Quando era ainda miúdo, Tiago Fernandes destacou-se quando jogava no Montijo mas o pai, Manuel, um dos maiores goleadores de sempre do futebol português, nunca se deixou levar pelas abordagens exploratórias dos “grandes” – incluindo o Sporting. Para ele, o filho teria mais hipóteses de dar nas vistas em conjuntos mais modestos do que se fosse apenas mais um nas maiores fábricas de produção de talentos do país. Passou depois pelo Barreirense (com uma época pelo meio no Samouguense), onde despertou o interesse da Académica, mas neste caso a distância acabou por ser o maior entrave. Em 2000/01, cumpriu o primeiro ano de sénior na 3.ª Divisão pelo Alcochetense e também aí um olheiro dos leões colocou-o na lista de potenciais reforços para a equipa B verde e branca, numa altura em que o pai assumiu a formação principal depois da saída de Augusto Inácio (e de um período de Fernando Mendes como interino). Mais uma vez, acabou por não dar o salto.
José Peseiro despedido, Sporting procura novo treinador (que deve ser português)
Tiago Fernandes passaria ainda pelos Distritais da AF Setúbal ao serviço do 1.º de Maio Sarilhense e do Alcacerense, antes de regressar à 3.ª Divisão quando voltou a assinar pelo Alcochetense. Em 2006/07, chega à equipa B do V. Setúbal, começa a ser falado como hipótese para o plantel principal mas a passagem nunca se concretiza. Terá sido nesse momento que o filho do antigo avançado decidiu que o futebol não passaria de uma paixão para conciliar com o mais importante – os estudos (estava por essa altura a concluir o 12.º ano, pensando já na faculdade). Ainda conheceu outros clubes como o Pinhalnovense ou o Olímpico do Montijo mas a veia de treinador começava a superar a vontade de jogar. Foi por isso que, entre 2009 e 2011, foi adjunto do pai na equipa técnica do V. Setúbal, numa fase onde o responsável pelo departamento clínico era Frederico Varandas. Em 2011, surgiu a oportunidade de treinar os Iniciados C do Sporting. Aceitou, mesmo a receber 300 euros por mês. Pode não ter sido como jogador mas também Tiago conseguia chegar ao clube do coração como sempre ambicionou.
O escolhido para substituir de forma interina José Peseiro ia vivendo entre duas realidades paralelas: por um lado, além de jogar em formações mais modestas, trabalhava também com o sogro no ramo da construção civil; por outro, tinha o gosto por saber mais sobre o treino e o desenvolvimento tático das equipas. Não sendo um avançado de raiz como o pai, aquele “matador” que só precisava de uma nesga de espaço para marcar, também tinha “faro” e destacava-se dessa forma nos clubes onde passava (nos golos e, de quando em vez, no registo disciplinar, tendo somado algumas expulsões por acumulação ou vermelho direto); todavia, puxavam-no para o outro lado das quatro linhas, incluindo… José Mourinho. “É muito meu amigo. Praticamente obrigou-me a ser treinador logo aos 25 anos. Deu-me os cadernos de treino dele todos, do FC Porto, do Chelsea, do Real, a preparação dos jogos… Tenho a pré-época do primeiro ao último exercício”, contou em entrevista ao Record.
O pai foi sempre a grande referência e inspiração mas Tiago Fernandes foi tentando dar um cunho muito próprio ao trabalho que fazia. Em 2013/14, subiu aos Iniciados B e voltou a sagrar-se campeão regional; dois anos depois, dá um inesperado salto para os juniores por troca com Luís Boa Morte (que rendera José Lima logo no final de outubro). Em 2015/16, termina a fase final do Campeonato no segundo lugar, a um ponto do FC Porto, com uma geração sem grandes referências e com muitos elementos de primeiro ano; na temporada seguinte, sagra-se campeão com jogadores que conhecia desde os primeiros tempos na Academia, casos de Luís Maximiano, Thierry Correia, Miguel Luís, Daniel Bragança, Elves Baldé ou Rafael Leão (Jovane Cabral e Pedro Marques, outros destaques desse conjunto, chegaram mais tarde aos leões).
