A data é marcante: no próximo mês assinalam-se os 20 anos de atribuição do prémio Nobel da literatura a José Saramago. A viúva do escritor e jornalista, a escritora e tradutora Pilar del Río esteve esta quinta-feira no primeiro dia do Folio – Festival Literário Internacional de Óbidos, para recordar 1998 e para falar do novo livro inédito dos diários de José Saramago, O Último Caderno de Lanzarote, que chegará às livrarias nas próximas semanas. Uma das grandes novidades, contudo, saiu da boca do diretor de comunicação da Fundação José Saramago, Ricardo Viel: houve uma pessoa que soube da atribuição do Nobel ao escritor português seis dias antes do anúncio.

Ricardo Viel esta quinta-feira, no Folio, em Óbidos. Não queria falar, mas Anabela Mota Ribeiro chamou-o ao palco. @ André Dias Nobre / Observador

Ricardo Viel foi chamado ao palco pelas duas intervenientes da conversa, Anabela Mota Ribeiro (jornalista, antiga colaboradora na programação deste festival literário e autora de livros) e Pilar del Río. Duas “amigas”, como fizeram aliás questão de sublinhar, tratando-se por tu e recordando até uma entrevista antiga que aconteceu num sítio tão inusitado quanto a cama de Pilar, porque já eram amigas e porque, naquele momento, “não havia outro espaço onde pudéssemos falar com alguma intimidade” no interior da casa do casal. Viel é o autor de um livro sobre Saramago que sairá também em breve. Chama-se Um País Levantado em Alegria e tem um título “mais ou menos roubado ao Eduardo Prado Coelho”, que por sua vez “também roubou ao Saramago. Então está tudo bem”, brincou.

O livro de Ricardo Viel divide-se em duas partes. A segunda parte, “a primeira a ser feita”, contém uma recolha de mensagens de parabéns enviadas a José Saramago pela vitória no Nobel, “de personalidades da cultura e da política mas também cartas anónimas, de pessoas de vários países do mundo”, criteriosamente selecionadas. Já a primeira parte é uma “introdução”, um relato mais fiel “e bem feito” dos dias que antecederam a atribuição do prémio, porque “há versões muito contraditórias” sobre esse período.

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Para fazer essa introdução à vitória no Nobel, Ricardo Viel pesquisou “nos arquivos da fundação”, onde encontrou muita coisa, visto que, se não José Saramago, pelo menos Pilar “organizava muito as coisas, deixando pastas com recortes de jornais e revistas”. Fez mais: entrevistou “pessoas que estavam lá”, porque apesar de “20 anos ser um tempo razoável”, há muita gente que esteve em Estocolmo e “ainda está cá”. Entre esses entrevistados, há “uma personagem fundamental”: alguém que, revelou Ricardo Viel, “soube do prémio seis dias antes do anúncio”. “Acho que foi a primeira vez que contou [isto]. E não digo mais nada”, acrescentou, criando suspense sobre a obra.

A ausência de Saramago na paisagem

Trata-se, assim, de mais uma pessoa que soube da atribuição do prémio Nobel a José Saramago antes do escritor ter conhecimento dela. Aconteceu o mesmo a Pilar del Río, mas um dia antes. A 7 de outubro de 1998, Pilar estava em Lanzarote e Saramago em França. Recebeu uma chamada de “um professor da universidade de Estocolmo, que conhecia”. Este começou a perguntar-lhe onde estava o escritor, quando voltava a Lanzarote. Ríspida, Pilar respondeu: “Porque fazes perguntas?” A resposta? “Nada, amanhã é o Nobel”. Pilar continua o relato da conversa até ao momento em que o interlocutor lhe diz: “não podes dizer a ninguém porque o meu trabalho está em risco. Mas o Saramago tem o prémio Nobel este ano”, contou.

Dizer ou não dizer ao escritor e então marido “não foi dilema, sequer”, afirmou a convidada do Folio. “Tinha dado a minha palavra”, explicou. Anabela Mota Ribeiro disse que a ia aplaudir e assim o fez, Pilar prosseguiu: “Esse professor conta tudo no livro do Ricardo. Mas na altura punha em risco o trabalho. O Saramago ficou a dever-me sempre essa”.

As horas anteriores foram tortuosas. Devido à distância, Pilar foi “poupada a José Saramago”. Mas ligou à então editora portuguesa do escritor. Tateando possibilidades, perguntou-lhe se estava “preparada para o prémio”, já que no dia seguinte era a atribuição do Nobel e, pelo sim pelo não, “convinha ter dados, biografia”. A editora respondeu-lhe que não tinha porque não ia acontecer, “este ano não se comenta nada”. Conclusão: “Não tenho capacidade de interferência nenhuma, ninguém acredita, é um desastre”.

