Vinte e sete anos depois de ter entrado pela primeira vez no Congresso dos Deputados, Jair Bolsonaro conseguiu o que quis: ter o Brasil feito à sua medida. O candidato de extrema-direita, do Partido Social Liberal (PSL), venceu a primeira volta das eleições presidenciais com 46,1% dos votos e arrastou consigo uma forte onda conservadora e populista que conquistou importantes cargos estaduais e legislativos.
Pelo caminho, Bolsonaro deixou um centro ferido de morte — o PSDB, de Geraldo Alckmin, teve o seu pior resultado de sempre, com 4,8% — e o Partido dos Trabalhadores (PT) ficou reduzido às suas bases de apoio mais fiéis, perdendo o resto do país.
Bolsonaro nunca foi um político tradicional e, na noite em que subiu a um patamar de importância reservado a poucos no Brasil, voltou a primar pela diferença no meio escolhido para o seu discurso de vitória. Em vez do modelo tradicional — uma sala de imprensa num hotel de São Paulo ou do Rio de Janeiro — fez um live no Facebook seguido por centenas de milhares de pessoas.
E, no discurso propriamente dito, Bolsonaro quis sublinhar mesmo ao que veio: uma rutura com o passado recente do Brasil. Apontando para os anos do PT (de 2003, com Lula, a 2016, com Dilma), disse: “Como herança, tivemos aqui um país que viu os seus valores familiares desgastados. Mergulhámos na mais profunda crise ética, moral e económica. Nunca visto. O nosso país está à beira do caos. Não podemos dar mais um passo à esquerda. O nosso espaço agora é para o centro-direita”.
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Em partes do seu discurso, Bolsonaro procurou sarar algumas feridas que os seus discursos mais agressivos abriram. Num tom mais moderado do que lhe é habitual, mas que já tinha vindo a utilizar nas últimas semanas de campanha, que coincidiram com a sua recuperação da facada de que foi vítima a 6 de setembro, apelou à união do povo brasileiro: “Temos de unir o nosso povo, unir os cacos que nos fez o governo da esquerda no passado. Botando de um lado negros e brancos, jogando nordestinos contra sulistas, jogando pais contra filhos, até mesmo quem tem opção homo contra heteros. Vamos unir o nosso povo. Unidos, seremos sim uma grande nação. Ninguém tem o potencial que nós temos”.
Bolsonaro, o militar que começou como piada e acabou como Presidente
Mas não foi só por essa via que o discurso de Bolsonaro discorreu. Filho do Brasil pós-Lava Jato, do Brasil que viu 14 dos seus partidos envolvidos no maior escândalo de corrupção da sua História, com o PT à cabeça deles todos, o capitão na reserva apostou no discurso anti-sistema.
“Não vai ser fácil, o segundo turno. Eles têm milhares de milhões para gastar, você sabe disso!”, disse para quem assistia ao vídeo no Facebook e que as televisões retransmitiram. “Eles têm dinheiro, têm um poder económico enorme. Eles têm também parte dos media favorável aos seus propósitos.”
De frente para a derrota, o PT quer “unir os democratas”
Por “eles”, entenda-se o PT. Ladeado pela presidente do PT, Gleisi Hoffmann, e pela sua candidata a vice, Manuela d’Ávila, Fernando Haddad fez um breve discurso a partir de um hotel em São Paulo. Nomeou cada uma delas, mas foi quando evocou o nome de Lula — “a maior liderança” do PT, chamou-lhe — que os aplausos soaram mais alto.
Sem admitir derrota, o discurso do homem que Lula escolheu a dedo para lhe suceder no boletim de voto não conseguiu ainda assim esconder o desalento do seu partido nesta noite. Não foi só nos números que o PT perdeu — foi também nos nomes. A maior prova disso foi a derrota da ex-Presidente Dilma Rousseff, que ficou em quarto lugar em Minas Gerais e falhou assim a eleição para senadora no seu estado-natal.
“Sinto-me desafiado pelos resultados, que são bastante expressivos no sentido de nos fazer atentar para os riscos que a democracia no Brasil corre”, disse. “A oportunidade de uma segunda volta é uma oportunidade, particularmente em 2018, inestimável que o povo nos deu. E que nós precisamos saber aproveitar com sobriedade, mas também com sentido de responsabilidade”, completou Fernando Haddad.
Haddad, candidato derrotado por obra e graça do Espírito Santo Lula
A narrativa do PT para as semanas que se seguem ficou clara no discurso de Haddad, que vai defender o seu programa como aquele que defende a democracia e os mais pobres. “Queremos unir os democratas do Brasil, queremos unir as pessoas que têm atenção aos mais pobres desse país, tão desigual”, disse. “Queremos um projeto amplo para o Brasil, profundamente democrático, mas também que busque, de forma incansável, justiça social.”
