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A história do veto ao Evangelho de José Saramago

Em 1992, o subsecretário de Estado da Cultura afasta José Saramago de um prémio literário. Magoado, o escritor deixará Portugal e anos depois ganhará o Nobel. Sousa Lara diz ter rezado por ele.

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– “Quer que lhe conte o que se passou? Normalmente, é publicado errado.”
– “Quando quiser. Está a gravar.”

António Sousa Lara, 65 anos, senta-se na primeira fila do pequeno auditório da Academia de Letras e Artes, no Monte Estoril, instituição a que preside e que funciona “por caturreira” há 30 anos. Porte aristocrático, chapéu de feltro na cabeça, anel com brasão no mindinho, prepara-se para recuar a 1992. O ano é o da morte da sua carreira política e o de uma viragem radical na vida e obra do Nobel José Saramago. Provocador experiente, o ex-subsecretário de Estado da Cultura levanta o queixo, semicerra os olhos, contempla o horizonte e arranca: “Vamos lá ver. Estamos num Governo de Cavaco Silva…”

A vida pública desta história começa de forma tímida, numa altura em que ninguém intui nem o impacto nem a longevidade e muito menos as repercussões que terá. Nas palavras de Lara, “três meses de xivarri”.

“Este livro não, porque ofende”

A 25 de Abril de 1992, uma notícia remetida para o terço inferior de uma das páginas da secção de Cultura do jornal Público avança, “Sousa Lara corta nome de Saramago”. Antetítulo: “Prémio Literário Europeu” (PLE). Em causa está O Evangelho Segundo Jesus Cristo, o sexto romance do autor depois de, em 1980, com Levantado do Chão, ter saltado das notas de rodapé para um papel de destaque na história da literatura portuguesa. “Não representa Portugal”, justifica Sousa Lara ao jornalista do Público. “Não me pediram um julgamento sobre a obra inteira de Saramago, mas sobre este livro. Ora, há questões pessoais que me modelam, às quais não me oponho por questões de consciência pessoal.”

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A capa da edição de “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” que está atualmente nas livrarias (Porto Editora)

Saramago escusa-se a comentar. Só sabe da notícia pelo próprio jornalista. “O Torcato [Sepúlveda] ligou-nos para casa e o José ao princípio disse, ‘Palavra? Nah, não é possível’. Estava quase divertido”, conta a viúva, Pilar del Río, 67 anos. “[Quando se confirmou] Ficou tão dececionado e tão magoado… Não por causa do prémio. Mas porque o Governo do seu país tinha feito uma coisa de que ele tinha vergonha. Dizer, ‘este livro não, porque ofende’.”

O Evangelho Segundo Jesus Cristo “era um romance de grande ousadia”, lembra o editor de Saramago na Caminho, Zeferino Coelho. “O ateísmo militante de Saramago já era conhecido. Agora, pegar em Deus, em Cristo, e transformá-los em personagens de romance, ainda por cima um romance negativo, isso foi uma grande ousadia.” Na sua opinião, Saramago tinha noção do efeito que o livro causaria e terá sido essa uma das razões por que o escreveu. O autor gostava de provocar o debate. Só não contava com a censura.

A administração interna, explica Sousa Lara, “tinha tudo a ver” com o seu perfil. “A minha tese de doutoramento é sobre subversão do Estado.” Quanto à cultura, ainda mais a “dos vivos”, olhava para ela “como um lúdico”.

No Monte Estoril, Sousa Lara afirma não gostar de polémica. “Mas não fujo”, assegura. “E não cedo.” Em 1992, declarava: “A tutela cultural não deve assinar de cruz as sugestões dos seus serviços.” Referia-se com isto ao processo de seleção das obras, ou seja à parte inicial desta história, os bastidores.

