Paris cumpre calendário. A semana da moda, masculina entenda-se, está nas ruas e, apesar dos grandes desfiles passarem bem mais despercebidos do que as apresentações de womenswear, a agenda sente-se nos showrooms improvisados em galerias de arte e nos manequins, buyers e produtores em trânsito. Há precisamente dois anos, o português Hugo Costa passou a fazer parte do calendário oficial. Poder antecipar uma estação em Paris enquanto tudo acontece é o portão que, duas vezes por ano, se abre para a internacionalização da marca.

Três pisos, paredes brancas, flores, vegetação e pratos, dezenas de pratos, inteiros e aos cacos — o cenário foi montado numa galeria do Marais, na passada quarta-feira, para ajudar o designer a contar uma história, a história do perfeito e delicado lado a lado com o rude e o imperfeito. É Kintsukuroi, a arte japonesa de, com ouro, prata ou platina, reconstruir e reparar peças de cerâmica partidas, mas é também o guarda-roupa de Hugo Costa para o verão de 2019. “Quando desenhei a coleção anterior [outono-inverno 2018/19] já estava a preparar esta, já sentia que precisava de estampados, de trabalhar a ganga, já sentia que queria fazer tie-dye, só precisava de encontrar alguma coisa que ligasse esses elementos todos”, conta o criador, ainda durante a apresentação da coleção, que durou duas horas e meia.

Hugo Costa repetiu a fórmula de sucesso: em vez de um desfile convencional, deu a conhecer a sua coleção para o verão do próximo ano através de uma apresentação © Divulgação

Para Hugo Costa, não há método em cânone na hora de fazer nascer uma coleção sazonal, não há o ato único e repetido de procurar uma inspiração por uma determinada via. Há sim a permeabilidade dos sentidos, como no dia em que esbarrou na capa de um “livro piroso”, como lhe chama. Pela capa, dava para perceber que, lá dentro, a arte japonesa ganhava fins terapêuticos, de auto-ajuda. Hugo saltou todas as páginas de uma vez e mandou uma mensagem à equipa: “Já temos tema para a coleção”.

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“Estou a contrariar-me desde a última estação, mas não podíamos fazer logo tudo de uma vez. Queremos menos color block e dar um lado mais romântico à marca. Mantivemos os cortes das calças, algumas silhuetas, mas trabalhámos materiais diferentes”, explica.

Em Kintsukuroi, há ruído e há serenidade, há uma androginia que sempre esteve lá, mas que agora salta à vista com coordenados florais da cabeça aos pés, materiais, ora fluidos e vaporosos, ora com a robustez da ganga e da sarja de algodão. Há clássicos do guarda-roupa masculino reinterpretados sob a influência da estética nipónica, da silhuetas clássica de um quimono ao street style mais vanguardista das ruas de Tóquio. A cor entrou no léxico de Hugo Costa em tonalidades nunca antes vistas. De repente, a paisagem é pastel, a roupa não tem género e o designer admite que esta era a coleção mais desejada de sempre.

Os pratos inteiros, a louça partida, as paredes brancas e as flores e plantas. Hugo Costa idealizou o espaço em função da coleção Kintsukuroi © Divulgação

“Acho que com a experiência e com o tempo vamos perdendo também a paixão, mecanizamo-nos e encontramos metodologias que nos automatizam. Precisava de dar um toque mais artesanal”, reflete. Nos bastidores desta coleção, estão longas horas passadas ao fogão. Hugo recorda o ano de 2009, quando saiu do Concurso Acrobatic com a distinção para o Melhor Coordenado Masculino. Não houve mais tie-dye desde então, mas voltou a haver agora e faz desta a coleção mais suada dos últimos tempos.

“Foi um trabalho ingrato, porque a maior parte das peças com cor, tirando a ganga, foi feita em branco. No final, tivemos de planear tudo muito bem para a mancha de cor funcionar. Foram muitas noitadas passadas na cozinha de casa com uma panela, água e pigmento. Tudo era cronometrado — o tempo de fervura, a água fria. Queimei-me todo, mas foi o processo mais fixe que já tive”, afirma.

O trabalho foi matemático — foi preciso preparar fórmulas de diluição que serão depois replicadas à letra na fábrica –, mas também de paciência. Além do saudoso tie-dye, também a ganga deu trabalho. Foram outras quantas horas passadas numa lavandaria self-service para chegar ao acabamento ideal. Acabamento esse, quase sempre imperfeito, do princípio ao fim da coleção (uma pequena amostra que o criador, certamente, irá aumentar na próxima edição do Portugal Fashion, em outubro). Os retalhos, as costuras deixadas em cru, o mesmo tecido em cores diferentes — o designer brinca com a ideia de algo inacabado, ao mesmo tempo que presta culto à imperfeição. Isso torna-se visível quando damos de caras com um blusão azul com manchas cor-de-rosa, irregulares nas costas. Foi a última peça a ser tingida, já depois dos pigmentos se terem contaminado. “Não só não o estraguei, como está muito fixe”, exclama.

Ao mesmo tempo, o designer dos materiais técnicos parece começar a virar-se para as fibras naturais, entre elas a sarja de algodão e o tencel. A camisa, diz Hugo, é a peça-chave da coleção. Vai da risca clássica à mistura de tecidos que a fazem parecer algo de reconstruído. Há meio ano, a última coleção atingiu os melhores resultados de sempre no que toca a vendas em showroom. Em Portugal, é notório o aumento do número de pessoas a procurar a marca para compras diretas. Para o criador, o estilo permanece intacto. Hugo Costa não mudou, só floresceu.

O Observador viajou até Paris a convite do Portugal Fashion.