A história do veto ao Evangelho de José Saramago

Até Saramago desconfiava do prémio. “Disse-lhe que achava que devia ir ao cabelereiro”, contou Pilar del Río. “Qual quê, vamos aproveitar o dia. Não vai chegar prémio nenhum” foi a resposta do escritor. Durante o dia de atribuição, Pilar “não conseguia largar o telemóvel”. Quando faltavam dez minutos para o anúncio, o diretor da Academia sueca ligou à mulher do escritor para dizer, em francês, que Saramago era o vencedor. “Creio que fui profundamente antipática”, recordou agora Pilar. Seguiu-se um aviso às pessoas mais próximas para sintonizarem a rádio. Não queria ser ela a dar a notícia, “não parecia bonito que não fosse a própria Academia a anunciar”.

Um aspeto que permanecia contraditório depois do anúncio do Nobel é se Pilar del Río e José Saramago tinham conversado ou não ao telefone nos minutos seguintes. Pilar já não se recordava e dizia que pensava só ter falado com o escritor “à noite”, bastante depois da atribuição, “porque os telefones estavam todos estragados”. Mas em duas entrevistas à época, a versão era diferente: dizia que tinha mesmo falado com o escritor pouco depois. Afinal, que versão era a certa? Ricardo Viel contou: “Parece que afinal foi uma conversa muito rápida e ela nem prestou muita atenção ao que o Saramago dizia”. A razão era de ordem prática: a mulher do escritor tinha dito aos jornalistas para o esperarem no aeroporto de Madrid, dali a algumas horas, e Saramago ter-lhe-á dito ao telefone que ia ficar mais um dia em Frankfurt, onde se encontrava. A preocupação passou a ser avisar os jornalistas que afinal o regresso seria adiado, que era melhor não o irem esperar conforme combinado. “Acho que nem fui carinhosa, nem o parabenizei”, riu-se.

Pilar del Río esta quinta-feira no Folio, em Óbidos. @ André Dias Nobre / Observador

Um inédito em 2018. Como é possível?

Anabela Mota Ribeiro tinha uma pergunta motivada pela perplexidade: como é que em 2018 ainda havia um inédito de José Saramago por descobrir e publicar? A obra em questão é o sexto volume de diários do escritor, Cadernos de Lanzarote, que só foi encontrado no final de fevereiro por Pilar del Río. Um conjunto de diários que foram evoluindo com o tempo, já que, contou Pilar, “nos primeiros, Saramago narrava ideias e situações domésticas” e, confrontando por amigos com alguns escritos pessoais de que já nem se recordava, foi ganhando “alguma vergonha” das descrições.

Livro inédito de Saramago vai ser publicado. É o diário de 1998, o ano em que ganhou o Nobel da Literatura

O livro de inéditos remonta ao ano de 1998, precisamente o ano de atribuição do prémio Nobel. Foi um ano onde o escritor fez uma série de viagens, “das quais a viagem ao México por exemplo foi muito marcante”, pelo acolhimento inesperado que teve dos leitores desse país. “Mas foi um ano de viagens muito intensas, nomeadamente à América do Norte e do Sul, com conferências e palestras em todo o lado, com a vida a converter-se numa loucura”, apontou Pilar, acrescentando que com a vida de “cantor rock” que Saramago começou a levar quando a atribuição do Nobel se aproximava, o caderno diarístico ficou de lado. “É difícil seguir o diário, mas cumpre todos os compromissos”, garantiu.

O impacto que o Nobel teve, e que poderá ter feito o escritor deixar o volume de diários para trás, não foi pequeno. Pilar del Río exemplifica esse impacto recordando o livro que se seguiu ao prémio, A Caverna, para si um livro “mal lido e mal percebido” que teve “más críticas”. “É um romance onde o protagonista é um oleiro, fabricante de produtos de barro, condenado ao desaparecimento, porque há outras indústrias [a surgir]. Saramago escreve sobre um condenado da história depois do Nobel”. O caderno, “inexplicavelmente ficou”.

Ficou até finais de fevereiro deste ano. Pilar del Río procurava datas e informações no computador de Saramago, às duas da manhã, quando se deparou com o arquivo dos Cadernos de Lanzarote. “Foi aí que vi: Cadernos de Lanzarote 1, 2, 3, 4, 5, 6. 6?!”. O caderno estava “organizado” e Pilar del Río em êxtase com a descoberta. Como eram 2h, não podia ligar a muita gente. Ligou à editora espanhola do escritor, que “estava no México”, onde aquela hora ainda havia luz do dia. E começou a ditar-lhe excertos do diário, mal acreditando no que lia.

No que toca a publicações, é possível que este seja o último fôlego do homem que, apontou Pilar del Río, citando de memória a carta enviada por Saramago a Eduardo Lourenço (ate há pouco inédita, recentemente publicada pelo Jornal de Letras), nasceu “para ser serralheiro mecânico e para viver em quartos alugados, numa casa com direito a… cozinha”. E que lindo é isto, considerou a convidada do Folio. A obra permanece, entende Pilar del Río: “Todos conhecemos autores que são realmente grandes, magníficos. Lemos os livros e sentimo-nos bem. Há [com Saramago] uma afetividade extraordinária que não existe com outros autores. Sentimo-lo nosso”.

José Saramago. Como o ano da morte do meu pai me mostrou o Evangelho de um Nobel