Na última temporada, após uma derrota caseira do Sporting frente ao Barcelona para a Youth League, teve um desentendimento com Luís Boa Morte, o seu antecessor. “Antes de cá chegar, esta era uma equipa que levava goleadas e hoje não. Nasci num habitat de futebol, respiro futebol desde que nasci. É difícil chegar algum treinador e ensinar-me mais de futebol do que eu percebo porque nasci neste mundo e cresci neste mundo, filho de um ex-jogador e ex-treinador esse foi o meu habitat. Podem-me chamar arrogante, mas é o que sinto”, comentou no final da partida. “Menino, só estás no Sporting por seres filho de quem és e um verdadeiro lambe botas. Se o teu pai não tem feito as pazes com o presidente estavas na rua, aprende a ser humilde e respeita os teus colegas de profissão. Quando chegas lá com cunhas e não por mérito próprio… dá nisto”, respondeu o antigo internacional, que esteve na formação dos leões antes de ser cedido ao Lourinhanense e despertar o interesse do Arsenal, nas suas redes sociais (algo que foi recordado na semana passada na blogosfera leonina).
A homenagem a Luís Boa Morte que acabou por não acontecer no intervalo do Sporting-Arsenal
Ser filho de quem é trouxe sempre um sentimento paradoxal no universo Sporting. Por um lado, quem não conhecesse Tiago Fernandes ou o seu trabalho podia considerar que chegara onde chegou também por ter na “sombra” o pai, que além de liderar o gabinete de scouting é comentador na SIC – e o próprio sabe que corre sempre esse risco; por outro, em termos internos, são poucos aqueles que não veem no técnico de 37 anos um futuro promissor. Meticuloso nos treinos e nos jogos, que aproveita ao máximo todos os recursos da restante equipa técnica, com personalidade, capaz de comandar um balneário através de uma relação próxima e aberta. Foi por isso que, após a saída de João de Deus da equipa B em 2016/17, não mostrou interesse em subir um degrau para a Segunda Liga por considerar que ainda trabalho para fazer na equipa que seria campeã de juniores.
A ligação a Jorge Jesus nos três anos em que o agora técnico do Al-Hilal esteve no Sporting também foi importante. “Prefiro estar uma tarde inteira a falar com Jorge Jesus do que ir tirar o mestrado na faculdade (mas vou tirá-lo). É das melhores pessoas que conheci no futebol. Foi o melhor colega treinador que tive. Um apaixonado. Defende como ninguém a profissão dos treinadores em Portugal”, sublinhou na mesma entrevista ao Record, onde admitiu ter recebido sondagens e convites por parte de duas equipas da Primeira Liga, bem como de um clube das divisões secundárias de Inglaterra. Recusou sempre.
No Verão, perante toda a convulsão institucional e no futebol do Sporting, sai dos juniores (para onde regressou Pedro Venâncio, ficando José Lima com os Sub-23 que atual na Liga Revelação) e integra a equipa técnica de José Peseiro com Nuno Presume, Ricardo Dionísio, Daniel Correia, Filipe Bettencourt e Vítor Peseiro. Na última deslocação à Luz, quando se cruzou com Gedson Fernandes, um dos jovens lançados esta temporada por Rui Vitória que conhece há alguns anos do futebol de formação, recebeu a camisola do médio em pleno relvado. “Um dia disse-te que isto ia acontecer, caminhamos juntos com muito orgulho em ti”, escreveu mais tarde nas redes sociais. A atitude chegou a merecer algumas críticas de adeptos leoninos, algo que foi desvalorizado pelo próprio. Agora, perante o atual contexto de não haver treinador em vésperas de uma deslocação aos Açores para defrontar o Santa Clara, deverá liderar a equipa pelo menos um jogo. E logo frente a uma equipa com história na família – Manuel Fernandes era o técnico dos açorianos no primeiro encontro na Primeira Liga, em 1999, frente ao… Sporting. E os leões, comandados então por Giuseppe Materazzi, não foram além de um empate a dois em São Miguel.