O Prémio LeYa vale 100 mil euros. O Prémio Oceanos orça 25 mil. E o Prémio Jabuti fica-se por nove mil. Já o novíssimo Babel Book Award, atribuído pela Fundação Weltsprachen, e este ano dedicado à produção inédita de não ficção em língua portuguesa, oferece uns rendosos 200 mil euros. O problemas está em que o prémio talvez não exista, a Fundação Weltsprachen também não e o site oficial, babelbookaward.com, igualmente — desligado há dias pelo programador informático, que lá deixou uma declaração a exonerar-se de responsabilidades.

O rocambolesco episódio envolve Júlio César Pereira, que usa o pseudónimo literário Antonio Salvador (sem acento), musculado, barba e cabelo crespo, nascido em 1980 no Rio Grande do Norte. “Uma série de evidências liga um escritor brasileiro radicado na Alemanha ao Babel Book Award, prémio literário falso que tem causado preocupação em escritores”, escreveu a “Folha de S. Paulo” na semana passada.

Em entrevista exclusiva ao Observador, Antonio Salvador disse que não é criador do prémio, apenas trabalha como consultor jurídico da suposta Fundação Weltsprachen (inexistente na internet). Mas garantiu: “O prémio existe, é real, e até julho assumirá todas as fases de avaliação e atribuição. O site saiu do ar por causa de toda esta perseguição, mas está a ser atualizado e vai voltar esta semana.”

Ele tem explicação para todas as acusações, mas há ainda muitas pontas soltas. Será que a realidade ultrapassou a ficção?

Manto de mistério

Ao que contou o jornalista Maurício Meireles, a 12 de março, na “Folha de S. Paulo”, quem fez soar os alarmes foi Paulo Werneck, editor da revista literária “Quatro Cinco Um”, que tinha dado à estampa um anúncio sobre o concurso para atribuição do prémio Babel. “Um anúncio comercial pago de um prémio literário que aparentemente não existe e vem sendo objeto de questionamento no meio literário e editorial”, lia-se a 1 de março no Facebook da “Quatro Cinco Um”. “O objetivo seria, segundo esses boatos, se apropriar de originais inéditos enviados por autores inscritos.”

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Paulo Werneck não sabe dizer quem pagou para publicar o anúncio. E assegura que em janeiro deste ano o verbete “Antonio Salvador“, na Wikipedia brasileira, foi “criado ou recriado por um perfil aparentemente falso, identificado como Jricconne”.

António Salvador nega ter sido ele a contactar a revista literária para que esta publicasse o anúncio. “Não fui eu, de jeito nenhum”, afirmou ao Observador. Considera que Paulo Werneck foi “arrastado pela maré de boatos” e classifica-o como “corifeu”, porque agora ele “lidera o coro da tragédia grega” em torno do Babel Book Award.

O concurso começou a ser falado ainda em dezembro e estaria na terceira edição. Admitiria “romances inéditos escritos em português”, devendo os autores ter no currículo “comprovado número de publicações não inferior a duas obras”. A inscrição aconteceria apenas por correio eletrónico, “visando a democratização do envio”. Cada escritor teria de remeter um romance sob pseudónimo e só depois seria contactado para fazer o envio dos dados pessoais.

As inscrições terminariam a 31 de março, com os resultados a serem divulgados em julho. Vários autores, incluindo pelo menos uma escritora portuguesa, enviaram originais ou tencionavam fazê-lo. Escritores e agentes contactados pelo Observador não se mostraram disponíveis para falar sobre o caso.

Segundo o jornal “O Globo”, o site do Babel Book Award dizia que cada edição é consagrada a literatura de diferentes línguas e que em 2016 e 2017 o prémio foi entregue, respetivamente, à escritora austríaca Ilse Aichinger, que morreu naquele ano, e ao contista bangladeshiano Hasan Azizul Huq, cuja entrada na Wikipedia foi alterada para que dela constasse o galardão, o que entretanto foi corrigido.

O Observador conversou por telefone com Antonio Salvador, através de um número com indicativo da Alemanha, ainda que o próprio tenha dito que estava em São Paulo. “Moro em Berlim, mas venho ao Brasil ocasionalmente”, justificou. “Na minha atividade como escritor sou Antonio Salvador, e na vida normal, incluindo na advocacia, sou Júlio César Pereira.”

