O verão de 2003 está na memória de todos os portugueses como um dos mais quentes das últimas décadas. Naqueles meses, cujos recordes de temperatura só foram batidos no ano passado, o Benfica preparava-se para um ano complicado, fosse por aquilo que estava previsto ou pelas dificuldades impensáveis que viriam a colocar-se no caminho das águias. Na antecâmara do Campeonato da Europa organizado por Portugal no ano seguinte, o velhinho Estádio da Luz tinha sido demolido e o novo Estádio do Sport Lisboa e Benfica estava na reta final da construção, pronto a ser inaugurado em novembro. Nesse mesmo mês, o clube regressava a um período eleitoral e Luís Filipe Vieira seria escolhido como novo presidente – três anos depois das eleições mais concorridas do Benfica, onde Manuel Vilarinho venceu o presidente em exercício João Vale e Azevedo com 62% dos votos.
O Benfica iria então começar a época a jogar no Estádio Nacional, até o novo estádio estar pronto, e no Estádio do Bessa (somente nas competições europeias, já que o Jamor não tem as condições requeridas pela UEFA para receber jogos europeus). A janela de transferências de verão fica marcada por várias desilusões: os encarnados interessaram-se pelo guarda-redes Ricardo, na altura no Boavista, que acabaria por assinar pelo Sporting; pelo também guarda-redes Helton, que preferiu sair do Brasil para se juntar à União de Leiria (e depois se transferiu para o FC Porto); e pelo central brasileiro Anderson Polga, a jogar no Grêmio, que acabou por aceitar a proposta do… Sporting. José Antonio Camacho, o treinador na altura, queria mais um defesa central para competir com Argel, Ricardo Rocha e o veterano Hélder. O escolhido foi Anderson Luís da Silva, conhecido como Luisão, central de 22 anos do Cruzeiro.
O gigante brasileiro de 1,96 metros tinha começado a carreira no Juventus de São Paulo, em 1999. No ano seguinte transferiu-se para o Cruzeiro, onde ficou por quatro temporadas, e afirmou-se como o central goleador que acabaria por apaixonar os adeptos benfiquistas (em 15 épocas na Luz marcou 47 golos). Ao serviço do Cruzeiro teve tempo para conquistar o campeonato brasileiro e duas Taças do Brasil até apanhar um avião com destino a Lisboa – a cidade onde acabaria por casar, ter duas filhas e ficar a viver durante 15 anos.
[Veja no vídeo em 2 minutos e 43 segundos como foram os 15 anos de Luisão no Benfica]
A adaptação não foi fácil e Luisão já contou que pensou em regressar ao Brasil poucas semanas depois de chegar à Luz, triste com as lesões que o afetaram e ainda mal habituado a viver completamente sozinho. Mas ficou. E ficou porque achou que o Benfica poderia ser um degrau importante na progressão da carreira: “Quando fui negociado para Portugal, achei que seria um trampolim para um grande na Europa. Pensei que ficaria apenas um ano ou dois até sair. Tive propostas todos os anos, mas o presidente [Luís Filipe Vieira] disse sempre: ‘Não vais sair, vais ter conquistas no clube e vais ser uma referência’. Confiei na palavra dele. Optei por ficar. Sentia-me desejado”, contou em entrevista no programa Resenha da ESPN Brasil em maio do ano passado. Mal sabia Luisão que o Benfica não seria um degrau importante na carreira; mas sim toda a carreira.
No dia de estreia só faltou a vitória. A 14 de setembro de 2003, o Benfica recebeu o Belenenses no Estádio Nacional – o dérbi lisboeta terminou com um empate a três, Luisão jogou os 90 minutos e marcou um golo (os outros foram apontados por João Pereira e Fehér, do lado dos encarnados, e Sané, que marcou dois, e Leonardo, do lado dos homens do Restelo). Ainda assim, as dúvidas sobre a eficácia defensiva e a qualidade técnica – ou a falta dela – afetaram o miúdo de apenas 22 anos que saiu do Brasil já internacional pela seleção e nem o golo no jogo de estreia dissipou as inseguranças na cabeça de Luisão. O ponto de viragem aconteceu ainda nos primeiros meses de Benfica, quando o brasileiro decidiu desabafar com a pessoa certa sem se aperceber sequer de que o estava a fazer. “Os adeptos e a imprensa cobravam de uma maneira… mas eu não estava a 100%. Isso colocou-me para baixo, porque havia muita gente a duvidar daquilo que eu podia render. Passou pela minha cabeça voltar [ao Brasil], mas dentro do Benfica também temos o psicólogo. Foi um papo até informal, eu estava a sair do estádio e foi a caminho do carro. Mas com uma pequena conversa o psicólogo conseguiu mudar a minha maneira de pensar, aquela tristeza e a falta de confiança que eu tinha”, contou o jogador ao Expresso em novembro de 2017.
