As alterações à legislação do Trabalho propostas pelo Governo aos parceiros sociais – um acordo assinado formalmente esta sexta-feira – representam um retrocesso na flexibilidade do mercado laboral conseguida nos últimos anos, consideram vários especialistas em Direito do Trabalho, em declarações ao Observador.

“Houve um caminho no sentido de uma maior flexibilidade, que agora está a ser invertido. Desde logo na questão da flexibilidade horária e do banco de horas individual. Era um instrumento que estava a ser bastante utilizado para conseguir uma adaptação às circunstâncias, às flutuações do trabalho, sem intervir no horário de trabalho, sem ter um aumento de custos com horas extraordinárias”, disse ao Observador Maria da Glória Leitão, responsável pela área laboral do escritório de advogados Cuatrecasas.

Em causa está a eliminação destes bancos de horas individuais, uma modalidade na qual o trabalhador poderia (ou não) aceitar fazer, a pedido do empregador, mais duas horas por dia, atingindo as 50 horas semanais (com um limite máximo de 150 horas por ano).

Governo chega a acordo na concertação social, mas sem CGTP

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

A proposta que o Governo acertou com os parceiros acaba com este instrumento, mas introduz um novo tipo de banco de horas grupal, que está dependente da aceitação das condições, em referendo, por parte de 65% dos trabalhadores.

Tiago Cochofel de Azevedo, o especialista em Direito do Trabalho da sociedade de advogados Vieira de Almeida, concorda que o fim do banco de horas individual reduz a capacidade de as empresas gerirem as relações de trabalho.

“A medida sobre o banco de horas é claramente uma redução da flexibilidade interna. Já desde o Livro Branco de 2007 que se tinha tentado contrabalançar aquela que é a nossa maior rigidez – a contratação, mas sobretudo, a cessação de contratos – com mecanismos de flexibilidade interna. A eliminação dos bancos de horas individuais, ainda que estes permaneçam com um ano de vigência após a entrada em vigor destas novas alterações, é um passo atrás”, conclui.

Costa pede “esforço de imaginação” para acordo de concertação social que concilie vida profissional e familiar

O reforço do papel da Autoridade para as Condições de Trabalho

Por outro lado, a forma como vai ser supervisionado o novo banco grupal também levanta dúvidas.

“No caso das micro-empresas – e o tecido empresarial português é constituído sobretudo por micro e pequenas empresas – temos a supervisão da Autoridade das Condições de Trabalho nestes referendos, a fiscalizar (…) Temos capacidade para ter um inspetor da ACT em todos os referendos que vão ser feitos?”, pergunta Tiago Cochofel Azevedo.

Para Nuno Ferreira Morgado, especialista da PLMJ, esta medida traduz-se “num evidente reforço do papel na Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT) na regulação do mercado de trabalho”.

“Ao passo que se assistiu na primeira década de 2000 a uma redução da intervenção da ACT – por exemplo através da eliminação de um conjunto de notificações obrigatórias a esta entidade – as alterações mais recentes à legislação laboral evidenciam uma inversão desta tendência no domínio nas relações laborais informais (falsos recibos verdes), no domínio do assédio no trabalho e no regime da transmissão de estabelecimento”, disse o especialista.

Mas este reforço das intervenções da ACT, salientou Nuno Ferreira Morgado, “apenas terá um resultado com impacto no mercado de trabalho se esta entidade tiver os meios adequados”. “Se assim não for, nada verdadeiramente relevante mudará”, antevê.

As alterações que constam do acordo, que foi formalmente assinado esta sexta-feira, serão discutidas no parlamento a 06 de julho. O PS já anunciou que apresentará propostas de alteração, para clarificar e melhorar as medidas que lá constam.

PS vai propor alterações e quer “concertação parlamentar” sobre legislação laboral

Além da extinção do banco de horas individual, as principais medidas vão no sentido de “diminuir o uso excessivo de contratos não permanentes e promover a contratação sem termo”, tal como constava do comunicado com o acordo de 30 de maio.

