— Vou ler-vos aqui uma passagem que é ‘Andando na Luz’, que é um episódio bíblico. Estás a ouvir-me? Como te chamas, minha filha?
— Vera.
— Vera, esta é uma mensagem que Dele ouvimos e transmitimos a vocês. Estás a ouvir-me? Deus é Luz e acreditando nele não há treva alguma. Se afirmarmos que andamos na Luz com Ele, com o Senhor, estamos em comunhão uns com os outros. O sangue de Jesus, Seu filho, nos purifica de todo o pecado. Mas para isso tendes de acreditar. Tendes de ter fé na salvação.
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O diálogo podia ter acontecido numa missa, numa lição de catequese ou num qualquer encontro cristão. Mas aconteceu numa esquadra de polícia. O “pastor” era um agente da PSP e os “fiéis” eram três detidos, que respondiam afirmativamente a todas as interpelações. O vídeo tornou-se viral na Internet e o Comando da PSP do Porto já abriu um processo de averiguações que pode levar a um processo disciplinar.
[“Aleluia irmãos!” Veja o vídeo com todo o sermão legendado]
Mas, afinal, que sermão bíblico é mesmo este a que o agente recorreu? A fonte original é o primeiro capítulo da primeira das três cartas do apóstolo João, um texto que integra o Novo Testamento e que aquele discípulo de Jesus Cristo terá, segundo a tradição, escrito às primeiras igrejas cristãs que fundou na Ásia Central. Na passagem original, que na tradução oficial portuguesa tem como título “Caminhar na Luz”, lê-se o seguinte:
“Eis a mensagem que ouvimos de Jesus e vos anunciamos: Deus é luz e nele não há nenhuma espécie de trevas. Se dizemos que temos comunhão com Ele, mas caminhamos nas trevas, mentimos e não praticamos a verdade. Pelo contrário, se caminhamos na luz, como Ele, que está na luz, então temos comunhão uns com os outros e o sangue do seu Filho Jesus purifica-nos de todo o pecado.”
A versão lida pelo agente policial do Porto parece, contudo, ser retirada da tradução brasileira da Bíblia, onde se lê: “Ora, a mensagem que, da parte dele, temos ouvido e vos anunciamos é esta: que Deus é luz, e não há nele treva nenhuma. Se dissermos que mantemos comunhão com ele e andarmos nas trevas, mentimos e não praticamos a verdade. Se, porém, andarmos na luz, como ele está na luz, mantemos comunhão uns com os outros, e o sangue de Jesus, seu Filho, nos purifica de todo pecado”.
PSP abre processo ao polícia que deu sermão a 3 detidos: “Aleluia, irmãos!”
Traduções à parte, mesmo que o discurso do agente pareça bastante devoto, uma aparente contradição deita por terra a credibilidade da “evangelização”. A dada altura, o agente diz: “Vamos dar as mãos, vamos dar todos as mãos. Dá as mãos aqui à menina. Vamos criar uma corrente. Dá-lhe a mão, dá-lhe a mão! Dá a mão aqui, dá-lhe a mão a ele, tu consegues. Vamos criar uma corrente de fé. Aleluia, irmãos! Dizei, dizei. Nesta época da Quaresma, vocês, unidos no caminho das trevas, devereis estar unidos para o caminho da salvação”.
A referência à Quaresma, ao mesmo tempo que serve como referência temporal e indica que o vídeo poderá ser recente, indica também que o agente poderá não ser tão devoto como o discurso faz parecer: é que, durante o período da Quaresma, na maioria das igrejas cristãs a palavra “Aleluia” é omitida dos ritos litúrgicos.
Isto porque a Quaresma é, para os cristãos, o tempo em que se recorda o período antes da morte de Jesus Cristo. Por esse motivo, as expressões de louvor como os cânticos de Aleluia ou Glória não entram nas celebrações até voltarem a ser utilizadas na Páscoa.