Enviado especial do Observador à Rússia (em Moscovo)

Em dias de jogo, os centros de imprensa dos estádios tendem a ter um pico de afluência de manhã, mais por causa dos repórteres fotográficos e das listagens para fazerem o encontro de determinada zona do que outra coisa. Hoje, no Spartak Stadium, o pico veio mais cedo, ficou e à tarde teve uma casa tão cheia que estava tanta gente de pé como nas centenas de lugares que compõem o espaço. E da Bahía ao Rio de Janeiro, houve diretos, muitos diretos, uns a seguir aos outros. A comunicação social do país está em peso no evento e há cadeias de televisão que têm equipas fixas em todas as cidades além das volantes que vão seguindo seleções em específico. Uma loucura, quase tão louca como o momento em que a Coreia do Sul marcou à Alemanha nos jogos do grupo F que se realizaram esta tarde. “Estão contentes porque não cruzam com a Alemanha”, pensámos nós. Mas não, não era apenas isso. “Já dizia o outro: toda a gente tenta mas só há um que é penta!”, diziam em clima de festa. Nem nos lembrávamos disso: com a Itália fora da Rússia após a eliminação no playoff com a Suécia, era dos germânicos que poderia vir o perigo não só nos oitavos de final mas também do triunfo na prova. Isso acabou. Mas faltava o resto. Que às vezes os próprios esquecem.

No triunfo sofrido e arrancado a ferros diante da Costa Rica, as centenas de brasileiros presentes no Fan Fest de Moscovo não se cansaram de cantar “O campeão voltou, o campeão voltou!” até começarem a ver o caso mal parado e Neymar passar de jogador genial a fiteiro de cabelo duvidoso que anda sempre no chão. Aliás, de todos os muitos contactos que vamos mantendo de forma inevitável em qualquer rua ou local da Rússia, onde não existe nenhum tema que não seja futebol, existe essa perceção de confiança desmedida dos brasileiros no título. Olhando para as últimas edições, e mesmo passando por cima da histórica goleada com que foram humilhados pela Alemanha em 2014 no “seu” Mundial (7-1), demasiada. Mas têm. E dentro do carrossel de euforias que consegue qualquer jogo, existe um ponto de equilíbrio que serve de trave de confiança: o ex-treinador do Corinthians Tite, o técnico que deu uma ordem tática à anarquia da canarinha em campo. Nem todos gostam do estilo, porque preferem daquelas equipas com dez avançados e futebol do meio-campo para a frente, mas querem é resultados.

Se a isso juntarmos o facto de já saber antes a equipa inicial do Brasil, a Sérvia acreditava que podia aproveitar um possível excesso de confiança para surpreender o teórico favorito. E foi isso que Kolarov (que escreveu um artigo arrepiante no The Players’ Tribune, onde explica como foi viver na Sérvia com aviões a sobrevoarem o céu e bombas a cair às vezes perto de si durante a guerra) abordou também na conferência de imprensa antes do encontro: “Talvez nos tenham subestimado, não sei. Não quero pensar nisso agora. Há questões mais importantes e sérias para refletir. Talvez até estejam a provocar, não sei mesmo. Se ele [Tite] disse qual ia ser a equipa, pode ser uma tática preparada por ele, é sinal que estão prontos”, atirou.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Era mesmo confiança. Porque este Brasil, que tem como mandamento (admitido pelo próprio treinador) uma das frases mais célebres de Nelson Mandela, “aprendeu que a coragem não é a ausência do medo mas sim o triunfo sobre ele”. E como “o homem corajoso não é aquele que não sente medo mas o que conquista esse medo”, evoluiu em relação aos dois primeiros jogos, foi mais consistente e mais uma vez teve a estrela a fazer a diferença. E não, não é Neymar. O craque do PSG é um pequeno génio com a bola nos pés, continua com aquele amor incondicional ao futebol de favela com chuteiras caras nos pés, mas quando vemos o jogo percebemos que é pelo que ele faz, de bom e de mau, que o Brasil se torna melhor ou pior. E não foi por acaso que Tostão, campeão mundial em 1970, escreveu esta quarta-feira na Folha de São Paulo uma frase com tanto de verdadeira como de contornável: “À Alemanha falta um Coutinho, ao Brasil falta um Kroos”. Algumas vezes, é Coutinho que faz de Kroos. Ou pelo menos, nas fases em que recua no terreno, pensa como Toni e executa como Kroos. O ’11’ joga mesmo muito.

O encontro começou mexido, intenso, com bola cá, bola lá e um momento que pode marcar o resto do Campeonato do Mundo: após uma bola disputada com Tadic no lado direito do ataque sérvio, Marcelo ficou a queixar-se e deu logo sinal de que teria de ser substituído, dando lugar a Felipe Luís (que nem chegou a aquecer, foi só mesmo tirar o colete e entrar) aos dez minutos. E com um ambiente frenético de um lado e de outro, com os adeptos balcânicos, mesmo em minoria, a darem lutaa sempre entusiasta e ritmada torcida do Brasil, a fazer um bruuuuuuuaaaa no estádio sempre que a bola estava em Neymar.