A 14 de Abril, avançará o jornal O Independente, Sousa Lara recebe do Instituto Português do Livro e da Leitura (IPLL) um ofício com a sugestão de três nomes para candidatos ao PLE: Saramago, Pedro Támen e Fiama Hasse Pais Brandão. A lista fora elaborada depois de consultados a Associação Portuguesa de Escritores, o Pen Club e o Centro Português de Escritores Literários. Artur Anselmo, então presidente do IPLL, informa Lara de que também obtiveram o apoio dos Escritores Literários os nomes de Hélia Correia, com A Casa Eterna, e de Sophia de Mello Breyner, pelo Obra Poética – Volume II. Dois dias depois, Lara assina um primeiro despacho com a sua escolha: Fiama, Támen e Sophia. A 20 de Abril, Artur Anselmo responde, “proponho, a título pessoal, o Vale Abraão, de Agustina Bessa-Luís”. Lara junta o nome de Agustina ao despacho. Nem Pedro Santana Lopes, secretário de Estado da Cultura, nem Maria José Nogueira Pinto, secretária de Estado Adjunta, estariam a par destas movimentações.

O artigo publicado no Público a 25 de abril de 1992

Sousa Lara recorda este capítulo de forma um pouco diferente, na sua versão a história começa ainda antes, com a sua nomeação para subsecretário de Estado da Cultura.

O convite original para secretário de Estado da Administração Interna fora do amigo Dias Loureiro. E Lara aceitara. Só que pouco depois viu o seu passe transferido para outro Ministério. Melhor dizendo, secretaria de Estado. “Domingo à noite, liga-me o Dias Loureiro a dizer que o Santana dizia que ficava ofendido, porque eu tinha criado o Instituto de Estudos Políticos com ele”, conta. “E eu lembro-me de ter respondido por telefone, ‘Olha, Manuel, não te agradeço. Já estou…’ E depois disse um palavrão que equivale a ‘lixado’ mas começa por ‘f’. Sic.” A administração interna, explica, “tinha tudo a ver” com o seu perfil. “A minha tese de doutoramento é sobre subversão do Estado.” Quanto à cultura, ainda mais a “dos vivos”, olhava para ela “como um lúdico”.

“Parece que há um problema com o Saramago”

De perfil harmonioso, barba branca bem aparada e bigode de pontas arrebitadas, Sousa Lara mantém o rosto a que Saramago chamou “suave” numa entrevista de 10 de Maio de 1992 ao Público (para depois acrescentar que quer em Portugal quer em Espanha, “os retratos dos inquisidores apresentam semelhanças [com Lara], numa espécie de ar de família”). Professor universitário, o ex-subsecretário de Estado tem jeito para as palavras. Verbo certeiro, ágil, informal. As narrativas surgem com frequência em discurso direto, pontuadas por termos coloridos. E também por uma ideia recorrente: a alegada omissão deliberada por parte dos média de determinados aspetos deste episódio.

António Sousa Lara no Instituto Superior de Ciências Sociais e Polítcias, onde dá aulas

HENRIQUE CASINHAS / OBSERVADOR

Como quando Artur Anselmo lhe apresentou a lista e lhe transmitiu que teria de ser a tutela a indicar os candidatos. “Eu disse, ‘acho muito mal. Posso estar aqui como gestor e não perceber nada de literatura’. Sic. Este facto é sempre omitido.” Lara continua: “E, depois, quem é que fabricou a short-list? Aquilo era uma lista ‘esquerdosa’.” E ainda: “Eu digo ao Anselmo, ‘Com esta porcaria, o Saramago não vai, nem por cima do meu cadáver’.” Solução: “’Nem li o livro da Sophia, mas não me interessa – vai esse. Tudo o que ela faz é bom’.”

Parêntesis: Se está a perguntar-se se Lara tinha lido o Evangelho Segundo Jesus Cristo, a resposta é “não”. Ou melhor, “uma parte”. Porquê? “Porque houve alguém que leu e disse, ‘este gajo é um pulha, já viste o que ele diz de Deus?’ E fui ler aquele bocado. E era ofensivo.” Parêntesis dentro do parêntesis: hoje, não só já leu como tem várias edições. Tornou-se uma piada entre os amigos que, volta e meia, lhe oferecem um exemplar.

