Um dia destes vai partir da Terra um foguetão que voltará à Lua. O maior telescópio do mundo vai, finalmente, acordar e observar o universo com uma precisão 100 milhões vezes maior do que os nossos olhos. O acelerador de partículas na Suíça vai descobrir como funciona o universo de fio a pavio. E um satélite vai conhecer o fundo dos oceanos como nós conhecemos a palma das nossas mãos.

No dia em que tudo isso acontecer, há uma equipa portuguesa a quem agradecer: são engenheiros do Instituto de Soldadura e Qualidade (ISQ), uma empresa que, 15 anos depois de iniciar a aposta no setor aeroespacial, registou lucros que andam perto de um milhão de euros. É um pequeno passo para eles, que ambicionam por mais, mas um grande passo para levar a engenharia portuguesa mais longe.

Realidade aumentada com selo português

Tudo começou há 2003, quando o ISQ já acumulava mais de trinta anos de existência mas decidiu levantar os olhos da soldadura e começar a olhar para as estrelas. Literalmente. Nesse ano, a empresa enviou para a Guiana Francesa um engenheiro que participava nos controlos de qualidade das naves espaciais que a Agência Espacial Europeia montava por lá para serem enviadas para o espaço. Nos últimos anos, a equipa tornou-se permanente e já integra oito engenheiros portugueses. Mas Pedro Matias, presidente da companhia, anseia por mais. Por isso foi até Kouru a 9 de abril para expor mais ideias com selo português à Agência Espacial Europeia. E veio de lá com novidades.

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Pedro Matias, presidente do Instituto de Soldadura e Qualidade (ISQ). Créditos: J. Morgado

Pedro Matias recebeu o Observador na sede do ISQ, que fica no Tagus Park (que a empresa gosta de chamar “o Silicon Valley de Portugal”). É lá que nos conta como a missão empresarial ao Centro de Lançamento de Foguetões da ESA na Guiana Francesa chegou a bom porto depois de o ISQ ter proposto à agência internacional um mecanismo inovador para garantir que os veículos espaciais que por ali andam estão prontos para sobreviver à feroz atmosfera terrestre e a longas aventuras na exploração espacial: “Fomos propor a introdução de tecnologias de realidade aumentada nas inspeções que nós fazemos nos satélites. Isso traz várias vantagens: são mais rápidas, são mais eficazes, são mais baratos e a margem de erro diminui substancialmente. Por isso fomos desafiar a ESA a montar um projeto piloto de inspeções aos componentes dos satélites usando tecnologias de realidade aumentada”, explica Pedro Matias.

Nos próximos tempos, o ISQ vai continuar a fazer essas inspeções — que permitem aos portugueses controlar a qualidade e segurança das máquinas, acompanhar as missões e preparar as cargas dos foguetões — com o método tradicional, mas em paralelo outra equipa vai testar a nova ideia. Depois os resultados vão ser comparados: se a realidade aumentada trouxer tantas vantagens como a ISQ antecipa, o novo método de inspeção vai mesmo ser instalado. E Portugal será o único país com valências para o fazer, até porque também é o país com a permanência mais prolongada no centro espacial.

A vantagem portuguesa

Este é o passo mais recente de muitos que o ISQ tem dado para não só para fazer a engenharia portuguesa crescer no aeroespacial, mas também sugerir estratégias inovadoras nesse setor. Uma dessas sugestões passa por inventar novos revestimentos com crómio para serem usados pela Agência Espacial Europeia e outra ideia é desenvolver uma cápsula que utiliza cortiça para recolher e preservar melhor as amostras vindas de Marte para serem estudadas na Terra.

São “planos ambiciosos”, admite Pedro Matias, mas não há outro remédio:

Que nós trabalhamos bem no calçado já toda a gente sabe. Que nós trabalhamos bem nos têxteis, nos moldes, no agroalimentar, no vidro e no azeite é uma coisa de que nós todos temos perceção porque é parte da identidade cultural do país. Quando vamos para as engenharias, como a aeroespacial ou a aeronáutica, achamos que não estamos muito envolvidos nisto. Vemos sempre estas coisas de fora para dentro. O que é interessante é que mesmo Portugal, não tendo uma tradição neste setor, hoje em dia já consegue estar nestas áreas altamente avançadas”.

Vários aspetos contribuem para essa presença. Uma delas é o facto de os cursos superiores de engenharia aeroespacial e aeroespacial já serem as licenciaturas com médias de ingresso mais altas em Portugal, o que testemunha o crescente despertar das gerações mais novas para essas áreas, considera o presidente do ISQ: “Nós temos exportado conhecimento de pessoas que se formaram cá. Vão trabalhar para a ESA, para a Airbus, para a Embraer… São tudo empresas com que nós trabalhamos. Temos de aceitar que essas empresas ainda têm mais potencial para aliciar, mas pelo menos agora os nossos licenciados podem saber que há trabalho nas áreas deles aqui em Portugal. E numa empresa que lhes permite operar em várias empresas de renome”.