“Sou contratado pela Fundação Weltsprachen, o meu contrato vai até outubro, que é quando acontece a prestação de contas. Entrei em janeiro, tive uma reunião em Roma com algumas pessoas envolvidas, com alguns jurados, e tomei parte como consultor jurídico”, explicou. “Há muitos profissionais envolvidos no prémio Babel, inclusivamente gente de Portugal, de Angola, da Alemanha, eu e suíços, claro, porque a fundação é da Suíça.” Questionado sobre quem são esses portugueses, disse: “Não posso responder, por uma questão de sigilo profissional. Há uma pessoa de nacionalidade portuguesa, é um jurado.”

Quanto aos alegados vencedores de 2016 e 2017, Salvador não soube responder “porque não trabalhava para a fundação nas edições anteriores”.

Na semana passada, o escritor suspeito já tinha publicado um texto justificativo no Facebook, sob a forma de auto-entrevista. Texto que no fim — note-se bem — incluía a referência “Berlim, segunda-feira, 14 de março de 2018”, dia da semana obviamente errado, porque 14 foi quarta-feira.

https://www.facebook.com/antoniosalvadorbr/posts/2010776105616709

O que visto de fora é mistério e equívoco, na opinião de Salvador é uma “onda de incompreensões” que “cria uma aura mítica em torno do prémio” e isso é nada menos que “hilário”.

Segundo o escritor, antes da primeira notícia na “Folha de S. Paulo” já corriam boatos sobre o Babel Book Award. Na entrevista ao Observador, apresentou as várias teses e a respetiva explicação e admitiu que há um elemento performático nesta história.

Foi aventada a possibilidade de o prémio ser falso e de ter como finalidade roubar originais. É uma hipótese de alguém de má-fé ou de alguém que não conhece o mercado da literatura. Ninguém quer saber de literatura brasileira em lugar nenhum, é um facto. Nem de graça, roubada muito menos. Também diziam que seria uma brincadeira. Jamais eu faria esse tipo de brincadeira com autores, com pessoas. Um escritor mexicano, Mario Bellatin, de quem gosto muito, escreveu um livro hoje clássico, ‘Salão de Beleza’. Ele faz algumas performances, inventa conferências que não existem, cria espetáculos teatrais para mobilizar as pessoas e depois não há nenhuma estreia. Por conta disso, alguém terá pensado que este prémio seria também uma performance. Só posso responder com a verdade: todos os prémios são uma performance, porque querem de alguma forma influir na história da literatura. O Babel é performático como qualquer outro prémio.”

Anúncio do prémio, publicado pela revista literária brasileira “Quatro Cino Um” no início de março

A pessoa anunciada como curadora do Babel Book Award, segundo a imprensa brasileira, é um jornalista russo, Andreas A. Fiedler, que um assessor diz não ter qualquer relação com o famigerado troféu. Responsáveis da Comunidade dos Países de Língua Oficial Portuguesa (CPLP) receberam um convite para a cerimónia de atribuição, mas desconhecem do que se trata.

A “Folha” contactou uma empresa apontada como patrocinadora do galardão, a Toniic, e esta disse nunca ter ouvido falar de tal coisa. Outro suposto patrocinador, a Fundação Pro Helvetia, garantiu ter sido abusivamente envolvida. O jornalista brasileiro Tom Correia contactou a fundação e publicou a resposta no Twitter.

https://twitter.com/tomcorreia/status/971459462593687552

Sobre os patrocinadores que não existem, Antonio Salvador disse que “a administração do prémio já entrou em contacto com eles e retirou os logótipos”, pelo que tudo “foi resolvido como tem de ser”.

“Toda a concepção do site foi apressada e várias questões técnicas ficaram mal resolvidas. Essas empresas não era efetivamente patrocinadoras, mas outras empresas existem que não entraram no site. Há patrocinadores assegurados, são mecenas, e não querem necessariamente mostrar-se neste momento. A ideia de mecenato é a arte pela arte, não serve para a pessoa aparecer e dizer que deu dinheiro. Não posso obrigar as pessoas a aparecerem como mecenas.”

