O dia era 25 de março, o ano 2014. Katie Stubblefield, então com 18 anos, apanhou o telemóvel do namorado, que tinha conhecido na escola onde estudava, em Owensboro, no Kentucky, e encontrou mensagens de outra mulher. A primeira reação foi confrontá-lo. Mas ele não teve meias medidas: terminou o namoro. Katie refugiou-se na casa do irmão Robert, em Oxford, agitada, a caminhar repetidamente de um lado para o outro.

Robert ficou preocupado e ligou à mãe. Enquanto os dois conversavam sobre o estado de Katie, ela foi até à casa de banho e puxou o gatilho da arma de caça do irmão, de calibre .308, encostada à cabeça. Ao queixo, mais concretamente. Quando Robert a encontrou, depois de arrombar a porta da casa de banho, a irmã estava caída no chão, coberta de sangue. “A sua cara tinha desaparecido”, conta à National Geographic, que dedicou a capa da edição de setembro à história de Katie — a pessoa mais jovem a receber um transplante de rosto nos Estados Unidos. A norte-americana voltou a ter um rosto depois de 30 horas de cirurgia numa clínica em Cleveland. O procedimento ainda é feito de forma experimental e Katie é apenas a terceira pessoa a tê-lo feito naquele estabelecimento de saúde.

Depois daquele dia de março, Katie perdeu parte da testa, o nariz, a boca (exceto os cantos dos lábios) e grande parte das mandíbulas e dos maxilares. Restaram os olhos, mas gravemente danificados. Foi assim que o médico Brian Gastman a recebeu, cinco semanas depois, para a primeira cirurgia. A sua equipa salvou-lhe a vida, mas não o rosto; os médicos queriam tapar as feridas com um pedaço de pele do abdómen, mas o procedimento não resultou.

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O seu cérebro estava basicamente exposto, estamos a falar de convulsões e infeções e todo esse tipo de problemas. Esqueça o transplante de rosto; estávamos a falar de a manter viva”, contou Brian Gastman. Foi preciso uma equipa multidisciplinar de 15 pessoas para dar conta de todos os problemas que envolviam a saúde da jovem mulher — desde endocrinologistas a psiquiatras.

Após várias cirurgias, o estado de saúde de Katie estabilizou. Os médicos removeram e recuperaram os ossos que estavam partidos e criaram um nariz rudimentar e um lábio superior com tecido da coxa para criar uma passagem nasal e proteger o cérebro. Para o queixo e lábio inferior, os cirurgiões usaram um pedaço do tendão de Aquiles de Katie e ainda criaram um novo maxilar inferior feito de titânio e de um pedaço da fíbula. Para juntar os olhos, os médicos colaram ao crânio um dispositivo de distração óssea, ajustando-o a cada dia.

Katie referia-se a este seu segundo rosto como “Shrek” e, conta a reportagem da National Geographic, nunca se olhou ao espelho nesta fase. Aquela cara desfigurada, que Katie tentava disfarçar com máscaras cirúrgicas ou lenços e que lhe rendia olhares horrorizados na rua, era o melhor que a ciência podia fazer, naquela altura, por alguém com a extensão de danos que ela tinha. O último grande avanço neste tipo de procedimento médico tinha sido em 2005, quando um grupo de cirurgiões franceses — ajudado por médicos da Cleveland Clinic, o mesmo que está a tratar Katie –, fez o primeiro transplante facial parcial.

Katie esperou três anos por um novo rosto, que chegou a 4 de maio de 2017, vindo de uma mulher de 31 anos, Adrea Schneider, que acabava de morrer, vítima de overdose de drogas. “Está a acontecer!”, gritou o cirurgião Brian Gastman, ao entrar no quarto de Katie. “Estás a ajudar a que estas reconstruções sejam uma realidade. Elas só vão melhorar”, acrescentou. Até ao momento, só tinham sido feitas 39 cirurgias como aquela em todo o mundo.

O primeiro corte na operação foi feito às 8h17. Não em Katie, mas na doadora. Foi uma incisão no pescoço para inserir um tubo de traqueostomia para a entrada de oxigénio. Foi o início de um trabalho de 16 horas só para deixar o novo rosto pronto a ser aplicado em Katie. Três a quatro cirurgiões, todos de lupas cirúrgicas, tratavam aquela face como os joalheiros o fazem com as suas pedras preciosas. Quatro horas depois, quando os médicos tiveram a certeza de que a doadora estava estável e que o procedimento não teria de ser abortado, foi feita a primeira incisão em Katie — também para colocar o tubo de traqueostomia, tal como tinha sido feito com a doadora.

A primeira tarefa foi retirar a reconstrução de Brian Gastman ao rosto de Katie, dois anos antes. Depois, começou a ser colocada a nova cara, que chegou à sala de cirurgias numa bandeja. Primeiro o pescoço — o processo de aplicar o rosto acontece pela mesma ordem em que ele é retirado do doador. A face começou, então, a ser ligada aos vasos sanguíneos. O lado esquerdo foi o primeiro; quando os vasos foram soltos, o sangue saiu disparado a correr e o rosto corou. Depois, veio o lado direito. Toda a cara ficou rosada; era o sinal de que tudo tinha corrido pelo melhor. “Houve um grande suspiro interno de alívio por quase todos nós cirurgiões”, contou Gastman.

Pelo meio ainda foi preciso tomar uma decisão: os médicos pensaram em fazer apenas a cirurgia parcial, tentando manter algumas das feições de Katie e diminuindo as complicações pós-operatórias. Mas a mãe, Alesia, lembrou-se de algo que a filha lhe tinha dito: “Quero poder sair e ter uma cara para a qual as pessoas não olhem”. Mesmo com o incómodo de Katie ter de tomar medicamentos anti-rejeição para o resto da vida, o transplante total avançou e foi concluído com sucesso, ao fim de 31 horas.

Desde a operação, Katie já fez três cirurgias de revisão — e é provável que tenha de fazer mais, até melhorar a aparência e também a funcionalidade do novo rosto. A jovem de 22 anos ainda tem dificuldades em falar, devido aos danos causados na sua boca, mas a nova vida que recebeu já lhe permite sonhar. Katie contou à equipa de reportagem da National Geographic que tenciona ir para a faculdade e ajudar pessoas que pensam sobre o suicídio, tentando transmitir-lhes a sua experiência. “Tantas pessoas me ajudaram, agora sou eu que quero ajudar outras pessoas”, remata.