O presidente da Comissão Técnica Independente nomeada para investigar os incêndios do último verão admite a necessidade de “clarificar” o relatório sobre os fogos de outubro. “Perante este pedido do engenheiro Jorge Gomes, vamos analisar a situação e esclareceremos logo que possível”, diz João Guerreiro ao Observador. Jorge Gomes, deputado e ex-secretário de Estado da Administração Interna, defendeu na manhã desta quinta-feira — sem avisar previamente o Governo — que o documento contém dados “falsos”, quando responsabiliza o Executivo pela recusa de vários pedidos da Autoridade Nacional de Proteção Civil para um reforço dos meios envolvidos no combate aos incêndios nas zonas centro e norte do país. E não foi o único ex-governante a falar do relatório, a ex-ministra da Administração Interna também o fez, ainda que dentro de portas, numa reunião do grupo parlamentar do PS.

João Guerreiro diz que está a “analisar” a nota de esclarecimento que o próprio ex-secretário de Estado lhe fez chegar por e-mail, na quarta-feira à noite, e considera que, “logo que possível”, a comissão de especialistas vai voltar a olhar para as conclusões que ficaram plasmadas no relatório apresentado esta semana na Assembleia da República. Jorge Gomes queixa-se de não ter sido ouvido pela comissão técnica independente na elaboração deste relatório, quando era ele que na altura dos incêndios de outubro estava no terreno a comandar as operações enquanto secretário de Estado da Administração Interna.

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“Não tem sentido um documento destes estar em discussão pública quando foram levantadas estas questões” sobre as sucessivas recusas do Governo para alocar mais aviões e helicópteros e convocar mais bombeiros para o combate às chamas, diz o presidente da comissão técnica. João Guerreiro admite que alguma da informação do relatório “não esteja totalmente correta” mas garante que todos os dados se baseiam em “informação oficial” cedida aos especialistas pelos diversos intervenientes e entidades envolvidas no combate aos incêndios.

Em cima da mesa está a possibilidade de o grupo de peritos rever as suas conclusões sobre este ponto do relatório.

Tudo o que sejam questões que possam não estar bem esclarecidas no relatório, acho que temos o dever de clarificar isso rapidamente para não complicar a discussão sobre os reais problemas que estão presentes, porque esses é que interessam”, acrescentou o presidente da comissão independente, em declarações à agência Lusa.

As declarações que surgiram ao fim do dia, bem depois do deadline que Jorge Gomes tinha dado à comissão técnica para que corrigir aquilo que classificou de “dados falsos”. O ex-secretário de Estado só falou depois de perceber que João Guerreiro continuava sem retificar os números divulgados. Avisou o grupo parlamentar socialista, questionou a direção da bancada sobre a sua decisão e, não tendo sido levantados obstáculos, avançou com declarações aos jornalistas que vieram pôr diretamente em causa uma das principais conclusões do relatório técnico: a falta de resposta do Governo face aos pedidos da Proteção Civil.

O ex-secretário de Estado avançou com as declarações públicas a contestar o relatório depois de ter explicado as suas razões na reunião da bancada socialista. Mas fê-lo sem antes contactar o Governo, que soube das suas declarações depois de o próprio ter dito aos colegas de bancada que ia pôr o documento em causa. Nessa reunião de deputados do PS, a ex-ministra da Administração Interna também entendeu falar do relatório técnico, evidenciando um tom crítico, ainda que apontando um ponto diferente.

Constança Urbano de Sousa não fez declarações públicas sobre o assunto, mas na reunião do grupo parlamentar interveio debruçando-se principalmente sobre dados que surgem na página 107 do relatório e que referem situações em que o tempo de resposta ao incêndio de 15 de outubro terá ficado aquém das necessidades. Nessa página, o documento conclui que “atendendo ao desfasamento entre os momentos de eclosão e de deteção do fogo, o ataque inicial terá na maioria das situações decorrido quando a cabeça do incêndio não podia já ser controlada, independentemente da capacidade e quantidade de meios empregues”. E isto devido às condições meteorológicas que faziam com que em cerca de 17 minutos a “intensidade da cabeça do incêndio” tivesse já superado “a capacidade de controlo por meios aéreos”.

A ex-ministra tentava, assim, fazer vingar o ponto que tem defendido: que independentemente dos meios, foram as condições meteorológicas em que ocorreram os fogos de outubro que os tornaram incontroláveis. Contactada pelo Observador sobre a posição que foi tomada por Jorge Gomes e sobre a sua própria opinião sobre o relatório, Constança Urbano de Sousa recusou fazer qualquer comentário.