No dizer do suspeito, é importante afirmar “de maneira clara e categórica” que “o prémio existe e terá o seu desenlace”. Quer isso dizer que um escritor de língua portuguesa vai receber os 200 mil euros em julho? “O regulamento coloca a possibilidade de não haver nenhum romance digno de ganhar o prémio, mas imagino que já temos escritores inscritos que façam jus ao prémio e que um deles possa ganhar”, respondeu.

Salvador disse acreditar que já tenham sido enviados a concurso mais de 600 originais, mas não soube precisar quantos são oriundos de Portugal. A pessoa indicada para dar essas informações, justificou, é Claudia Müller, apontada como diretora-executiva do prémio (com quem a “Folha de S. Paulo” já tentou falar, em vão).

“O papel da fundação é o de organizar o prémio, a fundação gere as questões técnicas relativas à administração do prémio, dinheiro e tudo o mais. Mas não gostaria de falar das pessoas da fundação e da fundação, essas questões irão aparecer dentro em pouco. É natural que o público esteja preocupado com as notícias, mas também é natural que se deixe claro que esta é uma iniciativa privada, não há dinheiro público envolvido no prémio. Um grupo de pessoas resolveu homenagear a língua portuguesa”, acrescentou Salvador.

Salvador é um “homem inteligente”

O alegado burlão nasceu em 1980 em Natal, Rio Grande do Norte, cresceu em São Paulo, onde foi aluno da Faculdade de Direito, e vive em Berlim. “Exerci advocacia durante muitos anos no Brasil, ainda tenho processos em que sou patrono, mas em Berlim a minha atividade é consultiva, redijo pareceres, sou académico e jurista”, disse, acrescentando estar a fazer um doutoramento em políticas culturais.

Em 2012 publicou o romance de estreia, “A Condessa de Picaçurova”, uma história em que “a condição humana e o pretenso status de superioridade do ser humano frente ao mundo natural entram em colapso”, diz a sinopse. O livro está à venda em várias lojas, não é de suspeitar que não exista, mas há dúvidas sobre uma data.

A agência literária Villas-Boas & Moss (VB&M), até há poucos dias representante de Antonio Salvador, removeu a página do escritor do site oficial, mas uma réplica digital subsiste. Nela se lê que o romance foi vencedor do Prémio Nascente em 2013. A data correta é outra.

Segundo explicou ao Observador Michel Sitnik, do departamento de comunicação da Universidade de São Paulo, entidade responsável pelo Prémio Nascente, “o então aluno Júlio César Pereira, da Faculdade de Direito, dividiu o prémio, vencendo, na área de texto, no ano de 2009 com o trabalho intitulado ‘A Condessa de Picaçurova’, categoria ficção, na 17ª edição do Programa Nascente”. Mas, “como o Nascente não aceita pseudónimos, ele assina [o romance] com o nome de batismo, Júlio César Pereira”, precisou Michel Sitnik.

Ao Observador, Luciana Villas-Boas, da VB&M, descreve o escritor como um “homem inteligente” e garante que se encontrou com ele pessoalmente em Berlim, em duas ocasiões. “Nunca soube” que Antonio Salvador era, afinal, o pseudónimo de Júlio César Pereira. “Se isso é verdade, ele nunca foi cliente da VB&M. Temos um acordo de representação assinado por Antonio Salvador, mas, se essa pessoa não existe legalmente, o nosso contrato nunca foi válido.” O visado nega.

“Quem me conhece como Júlio são as pessoas da área da advocacia ou alguns amigos muito íntimos. Antonio Salvador é o meu nome de casa, era o nome do meu avô, sempre fui assim chamado e na literatura é essa a minha identidade. Quem está a dar esta entrevista é Antonio Salvador”, sublinhou. “No contrato com a agência literária claro que consta que Antonio Salvador é pseudónimo. Se o meu nome natural não está no contrato, está lá a minha documentação. Mas não me lembro, teria de ver.”

Luciana Villas-Boas tomou conhecimento do Babel Book Award através da “Publishnews”, uma newsletter sobre o mercado editorial brasileiro, a mesma que há poucos dias deu notícia do segundo romance do escritor, “Homem-Número”, ainda sem editora.

“Considerei os inúmeros originais de grande qualidade assinados por clientes da agência que poderiam ser inscritos” no concurso, explica a agente, antes de deixar o desabafo: “Não posso imaginar o propósito de forjar uma premiação destas, custa muito acreditar que Antonio Salvador possa estar envolvido nisto.”