Lara defende que a lista estava “cozinhada” para Saramago fazer parte dela. Insiste que a cultura “é um ninho de vespas da esquerda”. E que houve “má fé”. Acabaria por tomar uma decisão pessoal em nome do Estado. “É a minha maneira de fazer política”, assume sem hesitar. “A minha conceção de democracia – e agora entra outra parte que ninguém publica – é que a democracia não é o consenso nem a bissetriz. É a direita contra a esquerda e a esquerda contra a direita. Tenho uma lógica de luta, de combate, de cruzada, de porrada.”

Santana Lopes só sabe do veto na véspera da notícia do Público. Sousa Lara argumentaria que se tratava de uma “competência delegada”. De acordo com O Independente, na estreia do filme “Aqui D’El Rei”, Maria José Nogueira Pinto terá comentado com o secretário de Estado: “Parece que há um problema com o Saramago”.

Francisco Sousa Tavares pede a demissão do subsecretário de Estado, alegando que este está “agarrado à cadeira do poder” e alerta para a repercussão internacional: “Lançou de novo sobre nós os estigmas tradicionais da intolerância religiosa e do repúdio da abertura espiritual”. O escritor João de Melo sintetiza, “Saramago neste momento somos todos nós.”

Quatro dias depois o caso vai parar à Assembleia da República durante o debate parlamentar sobre a Cultura. A intervenção de Lara ficará para a história. Se por boas ou más razões, depende da perspetiva. O subsecretário de Estado começa por argumentar que o caso não devia ter sido tornado público. Depois, alega que “a obra ataca o património religioso dos portugueses. Longe de os unir, divide-os.”

No Público, Torcato Sepúlveda comenta, “tal raciocínio evoca, com efeito, o Tribunal do Santo Ofício”. Sucedem-se as acusações de censura. A palavra “inquisição” nas suas várias declinações, enunciada pelas mais variadas personalidades literárias e da cultura, propaga-se pelas páginas dos jornais. Promovida a escândalo, a polémica internacionaliza-se. Surgem relatos e reações nos jornais espanhóis ABC, El País e El Mundo, nos franceses Libération e Le Monde, no italiano La Stampa, e na Folha de São Paulo. Até o ministro da cultura francês se manifesta. Para Jack Lang a censura de que o “Evangelho” foi alvo é “inaceitável”.

Entretanto, o eurodeputado socialista João Cravinho tenta levar o caso ao Parlamento Europeu. A 9 de Maio, o Expresso noticia: “O Presidente do Parlamento Europeu, Egon Klepsch, envia carta a Jacques Delors [presidente da Comissão Europeia] pedindo explicações sobre o afastamento de Saramago à candidatura ao PLE.”

Um fax enviado por Agustina Bessa-Luís para a Sociedade Portuguesa de Autores, um pedido para José Saramago não desistisse da candidatura ao Prémio Europeu de Literatura

Por cá, Támen e Fiama recusam a candidatura ao PLE. Já o poeta David Mourão Ferreira é dos mais vocais. Numa mensagem escrita defende que o primeiro-ministro devia “ter pedido desculpas públicas” ao escritor e que é Cavaco Silva “quem deve ser responsabilizado pelo estado novo a que chegou o grotesco e tenebroso processo das candidaturas portuguesas”. Já Francisco Sousa Tavares pede a demissão do subsecretário de Estado, alegando que este está “agarrado à cadeira do poder” e alerta para a repercussão internacional: “Lançou de novo sobre nós os estigmas tradicionais da intolerância religiosa e do repúdio da abertura espiritual”. O escritor João de Melo sintetiza, “Saramago neste momento somos todos nós.”

Entretanto, uma sondagem do jornal Público indica que 63,3 por cento dos habitantes de Lisboa e Porto acham que o “Evangelho” devia fazer parte da lista de candidatos ao PLE. O Expresso também consulta o cidadão comum e divulga resultados que apontam para um equilíbrio maior na sociedade portuguesa: 57 por cento dos inquiridos está contra a exclusão.