Especialistas não cruzaram informações com o Governo

Questionado pelo Observador sobre as questões levantadas pelo ex-secretário de Estado da Administração Interna, João Guerreiro desvaloriza o impacto que essas eventuais incorreções tenham no documento. “O relatório foi publicado e há dúvidas e comentários que são feitos, tal como aconteceu com o primeiro relatório” sobre o incêndio de Pedrógão Grande (elaborado pelo mesmo grupo), diz o ex-reitor da Universidade do Algarve, que também coordenou esse trabalho. Os pontos contestados vão ser “analisados sem qualquer tipo de problema”, garante.

João Guerreiro não vai mais longe. Mas uma fonte do conselho dos 12 especialistas que funcionam junto da Assembleia da República ajuda a clarificar este ponto:

Fizemos fé nas declarações e na documentação que nos foi apresentada pelo segundo comandante” de operações, Abílio Tavares, diz um perito ao Observador.

Não houve, portanto, confrontação daqueles dados com outros intervenientes do Governo, tal como não foi ouvido o ex-secretário de Estado, diretamente envolvido naquelas decisões. A mesma fonte da equipa que elaborou o relatório admite algumas hipóteses para explicar eventuais “falhas”: ou a informação apresentada pelo segundo comandante não estava completa, ou a informação que chegou às mãos dos especialistas não foi analisada na íntegra.

O Observador tentou saber junto da ANPC e também do Ministério da Administração Interna que propostas — daquelas que o relatório menciona — tinham chegado ao Governo e que resposta tinha sido dada pela tutela. Mas nem um nem outro interveniente responderam às questões.

Ministro Eduardo Cabrita não pôs relatório em causa

A defesa pública das decisões do Governo antes e durante o combate ao incêndio coube a Jorge Gomes. Mas não foi por falta de oportunidade que o executivo ficou em silêncio. Esta quarta-feira, um dia depois de o relatório ter sido entregue na Assembleia, o ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, convocou uma conferência de imprensa para falar sobre as conclusões do relatório. Mas fugiu à pergunta sobre a posição do seu ministério quanto ao reforço de meios. E nunca pôs em causa as conclusões do documento como fez o ex-secretário de Estado Jorge Gomes.

Questionado diretamente sobre esse ponto do documento pelos jornalistas, Eduardo Cabrita voltou a sublinhar a importância de tirar lições para o futuro.

Não cairei na tentação de dizer ‘se eu cá estivesse como teria feito’. Analisarei, como analisamos no Governo, com toda a atenção aquilo que é a ação objetiva de desempenho e aquilo que são as recomendações de ação para futuro, sem tentações” de fazer uma análise “póstuma, que é um exercício, nesta matéria, votado a um claro insucesso”, disse o ministro.

À noite, em entrevista à SIC, o ministro da Administração Interna não foi mais longe, mesmo perante um relatório que põe em causa as decisões tomadas nos dias de 14 a 16 de outubro por quem representava aquele que, agora, é seu ministério .

Governo recusou reforçar aviões. “É falso”, diz ex-secretário de Estado

Na página 148 do relatório em que se faz a “avaliação dos incêndios ocorridos entre 14 e 16 de outubro de 2017 em Portugal continental”, o conselho de especialistas nomeados pela Assembleia da República enumerou sete pedidos de reforço de meios que a Autoridade Nacional de Proteção Civil (ANPC) teria apresentado à tutela. Os pedidos eram dirigidos a Jorge Gomes, secretário de Estado com poderes de decisão sobre aquela matéria. Todos teriam sido negados total ou parcialmente, de acordo com a informação vertida no documento.

Jorge Gomes era o mais direto responsável político a quem cabia dar resposta às solicitações dos dirigentes da Proteção Civil. Esta quinta-feira, no Parlamento, o agora deputado surgiu inesperadamente a contestar a validade do relatório: “É falso”, garantiu,  negando os vários pontos apresentados pela comissão técnica sobre os pedidos da ANPC para que houvesse um reforço de meios, de março a outubro.

Um desses sete pontos refere que, em março de 2017, a Proteção Civil teria apresentado uma “proposta de reforço de uma parelha de aviões anfíbios médios” para o combate aos fogos do verão, de acordo com a informação n.º 3494/CNOS/2017. Na resposta, o Governo teria considerado que se tratava de um pedido “sem fundamento legal”. A resposta? “Não autorizado.”

