Filipe Mendes morreu esta segunda-feira, 13 de agosto, aos 70 anos. A notícia foi confirmada na página oficial de Facebook do músico. “O Phil partiu mas deixou-nos muitas lições de amor, amizade, profissionalismo é humanidade”, escreveu Vasco Ludgero, amigo do músico. Ao mesmo tempo que devemos lamentar a despedida do guitarrista lisboeta, pai de cinco filhos, convém lembrar que Phil Mendrix, o mito que atravessou todas as décadas do rock português, desde os primeiros tempos de apatia ditatorial, ao parco hard rock lusitano e êxtase burlesco dos Ena Pá 2000, é uma presença eternamente viva. Permanece a lembrança ébria de quem ao longo destes 50 anos de carreira testemunhou a cabeleira encaracolada a desbravar solos de guitarra, enquanto lá fora, longe da ilha que é um palco, o país crescia, com medo, com liberdade, com a Europa e com Filipe Mendes de olhos cerrados a sonhar o impossível, um dedilhar de notas desenfreadas que nos faziam esquecer que crescemos, que os anos passavam por Portugal. Phil Mendrix, o mito, conseguia parar o tempo.

A imagem de marca é o cabelo desgovernado, acompanhado pela mira certeira da arma que mata fascistas, como diria Woody Guthrie, isto é, a guitarra de Phil Mendrix, nome de batismo improvisado pelo homem dos sacrilégios, Manuel João Vieira, líder dos Ena Pá 2000, que assim renomeou quem em Portugal esteve mais perto de atingir a neblina roxa de Jimi Hendrix.

O som de Filipe Mendes é o mais divino no que respeita às hierarquias da guitarra elétrica, remete para os tempos gloriosos dos deuses do rock, notas que voam sempre perto de abismo, não estamos a falar apenas de Jimi Hendrix, mas Eric Clapton, Jimmy Page, Jeff Beck, que ficavam no olimpo dos holofotes enquanto os vocalistas aceitavam a sombra. Nos Chinchilas e Roxigénio, Filipe foi o solista mais célebre do rock português, e tal como Zé Pedro, outra grande perda recente da guitarra portuguesa, emanava uma alegria, humildade e despretensiosa entrega que quase ofusca a sua evidente capacidade técnica. Quase.

“Os amplificadores eram fortes, os gritos das miúdas eram mais”

Filipe Mendes nasceu em Lisboa, 1947, e como muitas crianças da mesma geração, conheceu os encantos de Portugal através das histórias e olhos dos pais, que emigraram para Moçambique dois anos após o nascimento do filho endiabrado. Aos 14 anos, a viver no meio da mata africana, recebe do avô a bússola que lhe iria dar o norte durante os 70 anos de vida: uma viola. “Agarrei-me aquilo dia e noite, não sei como é que os dedos aguentavam” contou no podcast “A Beleza das Pequenas Coisas”.

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Inseparável da viola, encontrada a amizade que lhe duraria uma vida, recebe as boas novas que chegam de barco a África, uma revolução chamada Elvis Presley, Little Richard, Chuck Berry. Poucos anos depois, no regresso a Portugal, a tempestade dos Beatles e Rolling Stones arrasa com tudo à passagem, e a sua vida nunca mais seria a mesma, por dentro e por fora.

Solta os cabelos e desiste de qualquer pretensão obsoleta de trabalhar das oito às cinco. Vive pela linha de Cascais, onde José Cid e companhia já tentavam virar do avesso a música popular portuguesa. Junta-se à festa do ié-ié, os primórdios do rock português, e cria os Chinchilas inspirado nos órgãos estridentes e rhythm and blues pesados dos The Animals de Eric Burdon. José Machado seria responsável por mimetizar o orgão de Alan Price, Fernando e Mário Piçarra acompanham o ritmo na guitarra do líder Filipe Mendes, e Vítor Mamede trata da bateria.

“Os amplificadores eram fortes, mas os gritos das miúdas eram mais fortes”, conta no Podcast “A Beleza das Pequenas Coisas”, na época que marcam ponto nos míticos concursos yé-yé no Monumental. O EP I’m a Believer, 67, com a faixa título totalmente calcada dos Monkeys, revela três surpreendentes composições originais do líder: “Crying”, Take That Train” e o embalo dylanesco de “Marry Me”.

1967 é também o ano que Filipe Mendes decide aprimorar a técnica e rumar para a Chicago School of Music, numa altura especialmente emblemática para viver nos EUA, em pleno verão de amor. Regressa no ano seguinte, a tempo de fechar o primeiro capítulo dos Chinchilas com a belíssima contemplação de “Calmas são as imagens”, lisérgica melancolia comandada pela guitarra, com coros de Judi Brennan e Daphne.

A banda, como tantas outras da época, é desfalcada pela tropa, e Filipe não é de meias medidas, pega em todos os instrumentos e grava o single “Urso Ki”, nos moldes fantasiosos e barrocos de Quarteto 1111, com o lado B “Ring Stone Eyes”, cantado em inglês e com o distinto pedal wah wah de Filipe.

Dos Chinchilas a Vilar de Mouros

A nova década traz uma nova reencarnação dos Chinchilas, mais descréditos, mais pesados, a contar a história do “D. João”, personagem perdido no Portugal fim da ditadura. “No Porto vi-te morto, com um fato bem barato, numa esquina muito fina, a gritar e a chorar”, e lá vai o órgão a implodir, banda, tudo, sentido de peso rítmico praticamente inaudito no início de hard rock português.

