Sentada numa magnífica poltrona de veludo no Groucho Club, um clube de cavalheiros situado no Soho, em Londres, Vivienne Westwood começa por delinear o plano de acção.
“Acho que, em vez de me fazeres perguntas, vais-me deixar falar e despachar a coisa”
Como rainha no seu trono, Westwood está entediada com mais uma pessoa a querer saber do seu passado quando ela está tão focada no futuro. Quer mudar o guião da entrevista com a mesma paixão com que quer mudar o mundo. E sim, apesar dos 77 anos, ao longo de “Westwood: Punk, Icon, Activist”, o documentário que se estreia este fim-de-semana no DocLisboa, Vivienne faz birra e comporta-se como uma menina mimada.
“É realmente fantástico que esta mulher que fez tantas coisas incríveis não esteja minimamente interessada em falar sobre elas e, em vez disso, prefira falar sobre as coisas que ela considera importantes”, resume Lorna Tucker. “Westwood: Punk, Icon, Activist” é a sua primeira longa-metragem depois de ter passado anos a trabalhar por detrás da câmara em tour com bandas como UNKLE, Lupe Fiasco, The Cult ou Queens of the Stone Age, para quem realizou vídeos de tour e promos de música. “Acho que a minha experiência com artistas e bandas ajudou-me muito a lidar com o processo de filmar a Vivienne. Trabalhei com alguns músicos extraordinários, verdadeiros artistas que são geniais, mas personalidades muito, muito difíceis”, garante.
[o trailer de “Westwood: Punk, Icon, Activist”:]
Durante três anos, a jovem realizadora tentou passar tão despercebida no trilho de Vivienne Westwood, como antes fora em autocarros de tour a filmar músicos a compor canções e a viver na estrada. “Trabalhei cada elemento da vida dela de uma maneira distinta e em momentos diferentes, e acredito que, para os conseguir mostrar da forma mais autêntica possível, foi muito valiosa a minha experiência com bandas porque me ensinou a perceber como me integrar, a filmar com respeito e de uma forma que permitisse às pessoas no estúdio relaxar e deixar-me filmá-los. E paciência. Ensinou-me muita paciência”.
Progressivamente, Lorna Tucker passou da música para a moda e em Vivienne Westwood encontrou o melhor dos dois mundos. No início dos anos de 1970, chegavam a Londres ecos de bandas como os New York Dolls, em muito graças a Malcolm McLaren, o manager da banda nova-iorquina considerada precursora no que toca ao punk. Quando os New York Dolls acabaram, McLaren regressou a Londres, juntou os Sex Pistols e abriu a célebre loja de roupa SEX com a namorada, Vivienne Westwood — daí em diante reconhecida como a designer de moda que fundou o punk. É desta história, a parte mais célebre da sua vida, que Vivienne parece estar farta.
“Podes fazer um filme a dizer que punk é um monte de pessoas que se insurgiram contra o governo e puseram alfinetes-de-ama no nariz, mas isso não é punk. Ela [Vivienne Westwood] é mais punk agora do que era nos anos 1980 porque atualmente ela está a lutar contra o sistema de que ela se tornou parte. Isso, para mim, é que é punk”, afirma Lorna Tucker por Skype a partir de Londres, onde vive e trabalha.
As polémicas T-shirts que Vivienne Westwood criou no auge do punk com imagens da rainha Isabel II com piercings estão agora na posse do museu Victoria e Albert e, em 2006, a designer de moda tornou-se Dama, como reconhecimento por serviços prestados ao seu país. O seu estilo anti-sistema foi absorvido pelo sistema e é hoje um símbolo de Inglaterra tão estabelecido como o Big Ben. Mas isso não significa que Vivienne, a mulher, tenha abdicado um centímetro das suas convicções, antes pelo contrário. Os anos passaram e a designer de moda tornou-se a face mais popular do ativismo ambiental no Reino Unido. Só nesta passada semana, Westwood foi até Lancashire onde um grupo de ativistas estava a protestar contra o fracking (a extração de óleo ou gás através de fissuras hidráulicas em rocha) e dançou uma música dos Abba para os jornalistas.
“Ela tem uma mensagem que realmente quer passar. Ficou muito claro desde o princípio que o que ela queria era falar para a câmara e dizer às pessoas como deviam viver as suas vidas. Enquanto que o que eu queria fazer era um retrato que as pessoas pudessem usar como modelo e perceber que não é tanto o que ela diz, mas o que ela faz que é realmente importante”, explica a jovem realizadora. “É aí que eu acredito que o seu ativismo ambiental verdadeiramente transparece, mas ela obviamente discorda”.
Momentos antes da estreia mundial de “Westwood: Punk, Icon, Activist” no Sundance Film Festival em Janeiro, o documentário foi oficialmente repudiado por Vivienne Westwood através de uma mensagem no Twitter. “Lorna Tucker pediu para filmar o ativismo da Vivienne e seguiu-a por todo o lado durante um par de anos, mas não há sequer 5 minutos de ativismo no filme. Em vez disso há muitas imagens de moda de arquivo que são grátis e podem ser vistas online. É uma pena porque o filme é medíocre, mas a Vivienne e o Andreas (marido e diretor criativo da marca) não são”, lê-se no comunicado.
