Depois da demissão do diretor do Museu de Serralves na sexta-feira à noite – porque “já não tinha condições para continuar à frente da instituição”, disse o próprio João Ribas ao jornal Público – as atenções viram-se agora para topo da Fundação de Serralves, entidade responsável pelo museu e cujas explicações se reduzem por enquanto a comunicados de imprensa.
A curadora independente Ana Cristina Cachola, contactada pelo Observador neste sábado à tarde, afirmou que “o conselho de administração não tem condições para continuar” e “deveria afastar-se ou ser afastado”. Referindo-se às opções em torno da exposição de Robert Mapplethorpe no museu portuense, opções que originaram a demissão de Ribas, Ana Cristina Cachola considerou ter havido “uma atitude insidiosa e uma censura moralista por parte da administração”, pelo que o afastamento voluntário de Ribas “deve ser aplaudido”.
“Para quem o lê há muitos anos, esta saída é uma enorme demonstração de coerência em relação ao que ele defende como sendo o papel de um curador. Durante muitos anos, discutia-se o papel de quem está à frente dos museus e achava-se que poderia haver um diálogo diplomático entre administradores e curadores ou diretores. Como vemos agora, essas duas posições não se coadunam”, disse a também professora e investigadora da Universidade Católica Portuguesa.
No mesmo sentido, o crítico Alexandre Melo declarou ao Observador que “o caso tem um recorte ético grave e revela uma ignorância e uma incompetência cultural chocantes”. Ressalvando que o comentário se baseava apenas em notícias publicadas até ao início da tarde sábado, Alexandre Melo disse que “uma instituição de arte contemporânea que aspira à mínima respeitabilidade não procede a atos de censura, ainda por cima da obra de Mapplethorpe, que tem, ela própria, um historial de luta contra a censura e a discriminação”.
O diretor artístico de um museu “tem o direito a selecionar as obras a exibir, de acordo com os seus princípios, e justificando as decisões”, explicou Alexandre Melo, que é professor de sociologia da arte contemporânea no ISCTE. “Tudo indica que alguém se sobrepôs ao diretor artístico, alguém sem competência ou conhecimentos artísticos e culturais para tomar decisões”. Logo, “estamos perante uma decisão política, profundamente discriminatória e homofóbica”, completou, numa alusão ao imaginário homossexual das obra em questão.
A polémica parece diretamente relacionada com um desacerto entre as posições de João Ribas e Ana Pinho quanto à forma de apresentar a exposição “Robert Mapplethorpe: Pictures”, inaugurada na quinta-feira à noite – a primeira grande retrospetiva em Portugal do fotógrafo americano conhecido por representações sexualmente explícitas. Ana Pinho de Macedo Silva preside ao conselho de administração de Serralves desde 2015 e o termina o mandato no fim deste ano.
Logo na noite de abertura surgiu no espaço expositivo uma sala interditada a menores de 18 anos, mesmo que acompanhados por adultos, e alegadamente foram retiradas fotos de conteúdo explícito. João Ribas tinha sido citado a 14 de setembro pelo Público, dizendo que a mostra não teria “qualquer tipo de restrição a visitantes de acordo com a faixa etária”, porque “um museu não pode condicionar, separar ou delimitar o acesso às obras.”
Os atritos entre o diretor e a presidente da administração têm vários meses e começaram praticamente desde a nomeação de Ribas, em janeiro deste ano – depois de um concurso internacional que teve no júri nomes como os de Vicente Todolí (primeiro diretor de Serralves e hoje diretor artístico do Pirelli Hangar Bicocca, de Milão), Laurent Le Bom (presidente do Musée National Picasso, em Paris) e Jochen Volz (diretor da Pinacoteca do Estado de São Paulo). Mapplethorpe terá sido apenas a gota de água.
Na sexta-feira à noite, João Ribas contactou a administração por telefone e comunicou que se afastaria do cargo. Praticamente ao mesmo tempo, fez as primeiras declarações públicas sobre o assunto, ao Público, e desde então não voltou a falar. Foi aconselhado a não regressar ao museu no sábado de manhã para uma anunciada visita guiada em que também participaria o presidente da Fundação Robert Mapplethorpe, entidade coorganizadora da mostra. Michael Ward Stout esteve no museu sozinho esta manhã e no fim da visita declarou aos jornalistas que a demissão de Ribas foi “completamente desadequada e pouco profissional”. Contactada, a vice-presidente do conselho de administração, Isabel Pires de Lima, preferiu não comentar o tema.
Subsistem dúvidas sobre o porquê de uma redução no número de fotos exibidas. Dias antes da inauguração, documentos que Serralves enviou à imprensa referiam 179 imagens, mas na quinta-feira esse número passou a 159. As 20 fotos em falta teriam sido retiradas pelo próprio Ribas e apenas duas conteriam representações sexualmente explícitas, diz fonte de Serralves. Na versão apresentada neste sábado por Michael Ward Stout, sempre foram 159 as fotos previstas e, destas, duas foram removidas pelo diretor demissionário.
