújo Pereira admitiu que existem algumas coisas sobre as quais não tem interesse em falar. Porém, não lhe passa pela cabeça “determinar quais os termos sobre os quais o olhar humorístico pode pousar, pode deter-se ou não”. Até porque, se se começasse a limitar o que pode ou não ser fruto de uma piada, a certa altura, “não sobrava nada”. “Isto é a minha experiência e penso que posso garantir-vos isso”, afirmou, dando como exemplo uma rábula feita pelos “Gato Fedorento” acerca do computador Magalhães.

“O Sócrates estava a tentar convencer-nos de que a salvação do país era o Magalhães e nós tratamos o Magalhães como o Messias. Realizámos uma eucaristia para o Magalhães. Uma vez que aquilo tinha uma ligação com religião, no dia seguinte, houve protestos. O porta-voz da Conferência Episcopal disse que uma coisa era fazer humor com as ondas do mar, outra era brincar com a eucaristia. Aposto com vocês que, se um dia, fizer um programa sobre ondas do mar que assim que acabar vou receber queixas de toda a gente para quem o mar é sagrado.” Araújo Pereira admitiu que “é muito natural que as pessoas façam isso”, mas isso não significa que se deva “selecionar os temas”. “Se o fizermos, é óbvio para mim que deixamos de ter sobre o que falar.”

Tudo isso está relacionado com o facto de “o humor colocar problemas à liberdade de expressão que outro tipo de discurso não provoca” até porque, muitas vezes, o “discurso humorístico extravasa, na aparência, os limites tradicionais da liberdade de expressão”. “Posso escrever num jornal que acho que os mercadores de milho estão a matar pessoas à fome com a sua política de preços, mas não posso dizer isso se estiver em frente a uma multidão [de mercadores de milho] armada.” Nesse sentido, o “contexto é importante”. Contudo, para que isso “seja válido”, as pessoas têm de saber interpretar o que é dito. “Há quem ache que é perigoso as pessoas ouvirem determinadas coisas porque não vão saber o que é ironia. Sempre me recusei a tratar o público como um conjunto de vegetais em casa, à espera de ser impressionado com a primeira coisa que ouve”, afirmou o humorista.

Durante o encontro desta terça-feira, dia de abertura do FLM, Mick Hume e Ricardo Araújo Pereira discutiram o tema da liberdade de expressão

Para Ricardo Araújo Pereira, é também importante perceber do que é que se fala quando se fala em politicamente correto, expressão que se liga intimamente com o “direito a ofender”. “Todos os historiadores que tenho lido concordam que é muito difícil de definir”, afirmou o autor. “O conceito é de origem obscura e é preciso andar à procura da maneira como foi mudando.” Ultimamente, tem sido muito associado ao conceito de “boa educação”. Contudo, “a boa educação não muda com esta velocidade”. “Aquilo que era boa educação há duas semanas, hoje é profundamente ofensivo. A boa educação não muda assim”.

Mick Hume, por seu turno, admitiu que esta é uma questão de que se tem falado muito no Reino Unido, criticando a defesa, por parte de alguns grupos LGBTI, do uso de pronomes neutros em vez daqueles que têm géneros definidos. “Quando chegamos ao ponto de não podermos usar os pronomes femininos e masculinos, passamos para lá das boas maneiras”, disse. “Estamos a falar de um novo discurso, de mudar a língua para corresponder ao conceito de alguém de boas maneiras.” Posição também defendida por Ricardo Araújo Pereira, que alertou para a fragmentação da esquerda, hoje mais preocupada em criar pequenos grupos do que em “reunir uma maioria”.

Apesar do cenário negro pintado pelos dois convidados, Mick Hume, já perto do final da sessão, admitiu ser um otimista. Defendendo que aquilo que “pensamos da liberdade de expressão reflecte sempre o que pensamos sobre a humanidade”, Hume explicou que a “reviravolta anti-humana na nossa cultura” ajuda a explicar a forma como a liberdade de expressão é encarada hoje em dia. Isso, porém, há-de acabar. E aí todos vão entender que a liberdade de expressão é a melhor forma de construir um mundo melhor.

O Observador está na Madeira a convite do Festival Literário (FLM), que decorre até sábado no Teatro Municipal Baltazar Dias, no Funchal. O programa completo pode ser consultado aqui