Outro facto que contribui para o sucesso português na Guiana Francesa é a própria cultura, considera Paulo Chaves, responsável do ISQ nas áreas internacionais da empresa: “Os especialistas em engenharia espacial de diferentes países estão em Kourou durante períodos médios de três a seis meses porque as condições meteorológicas são difíceis de suportar naquela zona equatorial, mas os portugueses têm uma melhor capacidade de adaptação ao clima”.

Prova desse sucesso está no lançamento do foguetão Ariane V, uma missão concretizada no início de abril que colocou em órbita mais de 10 toneladas de carga útil na órbita da Terra. O ISQ foi responsável pelo controlo e pela qualidade do foguetão e dos satélites enviados para o espaço. Veja o momento do lançamento no vídeo (um pouco mais acima).

Dentro dos planos mais ambiciosos

Além do envolvimento cada vez maior das equipas portuguesas do ISQ no Centro Espacial Europeu, há outros planos em que os nossos engenheiros estão empenhados. Um deles é o Telescópio Europeu Extremamente Grande, em inglês European Extremely Large Telescope e (E-ELT), que permitirá observar o universo com uma precisão ainda maior que a do Telescópio Hubble.

Montado no deserto do Atacama, no Chile, o E-ELT vai abrir os olhos pela primeira vez daqui a sete anos para aumentar o conhecimento que temos dos planetas para lá do Sistema Solar e para explorar as primeiras galáxias do Universo, buracos negros super-massivos, a matéria escura e até a presença de moléculas de água em discos protoplanetários, de onde nascem os planetas.

Como este telescópio será o maior do mundo com natureza ótica e de infravermelhos, o ISQ será responsável por “aperfeiçoar os mecanismos que mais tarde serão usados para fazer o acompanhamento do projeto, nas fases de construção e montagem”. Há peças do telescópio que têm de estar perfeitas ou a missão desaba por completo: “Numa lógica de prevenção, a intervenção visa sobretudo prevenir problemas e contribuir igualmente para a conclusão dos trabalhos dentro do planeamento previsto”, explica a empresa. Esta participação surgiu na sequência de uma colaboração com o Observatório Europeu do Sul, depois de o ISQ ter dado provas de sucesso em projeto como o novo telescópio do Observatório do Paranal (que mapeia o céu) ou o observatório ALMA (Atacama Large Millimeter Array).

Outro grande projeto com selo português é o Grande Colisor de Hadrões (LHC) da Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear (CENRN), o maior laboratório de física de partículas do mundo e o que movimenta mais energia no planeta. Este acelerador de partículas coloca feixes de partículas em choque uns com os outros para simular as condições que existiam nos primeiros tempos de vida do universo, na esperança de chegar a conclusões sobre as questões da física menos compreendidas pelos cientistas.

É por lá que poderemos saber de facto qual é a origem do mundo, conhecer as propriedades do bosão de Higgs e descobrir novas partículas que a teoria diz que existem, mas que a prática ainda não confirmou. De acordo com o ISQ, os portugueses foram responsáveis por fabricar componentes e completar os 27 quilómetros do anel que compõe o acelerador de partículas. Agora, a empresa tem de rever a qualidade de algumas peças da máquina e auxiliar o sistema de garantia de qualidade do CERN.

Além disso, o ISQ também entrou no desenvolvimento de uma sonda que vai ser enviada para Marte pela Agência Espacial Europeia e que é feita de cortiça portuguesa graças à parceria com a Corticeira Amorim. Essa cortiça vai dar origem a uma cápsula de reentrada atmosférica que é muito mais leve e barata do que as produzidas atualmente. Ao ISQ cabe pôr em prática os testes de desenvolvimento e os testes de validação, algo que vai ser feito em Castelo Branco. Daqui a três anos a sonda será lançada e passará cinco anos a recolher fragmentos de rochas marcianas.

Uma constelação à portuguesa

Um dos mais importantes planos do ISQ para continuar a afirmar a engenharia portuguesa no setor aeroespacial é a participação no Projeto Infante, uma constelação de 12 microssatélites que, uma vez postos na baixa órbita terrestre (no máximo 2 mil quilómetros de altitude), será a primeira missão desenhada, construída, testada e operada por Portugal. Há várias empresas nacionais envolvidas neste projeto, como Active Space Technologies, a Omnidea, a Fundação para a Ciência e a Tecnologia ou o Instituto Politécnico de Tomar. Ao ISQ caberá garantir a “qualidade transversal a todo o projeto” e “desenvolver um serviço de garantia da qualidade para o processo de montagem, integração e teste de microssatélites”.

Tudo isto implicará um investimento de 9,2 milhões de euros nos próximos dois anos, uma vez que o Projeto Infante deverá ir para o espaço em 2020: 60% desse valor será aplicado pelo programa Portugal 2020, enquanto os outros 40% virão de um consórcio do qual fazem parte 150 investigadores de empresas portuguesas, universidades e laboratórios de investigação.