O prémio Nobel da Química foi atribuído, esta quarta-feira, a desenvolvimento de duas técnicas que permitiram a criação de proteínas dirigidas, ou seja, a possibilidade de criar novas proteínas com os objetivos específicos que o investigador lhes atribuiu. Frances H. Arnold foi laureada pelo trabalho desenvolvido na evolução dirigida das enzimas, e George P. Smith e Gregory P. Winter, pelo trabalho com bacteriófagos (vírus que infetam bactérias) para a produção anticorpos humanos.

As proteínas são moléculas muito grandes que existem em abundância no nosso organismo. E são as proteínas que desempenham a maior parte do trabalho feito pelas células. Tem funções tão diversas como facilitar e acelerar as reações químicas, no caso das enzimas, ou contribuir para a resposta imunitária do organismo, como os anticorpos.

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O trabalho desenvolvido pelos investigadores agora distinguidos tem impacto em áreas tão distintas como a produção de biocombustíveis ou produzir novos fármacos.

Os investigadores usaram os mesmos princípios da evolução definidos por Charles Darwin, mas num ritmo muito mais acelerado e dirigido. Na natureza, a evolução pode levar demasiado tempo para aquilo que são as necessidades humanas e acontece ao acaso, com muitos organismos e mecanismos a serem rejeitados por não funcionarem. No laboratório, acontece o mesmo, mas a uma velocidade maior, e a seleção está melhor definida.

Frances H. Arnold, George P. Smith e Gregory P. Winter foram distinguidos por terem desenvolvido técnicas que controlam a evolução com vantagens para a humanidade — JONAS EKSTROMER/AFP/Getty Images

A seleção dos laureados nesta área foi feita e anunciada pela Real Academia Sueca das Ciências, em Estocolmo (Suécia). O prémio tem um valor de nove milhões de coroas suecas (cerca de 872 mil euros). Metade será atribuído a Frances Arnold e a outra metade para George Smith e Gregory Winter.

A evolução no laboratório também se baseia em diversidade e seleção

A investigadora norte-americana, Frances Arnold, foi a quinta mulher a ganhar um prémio Nobel da Química desde 1901. Lígia Martins, investigadora no Instituto de Tecnologia Química e Biológica, felicita-se com esta conquista, mas admite que “já estava à espera que a Frances Arnold ganhasse um Nobel num futuro próximo”. Gonçalo Bernardes, investigador no Instituto de Medicina Molecular, concorda: “Se há alguém que pudesse ganhar um Nobel na área da evolução das enzimas é a Frances Arnold”.

Frances Arnold é engenheira química e foi à Biologia buscar a inspiração para fazer um melhoramento tecnológico das enzimas com que trabalhava. Se a natureza tem a capacidade de produzir muitas variações e selecionar as que funcionam melhor, porque não fazer o mesmo em laboratório e selecionar as variações que tiverem mais interesse para cumprir o objetivo do investigador?

Esse objetivo pode ser alterar a função de uma proteína ou fazer com que uma enzima (que também é uma proteína) acelere uma reação química. Para se alterar uma proteína e, consequentemente, alterar a sua função, pode pensar-se em mudar aminoácido a aminoácido (que são as peças que compõe as proteínas). Se imaginar que uma proteína é uma frase, alterar os aminoácidos é o mesmo que trocar algumas letras nessa frase até ela ter um significado diferente. O problema com esta técnica é que a probabilidade de se encontrar a proteína que se deseja é mínima, disse ao Observador Lígia Martins, que também trabalha em engenharia de proteínas. Porquê? “Porque não existe o conhecimento necessário para estabelecer fidedignamente a relação entre a composição e a função da proteína.” Existem 20 aminoácidos e cada enzima pode ter várias centenas deles, logo, as combinações são virtualmente infinitas.

Existe, no entanto, outra estratégia, com uma probabilidade de sucesso muito maior: a que foi desenvolvida por Frances Arnold, investigadora no Instituto de Tecnologia da Califórnia (Estados Unidos), em 1993. Na natureza, é a diversidade que permite que haja evolução, ou seja, quando há muitas características diferentes, a que mostrar vantagens é a que tem maior probabilidade de ser selecionada. No laboratório a ideia é a mesma: provocar várias mutações e, como resultado, ter várias proteínas diferentes a partir daí. O segundo passo é escolher a proteína que cumpre os objetivos. No fundo, é como ter um computador a criar frases aleatórias e depois escolher a melhor. E a melhor frase vai depender dos objetivos do investigador em cada momento.