“Barbarela” é o lado B, se mais provas fossem necessárias que não havia outro guitarrista como Filipe, trejeitos de Santana, peso de Tony Iommi, e blues floreado de um Hendrix ou Cream. Esta época dos Chinchilas é coroada com a passagem no primeiro festival de rock português, o Vilar de Mouros em 1971, onde Elton John aceita tocar por 600 contos, seguido de Manfred Mann, e claro, a PIDE.

A nova tendência para os fãs das guitarras pesadas eram os power trios e Portugal teve o seu expoente em Heavy Band, que quem viu ao vivo, garante é dos períodos mais férteis de Mendrix, rodeado de amplificadores e pedais como nunca vistos nesta terra. Se nenhuma das bandas pesadas consegue perfurar a psique nacional, o 25 de Abril, a emergência de cantar a liberdade, não ajudou certamente para as pretensões dos hard rockers portugueses.

Psico, um grupo esquecido dos anos 60, de Tony Moura, renasce com Zé Castro, Filipe Mendes e o vocalista performático com ares de canastrão Bon Scott, António Garcez. O som progressivo é gravado em disco, ainda com Mendrix, mas já sem a dupla Garcez/Zé Castro que decide fundar outra banda, os Arte & Ofício. Este vai e troca de bandas serve para contextualizar a génese da música mais teimosa dos anos seguintes.

“Depois do 25 de Abril, o Roxigénio surgiu a cantar inglês, houve alguém que nos chamou imperialistas, o país estava muito quente, cansado da ditadura, tudo que estava associado a estrangeirismos era mal visto”, contou Filipe na RTP2. O novo power trio, Roxigénio, com a dupla Garcez/Zé Castro, totalmente ancorado nos solos de Filipe, obstinados a cantar em inglês, lança o disco em 1980, no mesmo ano que sai o abre latas do rock cantado em português, Ar de Rock. “Estamos adiantados 20 anos em relação a Rui Veloso”, dizia em entrevista o sempre controverso Garcez, vocalista da banda maldita que consegue de teimosia lançar três discos e manter-se na estrada a liderar o parco movimento de hard rock anglófono, ao lado de outros corajosos como os Go Graal Blues Band. Filipe retorna onde foi feliz, ao palco do Vilar de Mouros, segunda edição, 1982, na companhia dos U2, noites que, segundo os historiadores sobreviventes, eram iluminadas pelos ácidos.

O boom rock português, o único momento da nossa história da música popular que o rock tomou proporções de fenómeno nacional, deveria ter sido a consagração da guitarra de Filipe Mendes. Porém, mantinha-se a maldição dos Roxigénio em não vingar, e numa medida drástica, o guitarrista decide mudar-se para uma aldeia no Brasil com a mulher e filhos, confins de Minas Gerais. Entretém-se com concertos na própria casa, palco improvisado com terra e soalho, a tocar em noites de lua cheia para toda a aldeia. E assim passam dez anos.

Ena Pá Phil

Recomeça a vida em Portugal, no Porto como professor de guitarra, em 1992. Os Roxigénio são reformulados, e entre os compromissos que conseguem agendar, estão as primeiras partes para uma banda bizarra de Campo de Ourique que atrai a atenção do país, pela música, pelo comportamento, pela estrutura conceptual do circo em palco, mas sobretudo pelos palavrões. “A irreverência, enfim, os palavrões que, no fundo, escondem um monte de mensagens”, dizia ao Expresso na festa dos 20 anos da banda. Conhecem-se nos bastidores do “merda concerto” no Pavilhão Carlos Lopes e em pouco tempo, Manuel João Vieira dá uma segunda vida a Filipe Mendes, renovado como o personagem Phil Mendrix.

Passa a presença constante nos Ena Pá 2000 e Irmãos Catita, é dos principais intervenientes em A Luta Continua!, disco de clássicos como “Bóbó Bem Bom” e “Paedophilia Com A Minha Tia”, e é ponto alto dos concertos da banda por Portugal, pelo saudoso Cabaret Maxime, na Praça da Alegria. Este ano vimos Mendrix na banda sonora, e filme, de Bruno de Almeida, inspirado no antigo Cabaret Maxime, protagonizado por Michael Imperioli.

Ao longo destes 70 anos de vida, Filipe Mendes nunca parou de tocar, nem quando estava a dormir, segundo a mulher gosta de contar: o marido na cama, a dedilhar longos e complexos solos de olhos fechados. Manteve-se sempre próximo aos projectos de Manuel João Vieira, recuperou a banda Charruas de Dany Silva, festejou os 50 anos de carreira no Ritz Clube na companhia de Jorge Palma e Rui Veloso, recebeu a medalha de honra da SPA e teve ainda um documentário sobre a sua vida, de Paulo Abreu, a estrear no doclisboa.

Nestes últimos dias, no hospital, inconsciente, continuava a tocar guitarra, com os mesmos olhos cerrados, a mesma cabeleira encaracolada, até ao fim. Longa vida a Phil Mendrix.

O corpo de Filipe “Phil Mendrix” Mendes estará em câmara ardente a partir das 15h de terça-feira, dia 14, na Capela de Santa Maria nos Jerónimos. O funeral realiza-se no dia 15. Missa de corpo presente às 14h e saída para o Cemitério dos Prazeres às 15h.