“Tony, que Deus te guie”

Por esta altura já Santana Lopes chamou a si o caso, revogou a decisão de Sousa Lara e afastou o subsecretário de Estado. Santana anuncia a criação de novo júri para escolher nova lista de candidatos. Saramago avisa logo que não estará disponível e pede para não ser considerado sequer. Santana ignora o repto, alegando que essa decisão cabe ao júri internacional.

Se Sousa Lara começou por agir sem informar ninguém, agora é ele próprio quem se queixa de ter sido mantido na ignorância. A quem? Ao primeiro-ministro. “O Cavaco apoiou-me sempre”, diz. “Ele é uma pessoa hierática.” Como prova disso, depois do veto, Cavaco tê-lo-á convidado para ir à estreia de “qualquer coisa do La Féria” [“Maldita Cocaína”]. Lara conta que recusou dizendo que a sua presença monopolizaria as atenções e neutralizaria a imagem que o primeiro-ministro queria dar, que era a de pessoa atenta à cultura. “E então não fui. Porque não preciso. Porque se o Cavaco estivesse contra, eu diria a mesma coisa. Aqui não há negociação possível. É risco no chão. Ninguém percebeu. Não há negociação possível!”

Na sequência da decisão de Santana, o subsecretário de Estado acabaria por pedir a demissão ao primeiro-ministro. Sem sucesso. Conta que Cavaco lhe respondeu: “’Isso não pode ser. Seria uma atitude de fraqueza’”. Conclusão: “Estive lá a ‘abobrar’. Só saí em novembro, quando o Deus Pinheiro foi à vida. Perguntaram, ‘Quer ir agora?’ ‘Quero, quero’. Ala!” De facto, Lara só abandona o Governo a 13 de novembro de 1992, altura em que o então ministro dos Negócios Estrangeiros também sai, apesar de, entretanto, ter havido duas outras remodelações, uma em junho e outra em agosto.

Ao longo destas semanas, José Saramago desdobra-se em entrevistas e declarações. A sua casa, um pequeno T1+1 na Rua dos Ferreiros à Estrela, em Lisboa, converte-se em central telefónica. “Um inferno”, resume Pilar del Río. “Não só por causa deste caso mas também porque Saramago era a pessoa mais conhecida de Portugal tirando os futebolistas.”

Novo parêntesis. Em junho, um jantar de “homenagem ao Prof. Doutor António de Sousa Lara (…) pela coerência e verticalidade” reunirá 250 pessoas no restaurante Muchaxo, no Guincho. Entre elas incluem-se D. Duarte Pio de Bragança, que não presta declarações mas que horas antes tinha dito à TSF que o livro de Saramago era “uma grande merda” e o presidente da Câmara de Cascais, Georges Dargent, que fala num “combate às forças do mal”. Enviam mensagens de apoio Cavaco Silva, os ministros Couto dos Santos, João de Deus Pinheiro e Marques Mendes, bem como os diretores dos jornais O Diabo (Vera Lagoa), O Título e A Zona. A dada altura, um dos membros da organização lança o repto, “Tony, que Deus te guie”.

Mesmo com Sousa Lara fora do caminho, não há maneira de Santana conseguir nova lista de candidatos. Parte dos jurados vai-se revelando indisponível até que o presidente do IPLL, que anunciara a formação do júri, decide acabar com ele. “A polémica tinha atingido tal grau de insanidade e envenenamento que o Dr. Óscar Lopes [presidente do júri] diz que não há condições políticas, ecológicas, ambientais para o júri se reunir.”, lembra Artur Anselmo, hoje presidente da Academia das Ciências. “E a coisa ficou por aí.”