Uma e outra técnica tem algo em comum: as alterações são feitas no código genético e não diretamente na proteína. Como é o código genético que tem as instruções para construir a proteína, alterando estas regras, a proteína também sofre alterações. Nos casos em que se provocam mutações para criar novas proteínas a ideia é que a alteração não seja muito grande ou corre-se o risco de a proteína deixar de funcionar. Por isso se fazem vários ciclos de mutação e seleção até se atingir o objetivo. “Conseguir três ou quatro gerações de proteínas pode levar cerca de um ano”, conta a investigadora. O processo é moroso, mas ainda assim muito mais célere do que esperar que a natureza o faça.

Para Lígia Martins, é a indústria que mais vai beneficiar dos impactos desta técnica, tornando-se mais eficiente e menos poluente. E as enzimas são um bom exemplo disso. Estas proteínas são responsáveis por acelerar a velocidade de determinadas reações químicas. Se se encontrar um enzima que torne o processo ainda mais rápido, a indústria ganha um sistema mais eficiente. Além disso, as enzimas, enquanto catalisadores, podem substituir os catalisadores químicos, tornando o processo também mais sustentável. A produção de biocombustíveis e de fármacos são as áreas onde a aplicação desta técnica é mais clara.

Esta técnica, que cria mutações aleatórias, também pode ser um bom recurso para criar novas moléculas. “As enzimas agora produzidas no laboratório de [Frances Arnold] podem catalisar reações químicas que nem sequer existem na natureza, produzindo materiais completamente novos”,escreveu a Real Academia Sueca das Ciências num documento que explica os trabalhos de investigação distinguidos. As novas moléculas criadas podem também vir a ser usadas no tratamento de doenças.

Usar vírus como montras de proteínas

Ainda antes dos trabalhos de evolução dirigida de enzimas, por Frances Arnold, os dois outros laureados desenvolveram trabalhos com bacteriófagos (vírus que infetam bactérias) e a capacidade que têm de apresentar na sua superfície determinadas proteínas, incluindo aquelas cujo aparecimento foi provocado pelos investigadores. Em 1985, George Smith, professor emérito da Universidade do Missouri (Estados Unidos), explorou a forma de apresentar as proteínas à superfície do bacteriófago e de criar novas proteínas. Mas tarde, Gregory Winter, investigador emérito no Laboratório de Biologia Molecular (Cambridge, Reino Unido), usou essa técnica na evolução de anticorpos e produção de novos fármacos.

O primeiro fármaco resultante desta técnica, o adalimumab, foi aprovado em 2002, referiu o comunicado de imprensa da Real Academia Sueca das Ciências. Este fármaco, comercializado em Portugal, é recomendado no tratamento da artrite reumatóide, psoríase e doenças inflamatórias do intestino. Esta técnica permitiu também criar anticorpos que podem neutralizar toxinas, contrariar o efeito das doenças autoimunes e tratar o cancro metastático (que já saiu do órgão de origem e se espalhou por outras partes do corpo).

Os bacteriófagos, usados pelos dois investigadores, são estruturas bastantes simples: uma quantidade pequena de material genético rodeada de uma cápsula de proteínas. Tão simples que nem sequer são capazes de se multiplicar. Para isso, infetam bactérias, introduzem o seu material genético no interior e usam a maquinaria celular para se replicar e produzir proteínas. Os vírus, que não são seres vivos, obrigam assim a bactéria a produzir novos vírus.

Introduzir um novo gene no material genético do bacteriógafo é relativamente simples. Depois é esperar que o vírus infete a bactéria e que esta produza as proteínas que vão estar na cápsula do vírus, incluindo a proteína que teve origem no gene introduzido pelo investigador. Para encontrar essa proteína, são usados anticorpos que se liguem especificamente a essa proteína. Assim, é possível caçar os bacteriófagos de interesse no meio de uma sopa diversa deste tipo de vírus.

Só com o contributo dado por George Smith, que colocou as proteínas em exposição na montra dos fagos, Gregory Winter pode desenvolver uma técnica para desenvolver anticorpos que pudessem ser usados para tratar doenças humanas.

A ideia era a mesma, colocar um gene humano no material genético do vírus e ver a proteína produzida ser incorporada na cápsula do fago. No caso de Winter, as proteínas que usava eram anticorpos (ou, mais especificamente, a parte do anticorpo que se liga à molécula que pretende atacar). Na sopa de bacteriófagos com anticorpos à superfície, o investigador poderia colocar diversas proteínas e ver que anticorpos se ligam melhor a que tipo de proteínas. Se essas proteínas fossem específicas determinadas doenças, tornavam-se alvos perfeitos para os anticorpos. É que quando os anticorpos se ligam a uma proteína dão um sinal ao sistema imunitário que deve atacar aquele “agente estranho”.