Nas últimas horas, na redes sociais da internet vários utilizadores têm incentivado um protesto público frente ao Museu de Serralves no domingo, às 11 da manhã, e surgiu uma carta aberta, criada pelo professor universitário João Florêncio. O documento “condena” o que considera ser a decisão dos administradores de Serralves de retirar 20 obras da exposição de Mapplethorpe e de “restringir o acesso de menores de 18 anos” a uma das salas, “contra a vontade do curador, João Ribas”. Escrito em inglês e dirigido a Ana Pinho, a carta contava 260 subscrições na tarde de sábado.
No entender do crítico Sérgio Mah, Ana Pinho e João Ribas “têm a obrigação” de dar esclarecimentos públicos sobre o caso, “até porque estamos a falar do museu de arte contemporânea mais importante do país”. “É formalmente uma fundação privada, mas é como um museu público, porque teve muito investimento público no início e continua a ter dinheiro público para a atividade corrente”. Crítico, curador, professor de arte visuais contemporâneas na FCSH, Sérgio Mah classificou como “inaceitável” a “desautorização pública” de Ribas por parte da liderança de Serralves e igualmente “inaceitável” a interdição de menores de 18 anos numa das área das exposição. “Um museu de arte contemporânea não pode hierarquizar o público, o público é que decide.” Porém, Sérgio Mah acha exagerado que se peça a demissão dos administradores.
“Precisamos, sim, que Serralves esclareça dois aspetos cruciais”, afirmou Sérgio Mah. “Primeiro, qual é que entende ser a vocação e a missão do museu: se é um museu sobre as grandes questões do nosso tempo, em que todos os temas são admissíveis, ou se há questões que não cabem no trabalho do museu. Segundo, que autonomia quer dar aos diretores.”
Em comunicado ao início da tarde de sábado a administração de Serralves garantiu que “não retirou nenhuma obra da exposição” e que esta é composta por 159 obras de Mapplethorpe, “todas elas escolhidas pelo curador”.
“Dado o teor de várias das obras expostas, e sendo Serralves visitada anualmente por quase um milhão de pessoas de todas as origens, idades e nacionalidades, incluindo milhares de crianças e centenas de escolas, a fundação considerou que o público visitante deveria ser alertado para esse efeito, de acordo com a legislação em vigor”, acrescentou o comunicado.
“É com grande tristeza que vejo isto acontecer, porque Serralves é uma instituição muito importante para o país”, disse a artista plástica Joana Vasconcelos, contactada pelo Observador. “Em 2016, quando esta exposição esteve no ARoS, na Dinamarca, eu também estava lá com uma exposição e nem entendo que se considere uma exposição ofensiva. É chocante se se olhar de um certo ângulo, mas é belíssima de outro ponto de vista”, acrescentou.
Para Eduardo Paz Barroso, professor de estética e ciências da comunicação na Universidade Fernando Pessoa, no Porto, esta polémica é sintomática do funcionamento interno de Serralves e não pode ser desligada de uma linha de atuação ao longo dos anos. “O Museu de Serralves viveu sempre um drama na relação com os públicos, com os artistas, com os agentes do sector. Nem sempre foi estimulante, há um divórcio histórico. Este episódio vem agudizar essa separação”, afirmou Eduardo Paz Barroso
Com o Estado representado na Fundação de Serralves, para cuja administração pode nomear dois nomes – Isabel Pires de Lima e José Pacheco Pereira, desde 2015 –, a sugestão de Paz Barroso é a de que o poder interno possa ser mais escrutinado. Sobre a presumível censura a Mapplethorpe, o académico considerou que João Ribas teve uma “atitude de enorme dignidade”. E deixou uma pergunta: “Se, por hipótese, Serralves amanhã exibisse ‘A Origem do Mundo, de Courbet, famosa pintura de um genital feminino, o que aconteceria? Proibia-se a entrada a crianças?”
O galerista Nuno Centeno mostrou-se “muito admirado” com as notícias e classificou como “excelente” o trabalho que Ribas desenvolveu nos nove meses em Serralves. “O museu é um local de liberdade de expressão, um espaço aberto ao pensamento, e por isso não deve haver qualquer tipo de censura. O museu deve alertar sobre conteúdos explícitos, mas não deve retirar ou tapar imagens”, explicou Nuno Centeno. “Cabe às famílias ajudarem os filhos a compreender as mensagens que os rodeiam e dar-lhes dar informação e educação perante imagens como as de Mapplethorpe.”
A artista visual Pauliana Valente Pimentel considerou que a “aparente desautorização do diretor de Serralves é incompreensível” e que este episódio vai “manchar a imagem” do museu portuense. Pauliana Valente Pimentel falou com o Observador a partir de Braga, onde decorre o festival internacional de fotografia e artes visuais Encontros da Imagem, e garantiu que este é um dos temas que dominam as conversas entre participantes.