De que forma pode um desfile de moda, momento desprovido de qualquer significado social e político (fútil até) para tanta gente, introduzir uma mensagem relevante em áreas e no que toca a temas absolutamente fulcrais nos dias que vivemos? Susana Bettencourt poderia dar uma aula sobre isso. Poderia fazê-lo num auditório, bem ao gosto dos mais ortodoxos, mas fê-lo precisamente numa das salas da Alfândega do Porto, onde, até sábado, decorre a 43ª edição do Portugal Fashion. Na noite da última quinta-feira, a designer ergueu uma bandeira — ativismo sim, mas não dentro da caixa rotulada como feminista. Estação após estação, Susana empoderou a mulher, chegou a hora de não distinguir e de elevar a discussão, em plena passerelle, a um conceito maior, o de individualidade.

“A mensagem que queremos passar com esta coleção é a da mulher de hoje em dia, que não é uma raiz, não é um país, não é uma cor e que não é um género. Temos de pensar em pessoas, não só em mulheres e homens”, afirma ao Observador, após o desfile. O discurso vai muito além de pôr homens a desfilar e de rotular a roupa como unissexo. Susana Bettencourt não fez nada disso, limitou-se a abolir o raciocínio binário que rege a moda, bem como o resto do mundo. “Foi por isso que quisemos tanta pujança, uma música tão forte”, continua.

Susana Bettencourt © João Porfírio/Observador

O momento foi poderoso. A passada confiante e os cabelos entrançados, juntamente com figuras que as manequins tinham desenhadas na cara, elevaram-nas à categoria de guerreiras. A sala abriu-se para a rua, com o percurso do desfile a passar a poucos metros do Douro. A batida ditava os batimentos cardíacos de quem assistia. “Resilient Individuality” (Individualidade Resiliente) foi este apelo à vontade soberana e prevalecente de cada um. “Não estamos a falar do rebanho que segue toda a gente e que procura uma tendência. É uma identidade própria e decidida”, acrescenta.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Ao mesmo tempo que presta um esclarecimento social, fala do seu próprio percurso enquanto criadora. “Uma das coisas que sempre quis foi ser fiel a mim própria, apesar de vendas, dos comentários positivos os negativos. Não me esqueci da identidade que queria passar, dos pequenos detalhes”, relembra. Em 2011, Susana estreava-se no Portugal Fashion. Pela mesma altura, já era conhecida nos corredores do British Fashion Council — em Londres, cidade onde estudou — como a “geek das malhas”. Chegou até aqui por fazer o que ninguém fazia: unir o melhor da era digital ao que de mais artesanal podia pisar uma passerelle, as malhas. A história dá-lhe toda a legitimidade para, sete anos depois, encher uma sala (se estava cheia) e gritar um manifesto. Mais um para juntar a outros, esforços próprios de quem é diferente.

“Posso sentir dificuldades, por vezes, até nas vendas, em fazer o cliente perceber, por exemplo, que temos uma empresa que respeita o princípio da sustentabilidade. Não temos desperdício. O fio que entra na máquina é usado na totalidade. É claro que, ao respeitar isso, tenho um desafio mais complexo ao nível das formas”, explica.

Susana Bettencourt © João Porfírio/Observador

A próxima primavera é uma estação de estreias para Susana Bettencourt. Os tecidos jacquard continuam a exibir as geometrias ricas que, há muito, são já a imagem de marca da criadora, mas há espaço para além disso. A marca dá um salto, consequência de uma designer que insiste em ganhar terreno. “Quero desafiar-me, a mim e à minha equipa, a passar mensagens cada vez mais fortes e, em todas as coleções, vou tentando criar uma desafio novo”, revela. “Será que consigo fazer flores que as pessoas identifiquem como um padrão Susana Bettencourt?”, questionou-se durante o desenvolvimento da coleção. Não só fez flores, como fez bolinhas e, pela primeiras vez, fatos de banho. “Na próxima, se calhar, até quero ver como é que sou sem cor. Será que as pessoas aceitam? Será que consigo dispersar-me e ter a mesma mensagem?”, continua.

O momento, marcante para a marca e para a designer, teve um final triunfante. Morgana, uma transsexual em pleno processo de transição, foi convidada a fechar o desfile. Na sua t-shirt pôde ler-se “Power”. No fundo, foi essa a grande lição da noite, dada por Susana Bettencourt: mais do que apenas a roupa, é na individualidade que está o poder.

Carla Pontes deu “Corpo” ao próximo verão

Os indícios de que esta seria uma coleção extraordinariamente colorida, tendo em conta a paleta habitual de Carla Pontes, chegaram logo nos primeiros coordenados. Em praticamente tudo, a coleção “Corpo” reflete as influências dos desenhos de Egon Schiele — nas cores com que ilustrou os corpos no início do século XX, mas sobretudo nas posições contorcidas em que os representou. “O Egon trabalha muito essa contorção do corpo, o seu movimento e elasticidade. A coleção trabalha isso também, a elasticidade das peças, a sua desconstrução ou construção, mas de uma forma que não é a mais habitual nem a mais fácil de ver à primeira vista”, explica Carla Pontes ao Observador.

Carla Pontes © João Porfírio/Observador

Imediatamente antes de Susana Bettencourt, foi Carla quem inaugurou a referida passerelle com passagem pelo exterior da alfândega. Da sua musa, a obra do pintor, partiu para os materiais que já são uma espécie de assinatura: as malhas e os tecidos termocolados. “Desta vez, tendo o corpo como principal influência, fui buscar ideias de cicatrizes, estrias, de marcas que o corpo vai adquirindo ao longo do tempo, e transformei-as em algo belo. É como vestir as próprias cicatrizes”, completa a criadora. Além das texturas dos materiais, o seu comportamento, ora mais rígidos, ora com maior fluidez, e os franzidos e empolações causadas por abotoaduras desalinhadas deram corpo a uma coleção que nasceu com base em obras bidimensionais.

A linguagem de Carla Pontes, já se sabe, não esconde grandes fórmulas. Diz que a “simplicidade” e a “intemporalidade” são os valores que realmente importam numa peça. Na apresentação desta quinta-feira, o styling, como convém a um bom desfile, foi a cereja no topo do bolo. Evidenciou a versatilidade das peças, em alguns casos, tornando-as mais simples, noutros, complicando-as.

TM Teresa Martins © João Porfírio/Observador

O primeiro dia da 43ª edição do Portugal Fashion começou com o Bloom e terminou com o desfile da TM Teresa Martins (marca que, ainda na edição anterior, dava pelo nome de TM Collection). Teresa Martins, agora com o nome bem visível, deu o habitual espetáculo. Os ventos que ditaram as modas do próximo verão sopraram do deserto, mais especificamente da Índia. Na sala, o set foi decorado a rigor. As manequins, sentadas em pequenos bancos e recostadas em almofadões, foram, à vez, percorrendo a passerelle. Houve dança e pétalas de rosas pelo ar. Com “Desert Eves”, a TM Teresa Martins completa uma trilogia de coleções em que a designer procurou noutras culturas e filosofias um conceito agregador para as suas peças.

O Portugal Fashion continua esta sexta-feira, na Alfândega do Porto, dia em que se esperam o desfiles de CF Cristina, a marca de calçado de Cristina Ferreira, o regresso de Maria Gambina, Carlos Gil, Diogo Miranda e Miguel Vieira.