Nasceu filho de Francis Ford Coppola, mas não foi isso que o demoveu de talhar o seu próprio (e irreverente) caminho. Nos anos 90, começa a realizar videoclipes. No novo milénio, aventura-se na realização para o grande ecrã. Hoje, entre mil e um projetos e a tarefa de gerir o estúdio de cinema dos Coppola, faz dupla implacável com Wes Anderson, união que o levou a ser nomeado para o Óscar de Melhor Argumento Original pela escrita de “Moonrise Kingdom”.
No último sábado, Roman Coppola foi a Espinho para participar no FEST – Festival Novos Realizadores Novo Cinema e conversou com o Observador sobre algumas das suas mais recentes colaborações, como a “Ilha dos Cães” e o “Mozart in the Jungle”, e sobre a curiosidade inabalável que o incita a explorar o desconhecido. Ainda houve tempo para revelar uma tradição do Dia de Ação de Graças dos Coppola, deixar alguns conselhos aos jovens cineastas e fazer um anúncio: Coppola já está a escrever um novo filme com Wes Anderson e Jason Schwartzman – e, desta vez, não é de animação.
É conhecido na indústria de cinema por ser multifacetado. Afinal, quem é Roman Coppola – um argumentista, um realizador ou um produtor?
Na verdade, não tento encaixar-me em nenhuma categoria. Sou uma pessoa curiosa e quando surge algo que me me chama a atenção, principalmente se é algo que eu nunca fiz antes, aposto nisso. Não quero ser demasiado convencido, mas acredito que não haja outro alguém que tenha desempenhado tantos cargos profissionais no mundo do cinema como eu. Comecei a trabalhar quando tinha 16 anos, na área do som, e desde aí fiz quase tudo o que há para fazer na criação de um filme. Orgulho-me disso porque advém da curiosidade que sempre tive. É divertido aprender coisas novas.
Recentemente, escreveu o argumento da “Ilha dos Cães”. Esta já é a terceira vez que escreve uma longa-metragem em conjunto com Wes Anderson. Numa entrevista, Anderson referiu-se a si como o seu “canivete suíço”. Como é que é a vossa relação?
Somos amigos e conhecemo-nos antes de começarmos a trabalhar juntos. Temos um sentido de humor e uma sensibilidade semelhantes, mas somos muito diferentes enquanto pessoas, o que acho que acaba por ser um elemento interessante. O Wes não é alguém que goste de trabalhar sozinho, ele gosta da sensação de camaradagem e muitas das nossas sessões de escrita são feitas às refeições ou durante viagens. Já viajámos muito em trabalho, principalmente no nosso primeiro projeto em conjunto, o “The Darjeeling Limited”. Acho que o meu talento no trabalho com o Wes parte muito de ser capaz de lhe fazer perguntas estimulantes, que o levem a outras ideias. Porque quando estás a trabalhar num guião, podes sentir-te um pouco indeciso acerca do rumo a seguir. Eu sou uma espécie catalisador, que vai mantendo as coisas a avançar.
E como é que surgiu a ideia para a “Ilha dos Cães”?
Nas primeira conversas com o Wes, ele dizia-me: “Estou a ter uma ideia de algo que se passa no Japão, no futuro, e que envolve cães”. Qualquer um que trabalhe numa área criativa sabe que é assim que tudo começa – é como se fosses um recetor de rádio a tentar apanhar um sinal. A partir daí, eu e o Jason [Schwartzman] começámos a “atirar-lhe” ideias e ele funcionou como um filtro. Depois, quando na imaginação do Wes já havia uma ilha cheia de cães abandonados, começámos a fazer perguntas: “Se calhar alguém tem um cão que foi levado para lá e agora quer encontrá-lo. Mas porque é que o cão está lá? Se calhar, há alguma espécie de corrupção que fez com o cão fosse tirado da pessoa. E quem são os corruptos? São os políticos.” E a ideia foi desenrolando-se. Mas devo dizer que a nossa escrita é muito pragmática, que não advém de querermos falar de algum assunto ou tema atual através de metáforas. Até pode haver alguma maior sensibilidade perante um tema, mas não é intencional, de todo.
Escrever para animação é diferente de escrever para um filme de live action?
Com animação é possível fazer tudo. Podes ter uma vasta ilha coberta de lixo e 10 mil cães, o que quiseres. Contudo, e o Wes é mais experiente nisto, há coisas que nos dificultam a vida. Queríamos um rapaz a cortar sushi e essa sequência demorou meses a fazer, devido à mecânica e à escala da coisa. Quando chega a parte da realização, por vezes a escrita tem de se adaptar, porque é demasiado difícil fazer certas coisas. Mas isso acaba por ser uma tarefa do realizador, porque enquanto escrevemos temos bastante liberdade.