Na opinião de Artur Anselmo, tudo não passou de uma “lamentável intromissão da esfera política na esfera cultural. E não teve só a ver com Portugal. Teve a ver com todos os países que faziam parte da então CEE.” Este é capaz de ser o único ponto em que há acordo entre todos os intervenientes: ao contrário do previsto no regulamento do prémio, a decisão não devia ser política – embora os dois anteriores governantes por quem passaram listas da mesma natureza, em 1990 e 1991, se tivessem limitado a dar o seu aval às sugestões das entidades consultadas. Quanto a 1992, com o fim do júri, volta tudo ao início: Támen, Fiama… e Saramago.

Ao longo destas semanas, José Saramago desdobra-se em entrevistas e declarações. A sua casa, um pequeno T1+1 na Rua dos Ferreiros à Estrela, em Lisboa, converte-se em central telefónica. “Um inferno”, resume Pilar del Río. “Não só por causa deste caso mas também porque Saramago era a pessoa mais conhecida de Portugal tirando os futebolistas.”

Nos jornais, há sobretudo declarações de solidariedade, mas também se desenterram acusações de censura. Recorda-se o Verão Quente de 1975, altura em que o militante comunista esteve à frente do Diário de Notícias: “Pessoalmente, quero servir a construção do socialismo. E o DN vai ser um instrumento nas mãos do povo português para a construção dessa linha já adotada pelo Conselho Superior de Revolução…” O diretor do Expresso, José António Saraiva, cria um cenário em que o PCP subiu ao Governo e Saramago é secretário de Estado da Cultura para provocar: “Na hipótese de um livro, mesmo notável – mas crítico em relação ao comunismo –, ser indigitado para um prémio, Saramago dar-lhe-ia ou não o seu apoio? Muito provavelmente não.”

Reportagem no jantar de apoio a Sousa Lara; no canto superior direito é reproduzido o convite do evento (Público)

Ao mesmo tempo, as vendas do romance disparam. A 21 de maio, já vai nos 135 mil exemplares, só em Portugal. Pouco depois, torna-se um dos mais procurados na Feira do Livro de Madrid e entra para o Top 10 espanhol. Pilar del Río diz desconhecer quantos livros se venderam ao todo. Remete para a Caminho, que por sua vez passa a bola para a Porto Editora, que detém atualmente os direitos da obra do Nobel mas declara não poder avançar essa informação. Adianta, porém que o “Evangelho” continua a vender-se “todas as semanas”, longe, porém, dos números do principal best-seller de Saramago, “Memorial do Convento”.

Saramago diz precisar de tranquilidade. Já há bastante tempo que o casal procurava uma casa para comprar nos arredores de Lisboa. Mafra, por exemplo, lembra Zeferino Coelho. Por coincidência, a 1 de maio, uma semana apenas depois de estalar a polémica, vão visitar a irmã de Pilar a Lanzarote, em Espanha. “Descobrimos o princípio do mundo”, lembra Pilar. “E aí fui eu que disse, ‘por que não nos mudamos para Lanzarote?’ Todos os criadores dizem a dada altura, ‘iria viver para uma ilha deserta’. Pois alguns o dizem e o fazem.”

A notícia cai com estrondo em Portugal: Saramago abandonaria o país na sequência do veto de Sousa Lara. Em entrevista ao Público, o escritor tenta clarificar: “Há uma coincidência que eu não busquei”. Pilar começa por admitir que foi em parte por causa desta questão que resolveram mudar-se – “foi muito duro para um escritor a polémica que se montou, ter de responder ao mundo” –, para depois desvalorizar: “Coincidiu”.

“Ingrato e repugnante”

Na Fundação Saramago, em Lisboa, a Presidenta – como insiste em formular a palavra – limpa distraída um retrato a óleo do escritor com um lenço de papel. As obras do Terminal de Cruzeiros, mesmo em frente à Casa dos Bicos, enchem tudo de pó. Conversa rodeada de artefactos da vida e obra do Nobel, incluindo um top 10 da Bertrand da década de 1990 em que apenas dois livros não são dele: Vai Onde te Leva o Coração, em 7º, e Aparição, em 10º. Há alguma acidez no discurso, mas sobretudo amargura: “Este episódio é ingrato e repugnante”; “Não significou nada para Saramago”; “’Desilusão’? Não. Para nos desiludirmos temos de ter estado iludidos”; “Saramago está a anos de luz de toda esta situação e de toda esta gente. Pensam que Saramago estava preso a uma decisão de um Governo que já não existia, que tinha membros presos? Por amor de Deus. Saramago tinha seguido navegando pelo mundo e os outros continuavam por aí.”