A direita que Bolsonaro carregou aos ombros
No discurso que fez antes de ser levado para a prisão, Luiz Inácio Lula da Silva, ex-Presidente do Brasil e nome maior da esquerda brasileira, disse na sua voz rouca e combativa: “Já não sou um homem, sou uma ideia”. Porém, nestas eleições, quem tem maior legitimidade para reclamar esse estatuto é mesmo Bolsonaro. Escapulido das filas de trás do Congresso dos Deputados, onde ao longo de 27 anos conseguiu aprovar apenas dois projetos, Bolsonaro salta agora para a posição de Midas da direita brasileira e força motriz de candidatos a quem bastou declarar o seu apoio ao capitão na reserva para triunfar.
Em todas as dimensões destas eleições — para órgãos estaduais, para cada uma das câmaras do Congresso ou para o cargo de governador —, o efeito Bolsonaro alargou-se a vários candidatos que, sem ele, dificilmente teriam chegado aonde estas eleições os levaram. Entre os filhos de Bolsonaro, Eduardo conseguiu ser o deputado federal eleito com o maior número de votos de sempre para um deputado federal e Flávio saiu em primeiro lugar na corrida para senador pelo Rio de Janeiro. Mas não são só os genes que pesam aqui. Fora da família Bolsonaro, o efeito repete-se.
Tal pai, tais filhos: Eduardo e Flávio também ganharam com “efeito Bolsonaro”
Janaína Paschoal, a jurista convidada para argumentar no Senado a favor do impeachment de Dilma Rousseff em 2016, e nome que chegou a ser considerado para vice de Bolsonaro, foi eleita deputada estadual em São Paulo à frente de todos. No Rio Grande do Sul, Luís Carlos Heinze — cujo partido, o PP, fazia parte da coligação do presidenciável Geraldo Alckmin — declarou o seu apoio a Bolsonaro na reta final da campanha e vai entrar pela primeira vez no Senado. A nível de governadores, o efeito Bolsonaro continua. Wilson Witzel, candidato do PSL no Rio de Janeiro e que até há pouco tempo ninguém conhecia, é agora favorito a vencer a segunda volta, depois de conquistar 41% dos votos este domingo. E o mesmo se passa com Romeu Zema — candidato a governador de Minas Gerais, pelo NOVO, a quem bastou declarar apoio a Bolsonaro para chegar aos 43%.
“O Bolsonaro é o voto útil da direita contra o PT. Isso percebe-se com o PSDB, que tem agora uma votação quase vergonhosa”, diz ao Observador por telefone a académica Esther Solano, politóloga da Universidade de São Paulo, que tem seguido de perto o candidato da extrema-direita e o seu eleitorado. “Migrou tudo para o Bolsonaro. É um desgaste muito grande da política tradicional, do centro e do centro-direita.”
“Bolsonaro é favorito”
Desde que é candidato, Bolsonaro ainda não parou de crescer. Primeiro, consolidou-se na sua área de origem: os militares e os setores mais conservadores do Brasil. Depois, com a exposição que a campanha lhe foi dando, arrebatou o apoio de várias alas. Entre a população, conquistou todos menos os mais pobres, caiu na graça da classe média e também da classe média-alta com ensino superior.
Politicamente, conseguiu o apoio da Igreja Evangélica — tanto da bancada parlamentar daquele setor importante da vida social e política do Brasil, como dos seus mais importantes líderes, com o bispo Edir Macedo, fundador da IURD — e também conseguiu cair no favor da Frente Parlamentar Agropecuária, que junta mais de 200 deputados e senadores.
Essa expansão nota-se no mapa do Brasil. Em 26 estados, 16 caíram para o lado de Bolsonaro. Os restantes 10 são de Haddad, que apenas conseguiu manter o Nordeste, bastião de longa data do PT. No entanto, as zonas para onde conseguiu expandir-se nos seus melhores anos — onde se inclui o Sul e o Sudeste — são agora do capitão da extrema-direita.
Por tudo isto, as especialistas ouvidas pelo Observador nesta noite eleitoral têm dúvidas quanto à possibilidade de uma reviravolta de Haddad. “Vai ser muito difícil para o Haddad, porque o PT perdeu lugares importantes, saiu muito prejudicado nas suas alianças regionais”, explica Esther Solano.
Luciana Veiga é perentória: “O Bolsonaro é o favorito. Está saindo com mais força da primeira volta, porque está mais próximo desse anseio da direita que domina agora o país. E o mais curioso é que ele ficou esses dias todos guardado no hospital. Mas a sua militância foi muito importante. Não parou. A quantidade de mensagens no WhatsApp que cai a cada momento é estonteante”.
Para esta politóloga do Rio de Janeiro, a única opção que o PT tem agora é a de apostar no “discurso de classe”. E conclui: “Se não for isso, não resulta mais nada e Bolsonaro será Presidente”.