A 19 de Abril de 2015, Jon Stewart anunciou que ia deixar o Daily Show. A notícia caiu como uma bomba entre os devotos, declarando-se a morte antecipada do mítico telejornal satírico que inspira quase todos os formatos do género pelo mundo fora. Mais: meses mais tarde, com a decisão de Stewart já em curso, Donald Trump torna-se oficialmente no candidato republicano, um volte face bizarro que era na verdade a mera ponta do icebergue da nova era política que aí viria.
Para o seu lugar, o ator feito pivot escolhe um miúdo sul-africano, há apenas quatro anos a viver nos Estados Unidos, que só tinha aparecido como correspondente do programa duas vezes. O seu nome era Trevor Noah e foi recebido pela maioria com um vigoroso franzir de sobrancelhas. Poderia alguém tão novo, tão inexperiente, com tão pouco mundo seguir as pisadas do comediante mais influente da década?
[Estreia de Noah como correspondente do Daily Show:]
Ora o equívoco acerca das capacidades de Noah começava logo ali: para o americano comum, estava ali um novato. Mas Trevor era já, nos seus tenros 31 anos, o maior comediante africano de sempre, reconhecido pelos seus pares em todo o mundo (era presença assídua em festivais como o Fringe, em Edimburgo, um dos certames mais importantes de comédia no mundo). E tinha uma experiência que equivalia a muitas décadas de existência, tendo nascido durante o apartheid, filho da relação ilegal entre uma negra e um branco suíço (“sabem que os suíços adoram chocolate”, costuma explicar), em contacto direto com pobreza e com violência mas também com esperança.
Logo num dos seus primeiros Daily Show, Noah usou a sua perspetiva mais global e menos americanizada para explicar porque é que Donald Trump é, na verdade, um ditador africano:
E é sobre esta vida com tantas vidas lá dentro que fala Sou Um Crime (no original Born A Crime), editado a 16 de Novembro pela Tinta da China. A carreira como humorista fica para segundo plano, em detrimento das outras facetas de Noah: a de filho (a dedicatória reza: “para a minha mãe, a minha primeira admiradora. Obrigado por fazeres de mim um homem”), de irmão, de enteado, de colega, de opositor, de cúmplice, de adolescente ralado com miúdas como qualquer outro adolescente fruto de qualquer outro contexto.
O livro começa com uma transcrição da lei que, efetivamente, transformou Trevor Noah num crime desde a sua conceção. A Lei da Imoralidade de 1927 não deixa margem para dúvidas: “qualquer mulher nativa que permita que um homem europeu tenha relações carnais ilícitas com ela (…) terá cometido um crime e estará sujeita a uma pena de prisão por um período não superior a quatro anos”. Filho de uma mulher emancipada mas profundamente religiosa, Noah cresce como o único mestiço da família (a avó colocou-o no seu grupo de oração, a comandar as rezas, por achar que Deus atenderia melhor um miúdo com sangue branco e fluente em inglês), e no ambiente escolar nunca sabe bem com que grupo étnico se integrar (“Tornei-me um camaleão. A minha cor não mudou, mas podia mudar a perceção que as pessoas tinham da minha cor”).
[Trevor Noah sempre usou a sua situação familiar atípica nos seus sets de stand up:]
Noah tem cinco anos quando Nelson Mandela sai da prisão. Mas um regime com as arestas e raízes do apartheid não desaparece num só dia, por mais emblemático que seja. As dores de crescimento de um país à procura de identidade são em tudo semelhantes às de uma criança que não percebe onde encaixa. A vida do comediante é moldada pelo seu contexto geopolítico, extremo e atípico, mas é também às vezes saudavelmente igual às das outras crianças todas. Aqueles nascidos nos anos 80 (Trevor é de 1984) vão reconhecer não só angústias como referências culturais. O sul africano é, por exemplo, uma espécie de dealer de CDs pirateados – uma referência que, na verdade, também me transporta para a minha própria escola secundária. Dos CDs evolui para uma carreira como DJ, onde treina pela primeira vez o seu à vontade em palco. E é esta carreira imberbe que dá origem a um dos capítulos mais divertidos de Sou Um Crime (“Vai, Hitler”, página 175), o relato de uma festa numa escola judaica.
[O comediante discute alguns dos episódios do livro, num evento do jornal The Guardian:]
Sim, o livro é divertido. Mas também é trágico (a mãe foi vítima de violência doméstica), político (as explicações sobre as diferentes línguas e dialetos da África do Sul são essenciais para compreender o país) e ativista (exemplificando variadas facetas da discriminação e segregação). Cada uma destas características existe organicamente ao longo das 274 páginas, todas profundamente pessoais, numa obra escorreita que nunca soa nem a moralista nem a forçada.
Sou Um Crime encontrará um público junto daqueles que já são fãs de Trevor Noah (a Tinta da China, conhecida pelas suas capas mais à base de ilustrações monocromáticas, optou em colocar uma simples fotografia do comediante como capa), mas merece ser lido também por quem nunca o viu mais de dois minutos no Daily Show e tem curiosidade sobre uma narração na primeira pessoa de um dos regimes mais conturbados da história mundial.
Susana Romana é guionista e professora de escrita criativa