Os estilos não poderiam ser mais diferentes, mas foram as ideias de jogo de Brasil e Sérvia que tornaram este encontro tão interessante e, em paralelo, com a emoção de ver onde iria cair o primeiro golo. Do lado da canarinha, aquele futebol muito típico e rendilhado do meio-campo para a frente, com técnica, mobilidade, passes curtos e desmarcações constantes que também jogava com a profundidade de Gabriel Jesus e as entradas entre linhas de Paulinho e Casemiro; do lado da equipa de Mladen Krstajic, menos posse com maior verticalidade, procurando sempre as transições rápidas pelos corredores laterais para encontrar os espaços nas costas dos laterais contrários e explorar o jogo aéreo (afinal, é a equipa mais alta da prova).

Em dez minutos, houve três oportunidades que reproduziram bem esses estilos: primeiro Neymar, numa jogada onde fez o seu segundo ou terceiro túnel do jogo, combinou com Gabriel Jesus em passes curtos, entrou na área e rematou para grande defesa de Stojkovic (25′); depois Mitrovic, não de cabeça mas num remate em queda após nova saída de rápida pelas alas com cruzamento (34′); por fim, Paulinho, a fazer a diferença a entrar de trás para a frente no corredor central, a receber de forma orientada mais um fabuloso passe de Coutinho e a desviar com um toque subtil por cima do guarda-redes para o primeiro golo (36′).

Mesmo antes do intervalo, Neymar voltou a fazer a diferença no 1×1 saindo da esquerda para o meio em diagonal sempre naquele gingão e a parar quase que “provocando” o adversário (no bom sentido) antes de partir para cima dele, mas o remate saiu um pouco ao lado da baliza de Stojkovic, que nada poderia fazer a não ser apreciar mais um momento do avançado do PSG. No descanso, e bem que as equipas precisavam, o Brasil estava na frente e a passar no primeiro lugar do grupo.

O segundo tempo pareceu trazer uma Sérvia mais capaz de esticar jogo e subir linhas, mas foi o conjunto de Tite, no seguimento de um canto do lado contrário, a beneficiar da primeira oportunidade de golo, com Coutinho a começar a jogada com um toque de calcanhar, a ir buscar mais à frente, a isolar Neymar mas o avançado, mais uma vez, a perder no frente a frente com o ex-guardião do Sporting (57′). Acabaria, ainda assim, por ser um indicador errado do que se seguiria: durante alguns minutos, os balcânicos encostaram o adversário às cordas e tiveram três grandes chances: Mitrovic, após um cruzamento apenas desviado ao de leve por Allison, encontrou as pernas de Thiago Silva no caminho a impedir o desvio letal (60′); Milinkovic-Savic, de fora da área, tentou colocar a bola no ângulo mais distante mas a bola saiu ao lado (63′); e de novo Mitrovic, após centro largo da direita, subiu mais alto ao segundo poste mas o cabeceamento foi parar às mãos do bem colocado Allison (65′).

O golpe final na partida acabou por aparecer poucos minutos depois e da forma que menos se esperava: canto batido na esquerda por Neymar, queda de Mitrovic com Miranda por perto na zona do primeiro poste (com muitas queixas de uma possível falta por parte dos sérvios) e cabeceamento sem hipóteses de Thiago Silva, a aumentar a vantagem aos 68′ e numa altura em que Tite tinha refrescado a equipa trocando Paulinho por Fernandinho. Logo a seguir, numa segunda bola à entrada da área, Felipe Luís atirou forte para defesa de Stojkovic (71′), mas os “olés” que se ouviam nas bancadas quando os brasileiros trocavam a bola de pé para pé diziam tudo sobre o que se seguiria. Aliás, o ambiente era tal que nem se aperceberam da saída de Coutinho (79′).

Até ao final do encontro, Neymar ainda teve três grandes oportunidades para chegar ao 3-0 e voltar a marcar neste Mundial, mas a falta de pontaria e a elasticidade de Stojkovic mantiveram a diferença de dois golos até ao final. “Ney-mar! Ney-mar! Ney-mar!”, ouvia-se das bancadas antes do já típico por estas bandas “O campeão voltou!”. Mas para haver o cântico do avançado, que quando não se perde em picardias com os adversários e protestos com os árbitros está no top dos melhores da atualidade, e para o sonho de chegar ao hexa continuar vivo, existe um Allison que é um monstro na baliza, Thiago Silva e Miranda numa dupla sólida cá atrás e um duplo pivô no corredor central formado por Casemiro e Paulinho que equilibra a equipa. E existe, sobretudo, aquele que é o herói-menos-herói-por-não-querer-ser-herói deste Campeonato do Mundo: Philippe Coutinho.