Em Londres, Alexandra Moura está no seu habitat. Gostava que em Portugal também fosse assim — desfiles a começar cedo e passerelles expostas à luz natural. A antiga fábrica de discos de vinil, no bairro londrino de Brick Lane, já está debaixo de olho há um ano. Desde a primeira visita que a designer portuguesa se imaginou a apresentar aqui uma coleção, pela altura do pé direito, pelas paredes de tijolo e pelos janelões e claraboias que, justiça seja feita, exigem que o local seja visto à luz do dia. Cá está ela, sexta-feira, na habitual azáfama que antecede o desfile, de regresso a Londres, depois de uma estação em que o roteiro internacional do Portugal Fashion não trouxe ninguém a terras de sua majestade.

“Esta coleção ganha com a luz natural, fica tudo ainda mais natural, mais real. O desfile deixa de ser só um espetáculo, passa a envolver”, desvenda Alexandra, a poucos minutos do início. A maquilhagem parece complexa — há assistentes a escrever pequenos textos com marcador preto nos pescoços, nas mãos e junto aos tornozelos dos manequins. A prosa está só a começar. Desta vez, através da roupa, Alexandra prepara-se para contar a sua própria história.

Detalhe do desfile de Alexandra Moura © Divulgação

“Esta coleção mexeu muito com o meu íntimo. Marca uma fase em que me virei para mim”, explica ao Observador. A criadora, conhecida pelas viagens a outras culturas e latitudes, foi a Trás-os-Montes, à aldeia de Vila Verde da Raia, perto de Chaves, quase colada à fronteira com Espanha. Da terra, guarda as memórias: da casa dos avós paternos, da taberna que ficava no andar de baixo, dos dias de festa e de procissão e dos verões que passou descalça a correr de um lado para o outro. De tudo isto, nasce Heirloom, uma coleção que é um cartão-postal da infância da autora. Às memórias, juntam-se elementos já reconhecidos como a assinatura de Alexandra — as laçadas, o fitting largo, as camadas e os materiais texturados.

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Hoje, os avós já não estão lá, mas, dentro da cabeça da designer, tudo continua como dantes. “Basta ver fotografias, falar ao telefone com o meu pai e ouvir o sotaque transmontano. A casa já não existe, mas continua tudo tão vivo na minha memória… O som dos sinos [que abriram e fecharam o desfile], as flores com que trabalhámos nos padrões e que nos fazem lembrar os sofás e as carpetes, aquela misturada toda, o quadro na parede, muito kitsch, e claro, também tinham um Menino da Lágrima”, conta. Das roupas do avô, resgatou o clássico pied-de-poule, das blusas da avó, as peças mais fluidas em viscose, e das viúvas da aldeia, a inspiração para o negrume de alguns dos coordenados.

Detalhe do desfile de Alexandra Moura © Divulgação

À parte dos estampados florais com um toque impressionista, a criadora adicionou à coleção uma certa candura, como tão bem mostram os primeiros e os últimos coordenados do desfile. Se nos pedissem, teríamos feito a primeira comunhão ali mesmo. Longas e fluídas, curtas e encorpadas, os materiais moldam as silhuetas daquilo a que Alexandra chama o lado mais puro da coleção. “A colcha branca acetinada, as cortinas com renda e um folhinho. A festa da aldeia, em que todos se vestiam como se fosse domingo, a procissão… Foi sempre uma frustração para mim nunca ter sido um anjinho”, explica.

Esta é a segunda vez que Alexandra Moura constrói uma coleção a partir de recordações de família. O Milagre das Rosas, coleção do verão de 2016, apresentada na ModaLisboa, era na realidade uma evocação das memórias dos avós maternos. A do próximo verão tinha tudo para ser uma ode bucólica à feliz vida do campo, mas a designer resolveu juntar-lhe referências urbanas já tão enraizadas no registo da marca. “Eu própria era uma criança que vinha da cidade. Usava ténis e na altura ficava tudo a olhar para eles ou para as t-shirts com um estampado do Snoopy. Eram coisas que não havia lá”, conta.

Alexandra Moura no final do desfile, esta sexta-feira, em Londres © Divulgação

Hoje, Alexandra chega a Londres mais depressa do que na altura chegava à aldeia dos avós. A capital britânica continua a ser a melhor montra para as criações da designer. Daqui, segue para um showroom, em Paris. Leva a roupa e os sapatos que resultam de uma nova parceria com uma marca de calçado portuguesa, a Exceed Shoe Thinkers. Já o grande mercado está a Oriente. “É um mercado que entende muito bem a nossa estética. A nossa silhueta vai muito ao encontro do que eles são enquanto povo, esta coisa de ser feminina mas não ser colada ao corpo, o largo, as camadas”, explica. No final do desfile, recebeu a editora da edição chinesa da revista L’Officiel nos bastidores. “Esteve a ver a coleção, gostou muito e quer introduzir-nos no mercado”, conta. A marca já está à venda em algumas lojas no país, mas todos os incentivos são bem-vindos. E sim, no próximo verão, todos estes vestígios da pequena Vila Verde da Raia vão estar espalhados pela Ásia. É a globalização, à maneira de Alexandra Moura.

O Observador viajou para Londres a convite do Portugal Fashion.