Os bacteriófagos podem, assim, ser usados de duas maneiras: ou mostram uma proteína-alvo que é “atacada” por um anticorpo; ou mostram o anticorpo que se vai ligar à proteína que estiver no meio envolvente. Em qualquer dos casos, a proteína-alvo pode ser uma proteína específica de determinado tipo de doença, como de uma célula tumoral, e o anticorpo ao ligar-se a ela vai dar indicação ao sistema imunitário do que deve atacar.

Gonçalo Bernardes, investigador no Instituto de Medicina Molecular e na Universidade de Cambridge (Reino Unido), também trabalha com bacteriófagos, mas numa perspetiva um pouco diferente. Primeiro, transforma os peptídeos lineares em circulares. Só depois seleciona os que se ligam às proteínas de interesse (aquelas que podem estar na superfície das células doentes).

Os anticorpos são capazes de identificar proteínas na membrana celular, mas nunca entram dentro da célula. Já os peptídeos cíclicos podem entrar dentro das células e fazer entregas específicas, ou de substâncias tóxicas para matar a célula, ou de “mensagens” que indicam à célula se se deve suicidar ou expandir.

Cada uma das moléculas na superfície do bacteriófago pode ser testada contra uma grande variedade de alvos, mas este processo demora muito tempo e é muito dispendioso. A equipa de Gonçalo Bernardes tem uma abordagem diferente, usar inteligência artificial para identificar fármacos que possam ser eficazes contra células tumorais, especificamente nas leucemias e cancros do cérebro. Estas moléculas são normalmente muito tóxicas e podem mesmo ter sido rejeitadas nos ensaios clínicos por não cumprirem o objetivo a que se propunham, o que não impede que possam ser úteis noutras funções. E é isso que o investigador português quer descobrir.

Baterias de lítio e optogenética estavam entre as apostas para este ano

A antecipação dos prémios Nobel conduz, naturalmente, às previsões dos possíveis premiados. Como o Comité do Nobel só divulga os nomeados passados 50 anos da nomeação, os cientistas e interessados têm de usar outros métodos para fazer as suas apostas, que podem ir da simples intuição até métodos mais analíticos e sistematizados, como a avaliação do número de vezes que os artigos do autor foram citados. Um processo ainda mais complexo numa área como a Química que tantas vezes cruza temas que poderiam ser facilmente premiados pela Medicina ou pela Física.

A Clarivate Analytics analisa e seleciona todos os anos os seus “laureados das citações“, os autores com mais artigos científicos citados. Para a área da Química, os três nomes e trabalhos de investigação apontados são: Eric N. Jacobsen, da Universidade de Harvard (Estados Unidos), pela contribuição das reações catalíticas na síntese orgânica; George M. Sheldrick, da Universidade de Göttingen (Alemanha), pela influência na cristalografia estrutural; e JoAnne Stubbe, professora emérita do MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts, nos Estados Unidos), pela descoberta que a ribonucleotídeo redutase transforma os ribonucleotídeos em desoxirribonucleotídeos — peças-chave da formação do ADN — por um mecanismo de radicais livres.

A Sociedade Americana de Química também fez as suas apostas e convidou os internautas a discutirem as possibilidades num webinar (uma conferência online). No site Chemical & Enginnering News, cinco jornalistas e académicos fizeram as suas escolhas: Robert G. Bergman, da Universidade da Califórnia (Estados Unidos), pela descoberta pioneira pela funcionalização catalítica dos compostos orgânicos; Christopher T. Walsh, da Harvard Medical School (Estados Unidos), pelos avanços na Biologia Química, produtos naturais e antibióticos; Stanley Whittingham, da Universidade de Binghamton, John B. Goodenough, da Universidade do Texas (em Austin), e Akira Yoshino, da empresa Asahi Kasei, pela invenção e desenvolvimento das baterias de lítio; Karl Deisseroth, da Universidade Stanford, pelo desenvolvimento da optogenética — ferramentas óticas que permitem aprofundar a investigação sobre o cérebro —; e Arthur L. Horwich, da Universidade de Yale, e Franz-Ulrich Hartl, do Instituto Max Planck de Bioquímica, por terem descoberto que as proteínas chaperonas ajudam outras proteínas a dobrarem-se e enrolarem.

Atualizado às 17h30

Corrigido: uma enzima tem centenas (e não milhares) de aminoácidos