Além da escrita, já realizou e produziu anúncios, videoclipes, programas de TV e filmes. De tudo o que já fez, quais são os projetos de que mais se orgulha?
O “Moonrise Kingdom” foi um projeto muito especial e tem um valor sentimental – é sobre crianças de 12 anos e o seu primeiro amor, é algo que tem muita alma. E o facto de ter sido bem recebido é muito bom. Mas todos os meus trabalhos representam diferentes capítulos da minha vida. O meu primeiro trabalho profissional ao nível da realização consistiu em filmar a second unit para a versão que o meu pai fez do Drácula. Nesse filme, fiz muitos dos efeitos visuais. Aquela era uma altura em que os efeitos estavam a mudar de estado, do físico para o digital, e nós fizemos um trabalho de alto nível à moda antiga. Depois tenho os meus filmes, o “CQ” e o “Dentro da Cabeça de Charles Swan III”, que são os meus bebés. São filmes que realizei, escrevi, editei, fiz de tudo. Não foram particularmente bem recebidos, mas muito sinceramente são filmes que significam muito para mim.
Por falar no “Dentro da Cabeça de Charles Swan III”, li que foi a partir da vontade de fazer um filme para a música “Whose Blues”, de Liam Hayes, que o filme nasceu. Costuma escrever de acordo com a música que ouve?
A música é uma grande parte da minha experiência no mundo do cinema. Fiz imensos videoclipes e, por isso, para mim, a música tende a desbloquear ideias. Os filmes do Wes têm, muitas vezes, uma forte componente musical. No processo de escrita, ouvimos música – é um elemento criativo muito estimulante. E é verdade que quando ouvi a música “Whose Blues” pensei logo num filme que desse vida ao espírito que a música me sugeriu. Por isso, sim, eu adoro música e para mim ela tem uma conexão forte e misteriosa com o cinema.
E, para lá da música, como funciona o seu processo criativo?
Eu tenho uma teoria: acho que é preciso pores uns “óculos especiais” para o projeto em que estás a trabalhar. Esta é uma analogia parva, mas imagina: se é Dia do Pai e tu estás com esses óculos postos enquanto caminhas na rua, vês as montras e reparas no que é que ele poderá gostar. Se não for Dia do Pai, nem olhas. Portanto, quando estás a pensar um filme, tens de pôr esses óculos e começar a ver as coisas através desse filtro. Pode ser qualquer coisa: arquitetura, por exemplo. Este espaço em que estamos parece um cenário futurístico de uma estação espacial – se eu estivesse a pensar em fazer um filme sci-fi, começava a imaginar que ali poderiam estar lasers e ali uma passerelle com soldados. É importante pensar através desse filtro.
O “CQ” saiu em 2001 e o “Dentro da Cabeça de Charles Swan III” saiu mais de uma década depois. Está a fazer outra pausa na realização de filmes ou já tem planos para o próximo?
Eu tenho um modo estranho de trabalho. Faço muitas coisas diferentes e esses dois filmes demoraram muito a nascer, pensei neles durante muito tempo. E são filmes estranhos, não são histórias comuns com uma estrutura de três atos. Neste momento, não tenho nenhum plano traçado, mas é engraçado teres-me perguntado isso porque estou num momento em que de alguma forma estou a levantar a minha “antena de rádio” para procurar coisas que sejam divertidas de fazer. Os meus dois outros filmes surgiram de frustrações. Quando tens um problema na tua vida ou estás a lidar com um conflito, às vezes a arte é uma forma de o ultrapassar. Recentemente, tenho estado mais satisfeito com a minha vida pessoal e tenho feito outras coisas, por isso não sinto tanto a necessidade de fazer um filme. Mas, ao mesmo tempo, há algo de inquietante nisso, porque é divertido sentir a paixão que surge quando estás a meio de algo.
Então, em que é que está a focar as suas atenções neste momento?
Neste momento, eu, o Jason e o Wes estamos a trabalhar numa nova história. É esse o projeto principal que tenho em mãos.
É outra animação ou é um filme de live action?
É um live action e não posso dizer muito mais. Estamos a escrevê-lo agora, por isso ainda não vai ser realizado já. Talvez no próximo ano.
Um dos seus projetos mais recentes é a série “Mozart in the Jungle”. Como surgiu a ideia?
O Jason, o meu primo, leu sobre o livro numa crítica do The New York Times e as tags eram sexo, drogas e música clássica. E ele achou logo que soava a uma série de TV. E eu concordei, porque era sobre aquele mundo que consideras muito refinado, sofisticado, e por trás disso eles estão todos a ter casos e a fazer asneiras. Conseguimos os direitos e propusemos a ideia à HBO, que aceitou. Começamos a fazer o guião com outro colega e, um ano depois, disseram-nos que já não ia dar, porque iam fazer uma série chamada “Girls”. Foi posto de lado, já nada ia acontecer, mas alguém na Amazon leu o guião e quis avançar. Foi uma questão de sorte.
