— Este julgamento teria sido mais dignificante se todos tivessem assumido as suas responsabilidades.

As palavras saíram em jeito de reprimenda da boca seca da juíza Emília Costa já no final da sessão. Tinham passado quase duas horas de uma leitura “resumida” do acórdão, interrompida por vários goles num copo com água, mas o principal visado no recado nem sequer ali estava presente. João Rendeiro, o fundador do BPP que esta terça-feira acabou condenado a cinco anos, foi considerado pelo coletivo o principal culpado dos crimes de falsidade informática e falsificação de documento que lesaram o banco, mas faltou à sentença e, até ao momento, ainda não justificou porquê.

Dez anos depois dos crimes, quatro após a acusação e com sucessivos adiamentos, só três dos cinco arguidos se deslocaram a tribunal: o ex-braço direito de João Rendeiro, Salvador Fezas Vital, e os dois ex-quadros Fernando Lima e Paulo Lopes — condenados a penas menores. Rendeiro não apresentou justificação para não comparecer, embora ainda o possa fazer, e Paulo Guichard, ex-administrador, trabalha no Brasil e disse encontrar-se em Ipanema.

A juíza entrou na sala com uma aparente resma de folhas na mão e avisou que ia fazer uma leitura muito resumida do acórdão, que só estará disponível daqui a uma semana. Ainda assim demorou quase duas horas a elencar os crimes de que são suspeitos, como foram julgados e como avaliou as questões prévias levantadas por todos os arguidos. Salientou que, no julgamento, os arguidos apresentaram “teorias peregrinas” quanto à sua atuação no banco. “E não vale a pena dizerem que se basearam num parecer”, advertiu.

No final acabou por condenar os três administradores a penas de cadeia que poderão ser suspensas caso paguem um valor a uma instituição particular de solidariedade social. Os valores que fixou dependeram das atuais condições económicas dos arguidos e, também, da sua responsabilidade no caso. Assim, Rendeiro foi condenado a cinco anos de cadeia, suspensos se pagar 400 mil euros à associação Crescer. Guichard foi condenado a uma pena de cadeia de quatro anos e três meses que poderá ser suspensa se pagar 25 mil euros ao Centro de Apoio Social dos Anjos. Por seu turno Vital foi condenado a três anos e meio de cadeia que também poderão ser suspensos sob pagamento de 15 mil euros à Cais Lisboa.

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Os três arguidos têm seis meses após o trânsito em julgado do caso para o fazer, senão são presos. No entanto, podem ainda recorrer da decisão, adiando o pagamento por alguns anos.

O tribunal considerou menor a intervenção de Fernando Lima e Paulo Lopes no esquema criminoso. Lima viu a pena de cadeia de um ano ser substituída por uma multa de 5400 euros, enquanto Lopes foi condenado a um ano e nove meses suspensos por igual período.

Que esquema foi este?

Em causa o esquema central de todo o processo: os arguidos são acusados de venderem produtos bancários aos seus clientes e de ocultarem parte das suas condições aos revisores de contas e ao Banco de Portugal. Por exemplo, produtos de retorno absoluto, cujas garantias eram escondidas dos relatórios dando a aparência que o banco se encontrava sempre com “robustez financeira”, mesmo quando teve um prejuízo de 40 milhões e euros que tentou ocultar por via de uma das suas muitas offshores. 

A juíza sublinhou que, relativamente ao modo de atuação, para conseguir obter os montantes que tinham contratualizado com os clientes, o BPP efetuava “vendas fictícias de títulos” de forma a obter o valor contratualizado– pelo que, na verdade, “quem pagava eram os outros clientes que contratavam os serviços, e não o BPP”.

O Ministério Público acusava os cinco arguidos de “colocaram em causa a segurança, a credibilidade e a força probatória que os registos informáticos e os documentos produzidos a partir dos mesmos – nomeadamente os contabilísticos, certificados por revisor oficial de contas e divulgados pelo Banco de Portugal –, merecem”. E apenas por uma razão, plasmada por várias vezes ao longo do despacho de acusação: fazer crer que o BPP não atravessava qualquer problema financeiro para manterem os seus ordenados.