Pilar del Rio, na Fundação Saramago, em Lisboa

Jorge Amaral

Seja qual for a interpretação, a verdade é que o “Evangelho Segundo Jesus Cristo”, que coincide com a mudança para Lanzarote, assinala um ponto de viragem na obra do escritor. “Ele dizia que até ao ‘Evangelho’ escrevia sobre a estátua”, explica Zeferino Coelho. “A partir do ‘Evangelho’ passou a escrever sobre a pedra.” A primeira é a superfície; a segunda o seu interior. “Já não é o homem em determinada circunstância. O que lhe importa é a alma humana no que ela tem de universal.”

Saramago explica esta evolução em 1998, na Universidade de Turim, numa palestra mais tarde publicada em livro e intitulada “Da Estátua à Pedra” (em que afirma ainda e de forma taxativa que o Evangelho Segundo Jesus Cristo é não só o seu romance que “gerou mais polémica” mas também “a causa de ter mudado a minha residência de Lisboa para Lanzarote”).

O primeiro romance desta nova fase chama-se Ensaio Sobre a Cegueira. “Que eu acho”, prossegue Zeferino Coelho, “e até lho disse várias vezes – ele não concordava – que é o melhor romance dele.”

Entre um e outro livro passam quatro anos. O interregno é atípico, mas a vida do escritor está cada vez mais cheia. Além de que a matéria ficcional que agora o ocupa é de uma dureza inusitada. “A certa altura cheguei a dizer: ‘Não sei se consigo sobreviver a este livro.’”, contaria ao Expresso em 1995. “Foi como se tivesse dentro de mim uma coisa feia, horrível, e tivesse de sacá-la. Mas não saiu, está no livro e está dentro de mim.”

Saramago era um pessimista. Para ele, a irracionalidade estava a tomar conta de um mundo contemporâneo ao serviço do lucro e do mercado. Na opinião do autor de Biografia – José Saramago (Guerra & Paz), João Marques Lopes, “os efeitos da polémica e do veto poderão ter contribuído para o aprofundamento do pessimismo”, afirma por email, “mas creio que são secundários face às mudanças geo-políticas e ideológicas do ‘mal-chamado’ socialismo real em 1989-1991.” Quanto a Lanzarote? “Há quem relacione a ‘secagem’ do estilo barroco com a orografia desprovida de vegetação e de arvoredo. Acho que pode estar correto.” Pilar concorda: “Talvez a austeridade de Lanzarote [tenha sido uma influência]”.

“Não faz sentido nenhum [dizer que censurei o Saramago]”, afirma Sousa Lara. “O homem ficou rico à minha custa. E ganhou o prémio Nobel à minha custa. Eu sou acusado é de ter promovido o senhor Saramago a prémio Nobel. Tenho qualquer cota-parte nessa causa.”

Adaptado ao cinema em 2008 pelo brasileiro Fernando Meirelles, Ensaio Sobre a Cegueira é porventura o livro mais importante no percurso internacional de Saramago. A edição americana sai em 1998 e é recebida com entusiasmo pela imprensa. “Lembro-me de uma recensão publicada no Los Angeles Times que o classificava como um romance sinfónico”, conta Zeferino Coelho. “Isto em Agosto, Setembro. Em Outubro dão-lhe o Prémio Nobel. Pode ter empurrado um bocadinho.” O romance aparece em destaque no texto de atribuição, “Um dos romances destes últimos anos aumenta consideravelmente a estatura literária de Saramago. É publicado em 1995 e tem como título ‘Ensaio Sobre a Cegueira’.”