Noutro ponto, o documento faz referência ao pedido de “reforço de 200 horas de voo suplementares para duas parelhas de aviões anfíbios médios”, formalizado a 8 de setembro. Foi cerca de três semanas antes do “pior dia do ano” em matéria de incêndios florestais, como definiu a porta-voz da Proteção Civil, Patrícia Gaspar. A resposta teria sido a mesma que meio ano antes: “Não foi autorizado.”

Tudo isto é negado pelo ex-secretário de Estado. “Foi solicitado um reforço de horas que foi concedido”, diz o documento que Jorge Gomes preparou para a sua defesa. “Não foi solicitada pela ANPC qualquer parelha adicional de aviões médios anfíbios”, garantiu. Em causa, neste ponto, está não apenas o pedido de contratação de mais dois aviões anfíbios médios mas também o reforço de 200 horas de voo destes aparelhos.

O ex-secretário de Estado garante que “esta parelha de aviões esteve plenamente operacional durante todo o período de vigência do dispositivo de combate a incêndios florestais de 2017” e que, a 17 de agosto, “foram contratadas 300 horas adicionais”, com um custo de 664 mil euros. Dois meses mais tarde, acrescenta Jorge Gomes, “foram contratadas mais 70 horas adicionais, de modo a assegurar a operação até 31 de outubro”. Valor da despesa: 155 mil euros.

Entretanto, nesta quinta-feira à noite, a Lusa avançou com mais informações sobre estas contradições, depois de ter tido acesso a documentação que reforça a tese de Jorge Gomes. Os dados são os seguintes: a 9 de outubro, a ANPC enviou à tutela um pedido para alargar a fase Charlie até ao final desse mês; cinco horas depois, já na madrugada de dia 10, a primeira resposta positiva de aprovação era dada pelo MAI; mas os aviões que a Proteção Civil tinha pedido só ajudaram no combate às chamas seis dias mais tarde.

Na resposta às solicitações da ANPC, segundo os documentos a que a Lusa acedeu, o Governo terá concordado com um acréscimo de 70 horas de serviço para dois aviões anfíbios médios, com o prolongamento do contrato de aluguer de dois aviões anfíbios pesados e de oito helicópteros médios, todos eles até 31 de outubro. No caso dos anfíbios médios, o contrato já tinha sido prolongado com mais 300 horas a 14 de agosto. [Sobre os helicópteros ver o ponto 5]

Para adensar as dúvidas, não se percebe ainda porque não foram usados os meios de imediato pela ANPC logo após a autorização ministerial. A luz verde para a despesa da contratação de meios aéreos adicionais foi dada a 13 de outubro, mas estes entraram ao serviço a 16 de outubro, no mesmo dia em que foram controlados os piores incêndios do ano, que tinham começado no dia 14 — e que atingiram oito distritos do centro e norte do país e provocaram 48 mortos.

Governo só autorizou metade das equipas de bombeiros pedidas pela Proteção Civil?

No relatório da comissão independente é feita referência a uma “proposta de reforço do dispositivo para a fase Delta para o período de 1 a 15 de outubro”, constante da  informação 1224/CNOS/2017, de 27 de setembro. A ANPC pedia 105 equipas de combate aos incêndios mas a tutela teria apenas autorizado 50.

Ponto por ponto, o ex-secretário de Estado prossegue a sua contestação ao relatório da Comissão Técnica Independente. Sobre o pedido de 105 novas equipas de bombeiros para o período de 1 a 15 de outubro (e o facto de terem sido autorizadas apenas 50), Jorge Gomes diz que “a ANPC propôs o reforço de 525 bombeiros” e que “foram aprovados 250 a partir de 1 de outubro”. Mas, “face ao agravamento das condições meteorológicas”, nove dias depois chegavam “mais 570” elementos ao terreno.

“Foi superada a proposta inicial da ANPC”, com um “reforço total de 820 Bombeiros”, correspondentes a 164 equipas (mais 59 que aquelas pedidas pela Proteção Civil), contrapõe o ex-governante.

Naquele momento, foram incorporados no reforço do dispositivo todos os bombeiros disponíveis e foi também reativada a 11 de outubro a rede primária de postos de vigia”, com 72 postos e 288 vigilantes ativos, enumera Jorge Gomes.