Como? Para começar, reduzindo de três para dois anos o limite dos contratos a termo certo. Depois, eliminando alguns motivos anteriormente aceites como fundamento para este tipo de contratos (até aqui, por exemplo, aceitava-se os casos de primeiro emprego e de desempregados de longa duração). Terceiro (e esta não é alteração ao Código Laboral, mas sim ao Código dos Regimes Contributivos): propondo a criação de uma contribuição adicional para a Segurança Social. Esta seria aplicada a todas as entidades empregadoras “que apresentem um peso anual de contratação a termo superior à média do respetivo setor de atividade económica”. Ou seja, mais contratos a termo, mais pagamentos à Segurança Social.

Por outro lado, também se alarga o período experimental (de 90 para 180 dias) para contratos sem termo, no caso de trabalhadores à procura de primeiro emprego e desempregados de longa duração, incluindo o período de estágio.

As medidas que limitam os contratos temporários de trabalho, vulgo “contratos a termo”, mereceram já uma avaliação das equipas do Banco Central Europeu e da Comissão Europeia que acompanham o pós-Programa de Assistência Económica e Financeira.

“A evolução positiva do mercado do trabalho parece assentar nas políticas estruturais iniciadas durante o programa de ajustamento macroeconómico. Apesar disto, ainda é essencial que as políticas continuem a apoiar a adaptabilidade do mercado de trabalho. Nesta medida, a utilização alargada de contratos temporários de trabalho poderia ser mais bem combatida através de contratos sem termo mais flexíveis do que pela introdução de restrições nos contratos temporários”.

Em resumo, o Banco Central Europeu e da Comissão Europeia acham o contrário daquilo que o governo propôs aos parceiros e os parceiros aceitaram (com exceção da CGTP).

O risco da inconstitucionalidade do alargamento do período experimental

Sobre o alargamento do período experimental, Tiago Cochofel Azevedo antevê problemas de outra natureza: constitucionalidade.

“O Governo tem a total perceção disto, porque quem lê o preâmbulo vê que não é normal toda a justificação que é dada para a introdução desta medida. Há todo um conjunto de considerandos a propósito desta medida que claramente visam antecipar problemas de constitucionalidade. Isso é claríssimo”, afirma o advogado da Vieira de Almeida & Associados.

Em 2008, o Tribunal Constitucional chumbou uma norma que alargava para 180 dias o período experimental dos trabalhadores indiferenciados, por entender que violava o direito à segurança no emprego e o princípio da proporcionalidade. Na altura, a proposta também partiu do ministro Vieira da Silva.

Agora o governo defende-se, argumentando na exposição de motivos da proposta de lei que esta alteração não é nem “excessiva” nem “desproporcionada”.

Ainda assim, apesar dos vários obstáculos, o principal problema será político. Em janeiro, o Bloco de Esquerda apresentou cinco projetos-lei de alteração à legislação laboral precisamente para corrigir as “distorções da troika” introduzidas no Código do Trabalho.

Os bloquistas propuseram, entre outras medidas, proibir o despedimento por inadaptação, revogar as alterações ao despedimento por extinção do posto de trabalho e revogar as alterações às indemnizações por despedimento aos trabalhadores.

No que diz respeito às indemnizações, o BE queria voltar à base de cálculo dos 30 dias (um mês por cada ano de serviço) para as compensações por cessação do contrato de trabalho. Este valor passou para 12 dias de retribuição base e diuturnidades no período do programa da troika.

No entanto, as alterações que resultam do acordo de 30 de maio com os parceiros sociais concentram-se mais nos contratos a termo do que nas questões levantadas pelo Bloco.

Governo prepara “aliança” com a direita para aprovar alterações laborais, diz CGTP

Para o governo, pelo que se pode ler na proposta de alterações, o “combate à precariedade” faz-se com um travão aos contratos a termo. As questões sobre as condições de despedimento e respetivas indemnizações ficaram de fora. E o Governo pode ter de vir a recorrer à direita para fazer passar estas alterações.