“O Inferno está cheio. Não se ria”

Uma das histórias que Sousa Lara gosta de contar tem a ver com um momento de epifania na sua vida. Antes do 25 de Abril, um artigo seu sobre o LSD publicado num jornal monárquico foi censurado pela PIDE. Indignado com a situação, foi falar com o director, Jacinto Ferreira. “Eu tinha 18, 19 anos”, conta. “Disseram-me: ‘És muito miúdo. Não sabes que há verdades que não se podem dizer?’ Fez-se clique. Olhei para o gajo e disse assim: ‘Mas comigo é que não’.”

Não deixa de ser curioso que o homem que aponta um episódio de censura como um dos mais transformadores da sua vida se tenha tornado infame por causa de uma acusação de censura. Hoje, Sousa Lara diz-se “proscrito”: “Escovaram-me da política”. Ainda assim, voltaria a vetar a candidatura. “Não faz sentido nenhum [dizer que censurei o Saramago]”, afirma. “O homem ficou rico à minha custa. E ganhou o prémio Nobel à minha custa. Eu sou acusado é de ter promovido o senhor Saramago a prémio Nobel. Tenho qualquer quota-parte nessa causa.”

Quando no ano passado Cavaco Silva condecorou Sousa Lara com a Ordem do Infante D. Henrique, destinada a “quem houver prestado serviços relevantes a Portugal, no país e no estrangeiro”, o colunista João Pereira Coutinho aproveitou para atiçar o lume: “Se a esquerda fosse verdadeiramente grata, já teria erguido uma estátua ao homem por serviços prestados à causa.” Para provocador, provocador e meio. O gesto de Lara foi “pacóvio”, escreveu no Correio da Manhã, e “ridículo” avançou ao Observador por email, mas “sem Sousa Lara, jamais Saramago teria optado pelo ‘exílio’ em Lanzarote; sem esse ‘exílio’, jamais Saramago teria sido o escritor ‘maldito’ (ou ‘perseguido’) que ele passou a usar na lapela; e sem o ‘exílio’ e a ‘perseguição’, não haveria Prémio Nobel para ninguém.” Mais: “a repercussão internacional foi imensa – e é justo extrapolar que aumentou a visibilidade de Saramago.” Como Lara gosta de dizer, “os argumentos são subjetivos”.

Saramago em Lanzarote, já depois do caso "Evangelho"

O editor de Saramago acredita que hoje o “Evangelho” voltaria a causar alvoroço. “Para mim, o direito à blasfémia é a medida da liberdade do pensamento. Mas a opinião dominante lida mal com isto.” Um exemplo recente é o da Bíblia de Frederico Lourenço (Quetzal). Traduzida do grego, faz opções semânticas que põem em causa dogmas da Igreja. Lourenço, Prémio Pessoa 2016, chegou a ser acusado de ignorante. Mas não por Sousa Lara, ressalve-se. O ex-subsecretário de Estado da Cultura é fã. “Tenho cinco versões da bíblia na minha mesa de cabeceira. Desde que saiu, que só leio essa”, conta. “É mais consentânea com o que terá sido. O gajo é um erudito. Aquilo dá gosto. Só que tem perigos, rasteiras.”

Lara diz viver em oração permanente. Tem uma fé inabalável, permanente, impositiva: “Preenche o oxigénio dos meus dias.” Pela primeira vez, parece ter algum receio de ser mal interpretado. “Dizer isto parece mal.” Da mesma forma, garante não guardar rancores. Nem um ao longo da vida.

– E quando disse, ‘vou rezar pelo Saramago’, rezei. Não acho que valha a pena porque ele deve estar no Inferno.
– Acredita no Inferno, portanto?
– Ah, claro. E acredito que está cheio. Não se ria.
– E quando chegar a sua vez?
– Espero passar no exame.

Contactados pelo Observador, nem Aníbal Cavaco Silva nem Pedro Santana Lopes se mostraram disponíveis para comentar este caso. Em 1992, ganharia o Prémio Literário Europeu e os correspondentes 20 mil ecus o espanhol Manuel Vázquez Montalbán.

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