O processo Face Oculta ainda não acabou mas o trânsito em julgado das condenações decididas pelo Tribunal de Aveiro no dia 5 de setembro de 2014 está muito perto de ocorrer — mas com diferenças entre os réus. Os casos de Armando Vara e e Manuel Guiomar são aqueles que estão mais perto do final e, caso o Tribunal Constitucional não revogue uma decisão do Tribunal da Relação do Porto, o ex-ministro do Desporto de António Guterres e o ex-funcionário da empresa Refer arriscam-se mesmo a ser os primeiros réus do caso Face Oculta a serem presos para cumprir pena. No caso de Vara, está em causa uma pena de cinco anos pela prática de três crimes de tráfico de influência.

Tudo porque o Tribunal Constitucional (TC) tomou decisões diferentes sobre o mesmo pedido de diversos réus. Enquanto Armando Vara (e Manuel Guiomar, ex-funcionário da Refer) viram a conselheira Fátima Mata-Mouros recusar apreciar os seus recursos, José Penedos (ex-presidente da empresa REN — Rede Elétrica Nacional) foi bem sucedido junto da conselheira Maria Rangel de Mesquita ao defender que existiam irregularidades na subida em separado e automática dos recursos dos réus que apenas podiam recorrer para o TC. Isto é, tais recursos deviam esperar esperar pela decisão do Supremo Tribunal de Justiça sobre o recurso de Manuel Godinho, líder do Grupo O2 e principal réu do processo, que foi condenado pela Relação do Porto a uma pena de prisão de 15 anos e 10 meses.

Na mesma decisão, datada de 12 de julho de 2018, a conselheira ordenou que os restantes arguidos, entre eles Domingos Paiva Nunes e Hugo Godinho, esperassem pela nota de trânsito do recurso de Godinho no STJ que foi decidido a 28 de junho.

Entretanto, todas as reclamações relacionadas com o recurso de Manuel Godinho foram concluídas no STJ. De acordo com fonte oficial do STJ, “o processo [Face Oculta] está no Tribunal Constitucional.”

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Os recursos, contudo, continuam a velocidades diferentes. No caso de Vara, já só resta ao advogado Tiago Rodrigues Bastos uma reclamação para o plenário do Constitucional para evitar o trânsito em julgado da sentença do seu cliente, caso a reclamação que o advogado já fez para o plenário da 1.ª Secção não tenha sucesso.

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“Decisão absurda e incompreensível”, diz Tiago Rodrigues Bastos sobre a decisão sumária do TC. “Ainda tenho esperança que o meu cliente [Armando Vara] seja tratado da mesma forma que os restantes arguidos e que o Tribunal Constitucional aprecie as questões que lhe foram colocadas. São questões da maior importância para a realização da Justiça deste processo”, afirma o causídico ao Observador.

Caso se verifique o trânsito em julgado da sentença de Armando Vara, o processo baixará para a primeira instância para que um magistrado do Ministério Público emita o respetivo mandado de condução a um estabelecimento prisional para que o ex-ministro socialista cumpra a pena de cinco anos de prisão. Isto é, Vara arrisca-se a ser preso antes dos recursos dos restantes arguidos serem decididos pelo Constitucional.

Além de Vara, também José Penedos e o seu filho Paulo (ex-advogado de Manuel Godinho), Domingos Paiva Nunes (ex-administrador da EDP Imobiliária), Manuel Godinho (empresário e líder do Grupo O2) e o seu sobrinho Hugo Godinho e mais cinco funcionários das empresas Refer – Rede Ferroviária Nacional, Petrogal e Lisnave foram condenados a penas de prisão efetivas. Os restantes réus tiveram penas suspensas mediante o pagamento de indemnizações.

Como tudo começou

Esta última e derradeira fase do processo Face Oculta, cuja investigação remonta ao ano de 2009, iniciou-se em abril de 2017. Dois anos e sete meses depois da sentença do Tribunal de Aveiro que condenou todos os 36 arguidos, e após um processo rocambolesco em que dois desembargadores pediram escusa, o Tribunal da Relação do Porto decidiu a 5 de abril de 2017 manter o essencial das penas aplicadas após a análise de 35 recursos.

Com a decisão da Relação do Porto ficou claro que apenas Manuel Godinho (condenado no Porto a 15 anos e 10 meses de prisão) teria possibilidade recorrer para o STJ. Isto porque o Código de Processo Penal apenas admite recurso para cúpula dos tribunais nacionais no caso de penas de prisão superiores a 8 anos. Mesmo assim houve vários arguidos, como Armando Vara e Hugo Godinho (sobrinho do sucateiro de Ovar), que tentaram a sua sorte junto do Supremo mas os recursos não foram aceites.