O dispositivo total teve 6.626 operacionais empenhados no combate aos incêndios, mais 1.108 do que seria de esperar para uma fase Delta sem reforço de meios, diz o ex-secretário de Estado.

Quatro aviões ligeiros. Pedido era “ilegal”, diz Jorge Gomes

Há ainda um pedido da Autoridade Nacional de Proteção Civil para que fosse aprovado o “reforço de quatro meios aéreos ligeiros”, feito a 13 de julho (informação n.º 8223/GPATRP/2017), rejeitado pelo Governo por não ter “fundamento legal”. Aqui, há sintonia. Jorge Gomes assume a recusa, mas dá mais pormenores sobre os contornos do pedido.

Quase um mês depois do início do incêndio de Pedrógão Grande, a ANPC pediu à tutela um reforço dos meios aéreos ligeiros. Jorge Gomes divulga a informação que a Proteção Civil fez chegar ao Governo, com base no pedido do Comandante Operacional Nacional (CONAC), Abílio Tavares. E acusa a ANPC de pretender que o MAI “submetesse à apreciação do Conselho de Ministros uma proposta ilegal”.

De acordo com o ex-governante, a própria proposta da Proteção Civil assumia que não estavam preenchidos “todos os requisitos cumulativos” do Código de Contratação Pública. “Afinal, como se explicará que estas necessidades adicionais apenas surgiram agora? Afinal, porque não foram previstas anteriormente? Dos elementos fornecidos (correio eletrónico do senhor CONAC, de 10 de junho de 2017) não consta nenhum elemento ou documento que permita objetivar e fundamentar, do ponto de vista jurídico, a presente aquisição”, dizia a nota da Proteção Civil.

Aqui, o ex-secretário de Estado é direto:

A proposta foi devolvida à ANPC por ser manifestamente ilegal.”

Mais homens para a Força Especial de Bombeiros

Outra proposta apresentada no relatório, cuja data não foi divulgada, faz referência a um “reforço de 40 operacionais para a Força Especial de Bombeiros (informação n.º 3341/DORH/2017). Decisão: “Não foi autorizado.”

Jorge Gomes não contesta a recusa do pedido. O ex-governante diz que foram pedidos, não 40, mas apenas nove elementos novos, “ficando os outros numa bolsa de recrutamento”. Argumenta, ao mesmo tempo, que “não faria qualquer sentido estar a regularizar uma parte da Força Especial de Bombeiros de um lado e a criar mais precários do outro”, uma vez que, nesse momento, estava em curso o processo de “integração” desta força especial na administração central, no âmbito do programa de regularização dos vínculos precários no Estado.

De acordo com Jorge Gomes, e por outro lado, ele mesmo, enquanto secretário de Estado da Administração Interna, deu orientações à GNR para reforçar o Grupo de Intervenção de Proteção e Socorro (GIPS) com mais 40 militares, “suprimindo e respondendo à carência identificada”.

ANPC pediu helicópteros? Jorge Gomes diz que não

O relatório também aponta uma nega do Governo ao pedido da ANPC para a “locação de quatro aviões anfíbios médios de 13 a 31 de outubro”, que só teria sido autorizado a 17 de outubro, mas nesse caso para “a locação de 15 helicópteros ligeiros”, válida a partir desse mesmo dia, já depois de a fase crítica dos fogos ter sido ultrapassada.

Jorge Gomes assume que o dispositivo aéreo não foi reforçado para a fase Delta e que “o que se verificou foi o prolongamento dos contratos de meios aéreos entre o dia 16 e o dia 31 de outubro”, uma decisão de 10 de outubro e comunicada à ANPC nesse mesmo dia.

Jorge Gomes continua a defesa em nome próprio e diz que o dispositivo aéreo não foi reforçado para a fase Delta e que “o que se verificou foi o prolongamento dos contratos de meios aéreos entre o dia 16 e o dia 31 de outubro”, uma decisão de 10 de outubro que foi comunicada à ANPC no mesmo dia”. [ver ponto 1]

“Até ao dia 18 de outubro, a ANPC não propôs à tutela a contratação de 15 helicópteros ligeiros”, diz o ex-secretário de Estado, numa versão que choca com o relatório da Comissão Técnica Independente. No documento lê-se que já depois dos incêndios, o Governo teria autorizado a locação de 15 helicópteros ligeiros com efeitos a partir de 17 de outubro.