Luisão agarrou a titularidade pouco depois. Começou a demonstrar as qualidades de líder, a garra, a vontade de vencer: tudo aquilo que levou Luiz Felipe Scolari, recém-chegado ao comando técnico da seleção brasileira, a convocá-lo para a edição de 2001 da Copa América, que o Brasil acabou por vencer e onde o central se estreou com a camisola canarinha. Essa capacidade de ser a voz de comando do treinador e o grilo falante dos outros dez rapazes a correr atrás de uma bola dentro de campo seduziu Camacho e principalmente Luís Filipe Vieira, acabado de chegar à liderança do clube, que viu em Luisão a criação de um legado. Central e presidente, os únicos que se mantêm no clube desde 2003, viram passar 15 anos, sete treinadores e 20 troféus – que fazem do brasileiro o jogador mais titulado da história do Benfica.
Afinal, era um trampolim mas para outra coisa: Luisão é o mais titulado de sempre pelo Benfica
Desde que chegou à Luz, Luisão conquistou seis vezes o título de campeão nacional, três Taças de Portugal, sete Taças da Liga e quatro Supertaças Cândido de Oliveira. A estes números junta-se um outro quase inacreditável: em 114 anos de história, o Benfica inscreveu o nome em 79 troféus nacionais, logo, mais de 25% dos títulos conquistados pelos encarnados foram ganhos durante os 15 anos de Luisão no clube. Capitão absoluto desde 2006, ano em que as lesões recorrentes de Nuno Gomes e Petit o impulsionaram para a liderança do balneário, o central é o segundo jogador com mais jogos com a camisola do Benfica, 538, só atrás dos 578 de Nené. É, de longe, o estrangeiro com mais partidas – mais 205 do que o segundo não português com mais jogos, Maxi Pereira.
Na seleção, depois da estreia em 2001, voltou a ser convocado para a Gold Cup da CONCACAF em 2003, a Copa América em 2004 e para os Campeonatos do Mundo de 2006 e 2010. Completou 44 internacionalizações pela seleção brasileira e marcou três golos, mas nunca conseguiu ultrapassar de forma consistente a competição feroz de Lúcio, Juan ou Thiago Silva.
Já disse que o parceiro ideal no eixo da defesa foi Ezequiel Garay, porque se entendiam “apenas com o olhar”, que o jogador que mais o impressionou foi Javier Saviola e rende-se em elogios a Jonas. Mas pouco fala sobre o desentendimento com Kostas Katsouranis em pleno relvado do V. Setúbal, em 2007/08, ou sobre aquele encosto ao árbitro Christian Fischer, durante um encontro de pré-época em 2012 com o Fortuna Dusseldorf, que lhe custou uma indemnização de 60 mil euros e uma suspensão de dois meses.
Aos 37 anos, renovou contrato por mais uma temporada. Esta segunda-feira, quando ainda todos esperavam que terminasse a carreira no final da época, foi anunciado que o pendurar das botas é imediato. Ainda não jogou este ano, não é opção para Rui Vitória e não está habituado a ficar sentado no banco de suplentes durante muitos jogos a fio. Vai continuar a viver em Portugal, até porque as filhas “falam com sotaque português”, e terá à sua espera o cargo de diretor para as relações internacionais do Benfica – que Simão Sabrosa e Nuno Gomes recusaram quando terminaram as respetivas carreiras. Esta terça-feira, às 19 horas, o Benfica organiza uma homenagem de agradecimento ao brasileiro benfiquista que foi capitão do clube da Luz durante mais de dez anos.