A data de nascimento é outro ponto mal explicado. No site da VB&M surge 1980. Na Wikipedia está 1981. O próprio disse ao Observador que é 27 de junho de 1980. “Nasci numa sexta-feira, signo de câncer, às 4 e meia”, precisou.

“A questão mas interessante levantada pelas as suspeitas sobre o Prémio Babel é esta: as pessoas têm a expectativa de encontrar no ambiente virtual da internet um equivalente do mundo, só que o mundo virtual não é o espelho do mundo, é parte do mundo. O mundo é muito mais complexo do que o ambiente virtual e toda a busca de equivalência vai ser uma busca sem resultados seguros”, analisou Salvador. “Este prémio, como evento cultural, já entrou na zona de penumbra da arte, talvez por isso as pessoas estejam inseguras quanto ao que ele é. Penumbra é o espaço em que o olho humano não consegue enxergar claramente. As pessoas só conseguem ver a realidade de acordo com o que já conhecem.”

Salvador publicou em 2012 o romance “A Condessa de Picaçurova” (na capa, o primeiro nome é grafado como Antônio).

Conta no Deutsche Bank

O site do prémio foi retirado do ar há poucos dias e exibe agora uma mensagem do programador informático, Vítor Germano, que se distancia do conteúdo: “Nenhuma informação que estava neste site é de minha autoria, recebi todos os textos, imagens, traduções e informações que aqui estavam por e-mail.” Diz mais: “Nunca tive encontros presenciais ou conversas por telefone com qualquer pessoa da organização. Tive apenas uma conversa por voz (através do Skype), com uma pessoa da organização, que me falou que a câmara estava estragada.”

Vítor Germano garante, porém, que foi pago pela criação do site. É o comprovativo desse pagamento, uma transferência a partir do Deutsche Bank, que alegadamente permite fazer a ponte com Antonio Salvador: a conta bancária está em nome de Júlio César Pereira, de acordo com a “Folha de S. Paulo”.

“Todas as pessoas que trabalham no prémio, e sobretudo eu, como consultor, podemos contratar serviços, pagar verbas, não há qualquer irregularidade. Paguei a verba, mas não fui a pessoa que pagou o site”, explicou o visado ao Observador.

Contornos patológicos?

Estaria Salvador a planear apoderar-se dos originais enviados a concurso? Iria tentar publicá-los em nome próprio? Ou concorrer com eles a prémios de literatura? As dúvidas têm surgido na imprensa brasileira e nas redes sociais. Ele desconsidera-as, diz que são alegações “patéticas” que revelam uma “mentalidade de teledramaturgia”, um “ambiente de novela”. Prefere apontar o dedo ao “momento histórico” conturbado que se vive no Brasil.

A notícia que saiu na ‘Folha de São Paulo’ é o retrato da incompreensão e do autoritarismo no Brasil. São forças reacionárias. Hoje, tudo no Brasil é objeto de suspeição, tudo. Existe uma tentativa de desqualificar o prémio e as pessoas envolvidas. Uma certa elite intelectual, assim chamada, que está arreigada no poder e no controlo das expressões culturais, viu-se de repente despojada desse poder e reagiu violentamente”, afirmou Antonio Salvador. “A notícia da ‘Folha’ atende a determinados interesses, muito claros, e até poderia dizer que foi encomendada”. Mas por quem? “Não posso dizer, seria uma suposição, mas tudo virá à tona até julho. Há um conteúdo calunioso naquela notícia, uma intenção de desqualificar.” Tenciona agir judicialmente contra alguém? “Tenho coisas mais importantes que fazer.”

O caso é digno de romance. Faz lembrar uma performance de artistas de vanguarda no início do século XX. No Facebook, Antonio Salvador tem reagido com calma e ironia. Ao telefone, mostrou-se bem-humorado, disponível para todas as perguntas. Há aqui apenas factos mal explicados e interpretações precipitadas ou estamos mesmo perante um caso mental? “Não há nenhum contorno patológico, se houvesse, acho que toda a produção artística teria esse contorno”, respondeu. “Não tenho pressa, vou esperar até julho. Gostaria de ver a cara das pessoas quando o prémio for atribuído.” A data e o local ainda não foram divulgados. Serão algum dia?