Ainda que Vivienne Westwood tenha desacreditado o documentário, “Westwood: Punk, Icon, Activist2 foi nomeado para o prestigioso Prémio do Júri no Sundance Film Festival e recebeu boas críticas da indústria cinematográfica. “Comecei a interessar-me por storytelling para contar a verdade, mas mete-me sempre em sarilhos”, desabafa Lorna Tucker. “Quando ela rejeitou o filme publicamente pela primeira vez, estava muito preocupada com a possibilidade de o documentário ser um fracasso. Deixou-me muito triste perceber que, ao manter-me fiel às minhas convicções, faria com que eventualmente ela não quisesse falar mais comigo e que dizer-lhe que não iria enraivecê-la desta forma”. Vivienne Westwood não voltou a falar com a realizadora de cinema, mas Lorna Tucker admite que o seu repúdio do documentário pode, pelo contrário, ter contribuído para aumentar o interesse do público. “Acho que ajudou a promover o filme”.
No início de outubro, o jornal diário londrino Evening Standard publicou a sua lista anual das figuras mais influentes em diferentes áreas e incluiu Lorna Tucker na categoria de “Performance: Ecrã” ao lado de figuras tão estabelecidas como os atores Tom Hardy e Helena Bonham-Carter. Um feito ainda maior se pensarmos que este é, afinal, o seu primeiro documentário e que teve de enfrentar a fúria de uma das personalidades mais queridas do público britânico, um verdadeiro tesouro nacional.
Com a quantidade de artigos, entrevistas, vídeos e até livros que já foram produzidos em torno de Vivienne Westwood, a maior proeza do documentário de Lorna Tucker será talvez o conseguir trazer algo de novo ao público que segue a grande Dama da moda britânica. Por exemplo: “Westwood: Punk, Icon, Activist” reconhece pela primeira vez o papel preponderante de Andreas Kronthaler, o excêntrico designer com quem casou há 26 anos, na sustentabilidade de Vivienne Westwood, tanto a mulher como a marca. Apesar de ambos trabalharem juntos há décadas, este ano, as coleções começaram a ser apresentadas como “Andreas Kronthaler for Vivienne Westwood” dando preponderância ao trabalho do designer austríaco. Ao ver o documentário, percebe-se porquê.
“Ainda não estou satisfeita com a minha empresa porque cresceu demasiado para mim. Estou em perigo de não poder controlar tudo como deve ser”, afirma Vivienne Westwood a certo ponto no documentário. A designer explica que recusou abrir uma loja na Ásia porque não quer que a sua empresa se continue a expandir, deixa a criação de peças de moda à sua equipa enquanto ela protesta por causas ambientais e tem ataques de pânico momentos antes de a coleção sair para a passerelle quando grita que “é tudo uma merda!”.
“Teria sido muito fácil fazer um filme que a pusesse num pedestal, mas esse não era o filme que eu queria fazer. Queria mostrá-la vulnerável. Queria mostrar que foi preciso tempo para ela se tornar no que é hoje. E que ela não veio de um berço de ouro e que as pessoas lhe disseram que não e fizeram pouco dela e que ainda assim ela continuou. Queria mostrar que ela tem imensos defeitos, como todos nós”, defende a realizadora.
O retrato que Lorna Tucker fez de Vivienne Westwood no seu documentário, revela não só o conflito entre as diferentes facetas da figura em que se baseia, mas também as suas falhas e limitações. Se alguns fãs terão saltado de alegria com a possibilidade de ver Westwood através de uma lente com menos filtros, Tucker foi avisada de que corria o risco de ser banida do circuito da moda.
“A [revista] Dazed and Confused nunca escreveu uma crítica do documentário e só publica comunicados negativos da Vivienne porque a admiram e têm uma relação profissional que já vem de longa data e eu tenho de respeitar isso. Mas nunca pensei que uma jovem realizadora seria bloqueada simplesmente porque alguém lhes disse para o fazer — especialmente com o movimento #metoo a acontecer e a forma como estamos a discutir abusos de poder”, afirma Lorna Tucker para explicar como ao princípio o documentário foi vítima de uma espécie de bloqueio na forma de silêncio. A grande reviravolta aconteceu depois de a revista Harper’s Bazaar ter publicado um artigo em que celebrava Lorna Tucker como uma das cinco realizadoras femininas revelação do ano. “A partir daí, literalmente de um dia para o outro, a indústria da moda começou a fazer críticas positivas e a apoiar o documentário”.
Apesar de hoje a relação entre as duas ser inexistente, Lorna Tucker não deixa de salientar a enorme inspiração que é Vivienne Westwood. “Eu não vim de uma família com dinheiro e não tinha nenhuma segurança financeira quando comecei a trabalhar em cinema”, afirma a realizadora que aos 15 anos era uma toxicodependente sem-abrigo nas ruas de Londres. “Ser uma mulher nesta indústria é difícil. Há muitas pessoas que nos dizem que não e que nos fecham a porta porque não fazemos parte de ‘o grupo’”. E, apesar de a história pessoal de Tucker também ser uma de vitória – e um enredo forte para um sucesso de bilheteira – a realizadora viu na vida de Vivienne Westwood a oportunidade para dar força a outras criadoras e artistas. “Ir lá e filmar com ela e perceber o tempo que demorou até ela ser reconhecida, toda a rejeição que ela teve de enfrentar, inspirou-me muito”.
Se Lorna Tucker pudesse voltar atrás, mudaria alguma coisa no seu documentário? “Não faria nada de diferente. Aprendi muitas lições importantes com esta experiência. Esta é a minha primeira longa-metragem e estou orgulhosa do meu filme. Nunca vais conseguir fazer toda a gente feliz”. O seu próximo filme tem data prevista de lançamento para Dezembro. Chama-se “Amá” e é um documentário sobre abusos na esterilização de mulheres indígenas nos EUA.
“Westwood: Punk, Icon, Activist” passa este sábado, dia 20 na sala Manoel de Oliveira do cinema São Jorge, às 18h30. Repete no dia 27, às 21h30, no grande auditório da Culturgest. Mais info aqui.