“Conferir a aparência de um bom governo do BPP e manter os cargos de administração que exerciam, com o respetivo estatuto remuneratório, dos quais seriam afastados assim que o Banco de Portugal tomasse conhecimento das descritas condutas, como veio a ocorrer”, lê-se no despacho proferido em 2014.

Quem são os arguidos?

João Rendeiro, 66 anos, foi presidente do conselho e administração desde a sua fundação até dezembro de 2008 que renunciou ao cargo. Salvador  Fezas Vital, de 60, foi vogal do conselho de administração até ser suspenso provisoriamente pelo Banco de Portugal três meses após a saída de Rendeiro. Paulo Guichard, 57 anos, foi vogal do conselho e administração até ser igualmente suspenso pelo BdP. Eram eles o núcleo central da gestão do banco e nenhuma decisão relevante era tomada sem a aprovação dos três. Os três foram acusados de vários crimes de falsidade informática e de falsificação de documento.

O arguido Fernando Lima, 48 anos, foi primeiro diretor de sistemas do BPP depois passou a vogal do conselho e administração até ser suspenso. Paulo Lopes, 50, foi diretor até abril de 2008. Estes dois gestores foram acusados do crime de falsidade informática.

O controlo do Banco de Portugal

O BPP foi criado em 1996 e reestruturado oito anos depois. Passou a ser detido a 100% pela Privad Holding (criada em 2003) — empresa que tem por objeto a gestão de participações sociais noutras sociedades. A partir desta altura ficou legalmente dispensado de apresentar contas consolidadas, mas permaneceu sujeito à supervisão do Banco de Portugal (BdP).

Em novembro de 2008, o BPP comunicou ao BdP a sua situação de grande desequilíbrio financeiro e a impossibilidade de cumprir as suas obrigações. Um mês depois, o conselho de administração deliberou designar uma administração provisória e que, durante três meses, o BPP estaria dispensado de algumas obrigações no âmbito da gestão de patrimónios, para reestruturação da instituição.

Quase dois anos depois, o BdP decidiu revogar a autorização para o exercício da atividade do BPP, depois de verificada a inviabilidade dos esforços de recapitalização e recuperação do desenvolvidos no contexto das providências extraordinárias de saneamento anteriormente adoptadas pelo BdP. Consequência: dissolução e entrada em liquidação do banco.

Entre 2002 e 2008 o banco dedicou-se à gestão de ativos financeiros de terceiros, propondo aos seus clientes três tipos de produtos: ações, obrigações e private equity. Apesar da estrutura operacional, tinha apenas dois balcões em Portugal, um em Lisboa e outro no Porto, não dispondo de mais de 15o colaboradores, pelos que os três administradores conseguiam controlar tudo.

“O processo decisório era bastante informal, assente em grupos d trabalho almoços, telefonemas e e-mail, em que participavam ativamente, até finais de 2008, os arguidos”, lê-se na acusação.

Mais. O sistema informático e a contabilidade do BPP e da Privado Holding não refletiam, a todo o tempo, a sua situação real, logo não passavam pelo crivo do BdP. Assim, por determinação de João Rendeiro, Paulo Guichard e Salvador Fezas Vital foram adotados procedimentos contabilísticos distintos dos legalmente exigíveis, os quais conduziam ao não reconhecimento contabilístico por parte do BdP, nas demonstrando uma imagem fiel do património, da situação financeira e dos seus resultados

Todos os arguidos, refere o Ministério Público. tinham conhecimento que, no exercício das suas funções, eram obrigados a agirem conformidade com os deveres da CMVM e do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras. Ainda assim, determinaram que o BPP seria gerido com a disponibilização de informação não verdadeira aos seus auditores, revisores de contas, autoridades de supervisão e público em geral acerca da real situação financeira e patrimonial do banco.