Em 1924, o “Diário de Lisboa” foi buscar à sua terra, em Trás-os-Montes, Aníbal Augusto Milhais, o “Soldado Milhões” herói português da batalha de La Lys, na I Guerra Mundial, e resgatou-o do esquecimento em que tinha caído após o conflito, trazendo-o a Lisboa para participar numa série de iniciativas que o tornaram numa figura pública e o instalaram na memória colectiva nacional. Entre outras movimentações, Milhais foi levado a ver a opereta “O João Ratão”, de Ernesto Rodrigues, Félix Bermudes e João Bastos, sobre um soldado que combateu nas trincheiras da Flandres. No intervalo, Milhais foi apresentado ao actor Estevão Amarante, que interpretava João Ratão. Homem simples e de poucas letras, o antigo soldado julgou estar na presença de uma camarada de armas, e cumprimentou Amarante como se ele também tivesse combatido na guerra.
[Veja o “Soldado Milhões” entrevistado na RTP em 1967]
Teria sido interessante se Jorge Paixão da Costa e Gonçalo Galvão Teles, os realizadores de “Soldado Milhões”, tivessem recriado este episódio no seu filme. É que assim teriam feito uma ligação indirecta ao único outro filme de ficção português com sequências passadas na I Guerra Mundial: precisamente “João Ratão”, que Jorge Brum do Canto rodou em 1940, adaptado da opereta homónima a que, 16 anos antes, Aníbal Augusto Milhais assistiu em Lisboa. Mas mesmo sem este, e outros episódios da vida do herói de La Lys, que anos depois da guerra teve inclusivamente que rumar ao Brasil para poder garantir a sua subsistência e a da família, Paixão da Costa e Galvão Teles conseguiram fazer um bastante aceitável filme de guerra, e de época. Coisa muito rara num cinema nacional muito pouco vocacionado, e com meios escassos, para se meter em cavalarias destas.
[Veja o “trailer” de Soldado Milhões]
João Arrais e Miguel Borges interpretam Aníbal Augusto Milhais nas duas épocas em que o filme se passa. Nas trincheiras da Flandres, onde se distinguiu em La Lys, ficando para trás durante o ataque alemão de 9 de Abril de 1918 e cobrindo a retirada dos camaradas com a sua “Luisinha” (o nome que os soldados portugueses davam à metralhadora Lewis); e 25 anos mais tarde, em Valongo, a sua terra natal, onde vai ser homenageado e anda, com a filha mais nova, atrás de um lobo, uma peripécia que se diria saída de um livro de Aquilino Ribeiro (a intenção foi mostrar o que mudou, e o que ficou, do Milhais jovem e ingénuo mobilizado para França, no Milhais mais velho e marcado pela guerra – de que gostava pouco de falar, segundo quem o conheceu -, homem lhano, crente, desembaraçado e exímio caçador e atirador, como havia mostrado no campo de batalha, um quarto de século antes).
[Veja uma sequência do filme]
Paixão da Costa e Galvão Teles reconstituíram as trincheiras no Campo de Tiro de Alcochete, puseram os actores a fazer uma curta recruta, recriaram as fardas dos soldados do CEP (Corpo Expedicionário Português) a partir de fotos da época, arranjaram espingardas, metralhadoras e pistolas como as que as nossa tropas usaram na Flandres, para que tudo fosse o mais rigoroso possível. Mesmo assim, e como o filme foi rodado no Verão, falta aqui a lama, o grande inimigo natural dos soldados nas trincheiras, bem como a chuva e as névoas da Flandres. Tal como faltam os sotaques dos soldados transmontanos como Milhais e que abundavam na sua incorporação – aqui falam todos “à lisboeta” — e os saborosos palavrões e imprecações nortenhos (nem um “carago” se ouve, caramba!), e há sargentos a menos para capitães a mais naquele batalhão de “lãzudos”.
[Veja um breve documentário sobre o “Soldado Milhões”]
As sequências de acção militar do filme estão razoavelmente bem encenadas, com a devida ênfase para o feito de Milhais, que depois de ficado sozinho se perdeu, e sempre agarrado à sua “Luisinha”, passou alguns dias à procura dos camaradas que tinham retirado e ainda salvou um oficial médico escocês de se afogar. Foi depois do reencontro com os seus que Ferreira do Amaral, o comandante do seu batalhão, lhe terá posto a alcunha que ficou para a posteridade, “Tu és Milhais, mas vales Milhões!”, e agiu para que fosse condecorado com a Torre e Espada. O ambiente que se vivia nas trincheiras lusas é dado de forma sintética mas correcta, e o cinema não é esquecido, numa sequência em que os soldados vêem uma curta-metragem passada no Jardim Zoológico e protagonizada pelo actor argentino Cardo, imitador de Charlot.
[Veja imagens de uma programa da RTP sobre a Batalha de La Lys]
“Soldado Milhões” vai ser também uma série de televisão em 3 episódios, a passar na RTP lá mais para o fim do ano, perto da comemoração dos 100 anos do armistício. Mesmo considerando as suas falhas, imperfeições e fragilidades, há no filme de Paixão da Costa e Galvão Teles o interesse em transformar em matéria de narrativa cinematográfica um episódio vivido no decorrer de um importante acontecimento da história portuguesa do século XX, a nossa (infeliz) participação na I Guerra Mundial; o empenho em pôr de pé um filme de um género, com um tema, um aparato e características de produção pouco comuns no cinema nacional; e a vontade de fazer cinema com dignidade narrativa e comercial a pensar num público alargado, sem transigir com o umbiguismo ou o popularucho. E já que estamos em maré de I Guerra Mundial, “A Malta das Trincheiras”, de André Brum, anda há muito tempo a pedir para ser filmado.