Ficou feliz com o resultado final?
A série durou quatro temporadas. Nas primeiras duas, eu, o Jason e o Paul Weitz, o outro criador, estivemos muito envolvidos, estivemos no set todos os dias. Por isso, quando ganhámos o Globo de Ouro foi muito bom, porque sabíamos que tínhamos trabalhado muito. Em cada temporada, realizei um ou dois episódios e fiquei muito orgulhoso deles. A televisão é um formato um bocado rígido, em que não há muito espaço se ser experimental, mas consegui contornar isso: na primeira temporada fiz uns takes muito longos e ficaram com uma espécie de essência de Fellini; no ano seguinte, filmei dois episódios no México, que tinham um estilo muito distintivo dos outros; depois, fiz uma espécie de “falso documentário” filmado com filme, com 17 câmaras de 16 milímetros, numa cadeia, foi uma aventura; o último episódio que fiz foi meio estranho, ao estilo do Kabuki [um género do teatro japonês]. Estou a enumerá-los porque transparecem uma qualidade estranha que eu tenho, que é sentir-me estimulado a fazer coisas completamente diferentes. E se pedires a todos os realizadores de séries de Hollywood para enumerar quatro coisas diferentes que já fizeram, acho que nenhum terá algo de significativo a dizer.
Por entre os seus projetos pessoais, sei que já gravou a second unit de nove filmes dos Coppola. Além disso, ajudou sua irmã a terminar o guião de “The Virgin Suicides” e sugeriu algumas ideias para o guião da sua mãe de “Paris Can Wait”. Discutem os vossos projetos nos jantares de família?
Na altura do Dia de Ação de Graças, temos uma espécie de tradição porque os filmes, nos Estados Unidos, tendem a sair no Outono e depois a Academia envia-os todos. Por isso, há um período de tempo em que estamos juntos e há uns 20 filmes fantásticos para ver. Durante esses dias, vemos os filmes e falamos sobre eles. Mas somos como qualquer outra família, não falamos especificamente dos nossos projetos. Costumo ler as coisas da Sofia [Coppola] e dar-lhe conselhos, o mesmo faz o meu pai. Nós ajudamo-nos uns aos outros, é claro, mas não é o nosso tema à mesa de jantar. [risos]
Ao FEST trouxe uma versão restaurada do primeiro filme do seu pai, o “Dementia 13”. Tem algum significado especial?
O filme foi recentemente restaurado e quando eu fui convidado para o festival pensei logo que o podíamos apresentar, porque sei que este é um festival focado nos jovens cineastas e porque este foi o primeiro filme do meu pai. Os meus pais conheceram-se naquele filme, por isso é um capítulo sentimental e bonito da história da nossa família. E eu vi-o ao longo dos anos e faz parte do imaginário do meu crescimento. Por isso, sim, é uma lembrança engraçada.
Por falar em jovens cineastas: que conselhos, ao nível da escrita, tem para eles?
É preciso ires para a paragem do comboio para conseguires entrar no comboio da escrita. Às vezes, quando escreves, não sabes muito bem o que estás a fazer, mas é importante pegares no teu caderno, sentares-te, para proporcionares a possibilidade de algo acontecer. Tudo isso significa investir tempo e esforço. Na questão da inspiração, esperar que algo caia do céu não funciona. Depois também é aquela questão de pores os teus “óculos especiais” para filtrar, da realidade, o que pode ser interessante para o teu trabalho.
Além disso, a minha experiência na escrita assemelha-se muito à resolução das palavras cruzadas. Às vezes, quando estás a completar as palavras cruzadas chegas a um beco sem saída, não consegues avançar, e pensas “Quem construiu este quebra-cabeças deve ter-se enganado” ou “Não vale a pena, não vou conseguir”. Mas se pousares aquilo um bocado e depois voltares a olhar para lá, acabas por conseguir completar mais um bocado ali, outro acolá. É muito fácil que o teu processo de escrita seja interrompido. Mas tens de ser perseverante. Se sabes que há algo ali, tens de investir o esforço que for preciso. E também tenho uma teoria – acho que é preciso que sejas um bocado iludido perante ti mesmo. Há muitos artistas que são um bocado egocêntricos e essa é uma boa ferramenta, porque achares que o teu trabalho é fantástico, que é uma das melhores coisas que já foram feitas, faz-te continuar. Nutrires um bocadinho de ilusão pode ser bom.