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Logo no Supremo, os advogados Tiago Rodrigues Bastos e Artur Marques (advogado de Hugo Godinho) defenderam que os recursos para o Tribunal Constitucional só podiam subir “com os autos”. Isto é, os recursos teriam de esperar pela decisão do STJ sobre o recurso de Manuel Godinho. Porquê? Porque uma possível alteração da pena aplicada ao líder do Grupo O2 poderia beneficiar Armando Vara e Hugo Godinho.

Contudo, a desembargadora Paula Cristina Guerreiro, titular dos autos na Relação do Porto que tem de decidir se admite os recursos para as instâncias superiores, não pensou da mesma forma. Começou por dizer em resposta a um requerimento de Domingos Paiva Nunes (ex-administrador da EDP) que a “subida” para o Constitucional “seria nos próprios autos”, por ser esse “o procedimento normal face ao regime legalmente consignado”. A 14 de março de 2018, contudo, a juíza ordenou a “subida imediata e em separado” dos recursos para o Tribunal Constitucional.  Justificando a sua decisão com o “impasse” em que os autos estavam mergulhados.

Já tinha passado quase um ano após a decisão da Relação do Porto sobre a sentença da primeira instância e os arguidos continuavam a apresentar reclamações e arguir nulidades, “sem que seja obtida uma decisão final em relação a vários arguidos.” Um “atraso insustentável”, considerou a desembargadora, que “põe em risco a pretensão punitiva do Estado”. Daí a juíza ter invocado “razões de celeridade processual” para ordenar a subida para o Constitucional.

A defesa de Armando Vara não tem dúvidas em classificar esta decisão como uma “violação frontal da lei”, pois há uma opção por “critérios de oportunidade” em vez dos “critérios da legalidade”. Acrescentando: “é inconcebível que o Tribunal da Relação do Porto se tenha permitido dizer que o cumprimentos da lei põe em risco a pretensão punitiva do Estado, provocando o atraso insustentável em obter uma decisão definitiva”.

Rodrigues Bastos ainda arguiu a nulidade do despacho da desembargadora Paula Cristina Guerreiro junto da Relação do Porto mas a mesma foi rejeitada, tendo em conta que o Tribunal Constitucional iria sindicar a referida decisão. O advogado de Vara voltou a arguir a mesma nulidade junto do Constitucional, juntamente com diversas inconstitucionalidades das decisões da primeira instância e da Relação do Porto.

A conselheira Fátima Mata-Mouros, a quem foi distribuído no Tribunal Constitucional, emitiu a 12 de julho uma decisão sumária em que fundamentou a inadmissibilidade do recurso de Armando Vara, visto que as inconstitucionalidades arguidas não tinham qualquer fundamento. Na prática, isso equivale a uma rejeição da nulidade arguida pelo defesa de Vara.

Tiago Rodrigues Bastos, contudo, diz que Fátima-Mouros não se pronunciou sobre a questão da nulidade. E voltou a arguir a nulidade quer junto da conselheira, quer junto da conferência da 1.ª secção.

Caso não seja bem sucedido, o que é provável, Rodrigues Bastos tem ainda a oportunidade de recorrer para o plenário do próprio Constitucional alegando decisões contraditórias entre as secções.

O que aconteceu com José Penedos

Rui Patrício, advogado de José Penedos, também defendeu no Constitucional a mesma nulidade. Catorze dias depois do Supremo ter decidido alterar a pena de prisão de Manuel Godinho de 15 anos e 10 meses para 13 anos de prisão, a conselheira Maria José Mesquita (3.ª Secção) acabou por tomar uma decisão que, do ponto de vista prático, constitui uma vitoria para Patrício.

Isto é, não reconheceu a nulidade do despacho da Relação do Porto. Mas determinou que “baixem os autos à instância competente [Relação do Porto] na parte relativa ao ora recorrente José Penedos” porque faltava o despacho de admissão da Relação do Porto sobre um dos dois recursos apresentados pela defesa de Rui Patrício para o Constitucional. Uma questão formal que a Relação do Porto tem de esclarecer.

Também os advogados de Hugo G0dinho e Domingos Paiva Nunes tinham aderido à interpretação de Rui Patrício mas sobre estes a conselheira Maria José Mesquita entendeu que os autos deviam aguardar que “seja prestada informação solicitada às instâncias sobre o acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça” no âmbito do recurso apresentado por Manuel Godinho. Também aqui, e na prática, a conselheira acolheu os argumentos das defesas.

Certo é que, com a baixa do recurso de José Penedos para a Relação do Porto e o período de espera a que foram sujeitos os recursos de Hugo Godinho e Paiva Nunes, estes recursos ficam com uma velocidade diferente da do recurso de Armando Vara e de Manuel Guiomar. O que faz com que estes dois últimos arrisquem a ser o primeiros réus a ter uma sentença transitada em julgado no processo Face Oculta.