Pedro Gil viu Don Juan pela primeira em palco quando tinha 18 anos: na ópera de Mozart e Lorenzo Da Ponte, “Don Giovanni”, representada em 1998 no Teatro de São Carlos, em Lisboa. “O lado negro da personagem e aquele niilismo sem explicação foram emocionalmente muito fortes e ainda hoje me tocam”, recordou Pedro Gil, em conversa recente com o Observador. Quando em 1999 se iniciou como ator profissional, a primeira personagem que lhe coube foi precisamente um Don Juan, na peça “Juane, O Mito da Ilha da Oliveira com Maças”, de Pedro Saavedra, no Teatro da Comuna.
Duas décadas passadas, agora como dramaturgo e encenador, regressa ao mítico aventureiro libertino, sinistro e impostor, livre e fora-da-lei, cruel conquistador de mulheres e eterno dependente do desejo sexual. É uma versão cómica, “Don Juan Esfaqueado na Avenida da Liberdade”, com estreia marcada para esta quarta-feira, dia 7, no Teatro Municipal São Luiz, em Lisboa.
A ideia tem uma improvável origem: a visita de Pedro Gil à antiga Cadeia do Aljube e o ter aí reencontrado uma célebre citação de Oliveira Salazar em 1936: “Não discutimos Deus e a virtude; não discutimos a pátria e a sua história; não discutimos a autoridade e o seu prestígio; não discutimos a família e a sua moral; não discutimos a glória do trabalho e o seu dever.” Os cinco “nãos” do Estado Novo, como lhes chama Pedro Gil.
“A minha atração por Don Juan é antiga e mais tarde ou mais cedo faria um espetáculo sobre ele”, resumiu o encenador. “Atrai-me enquanto agente provocador, é um vilão, porque opera sempre em desafio à norma estabelecida. Para mim, quase todos os Don Juans não são sobre ele, mas sobre o eco da violência que ele provoca, o que ele destrói nos outros, os estragos que causa.”
Don Juan Tenorio de Sevilha, também dito Dom João, apareceu pela primeira vez em texto de inícios do século XVII atribuído ao espanhol Tirso de Molina (1579-1648) e desde então foi recriado por inúmeros autores. No espetáculo de Pedro Gil é intepretado por Tónan Quito e surge-nos “não tanto como personagem de carne e osso, mas como um vírus narrativo”, disse o criador.
“Um dos grandes ingredientes no Don Juan do cânone é ele morrer. A brincadeira, aqui, é ele não morrer, porque não aperta a mão à estátua do comendador. Por isso, é obrigado a fugir e vem para Lisboa. Diz-se que encenar um clássico é trazê-lo até nós. Se é isso, então eu trago-o para Lisboa e para os dias de hoje. A paródia é essa”, acrescentou.
“Don Juan Esfaqueado na Avenida da Liberdade” tem no elenco o autor do texto e da encenação, além de Filipa Matta, Miguel Loureiro, Pedro Gil, Raquel Castro, Rita Calçada Bastos e Tónan Quito. Só este último não muda de personagem, todos os outros se multiplicam, ora no feminino ora no masculino. A duração é de duas horas e meia, em duas partes. Na primeira, uma versão irónica de episódios donjuanescos. Na segunda, a nova vida do vilão na Lisboa dos nossos dias. É aí que entram os nãos do Estado Novo que Pedro Gil encontrou na cadeia, hoje museu, onde o próprio avô esteve como preso político durante a ditadura.
“Há poucos anos fui visitar o Aljube com a minha mãe e ao ver aqueles cinco nãos numa parede achei curioso o facto de parecerem uma coisa do passado. ‘Deus, pátria e família’ eram palavras que não se podia discutir. São palavras que também pertencem ao presente, porque hoje já as podemos discutir, mas não creio que as questionemos realmente, porque acabam por ser os pilares do Estado, de um estado democrático. Sendo um libertino, Don Juan colide sempre com esses pilares”, explicou Pedro Gil. “Ao ver aqueles cinco ‘nãos’, a ideia que tinha do Don Juan ficou iluminada. É um homem solteiro, abastado, que não trabalha, que não tem filhos e que é antipatriótico. Ele questiona aqueles ‘nãos’. Identifico aí alguma modernidade no mito e foi isso que fez surgir este espetáculo.”
A atualidade de Don Juan é, portanto, uma das propostas da peça. A amoralidade da personagem e a sua conduta funcionam como um comentário à vida contemporânea. Ainda assim, Pedro Gil sublinhou que “não há um programa” subjacente à criação. “Não tenho intenção de passar esta ou aquela mensagem, de pôr o espectador a pensar nisto ou naquilo. Se isso acontece, é o público que determina.”
Numa cena especialmente marcante Don Juan chega a uma “soirée libertine” no imaginário clube de sexo Le Trapeze, só que os encontros eróticos que aí o esperam têm uma linguagem que o surpreende. Homens e mulheres fazem sexo livre e convidam-no a que se junte, o que colide com as regras de galanteio e arrebatamento que ele conhece do século XVII. Noutra cena, o protagonista é levado a experimentar a Amorosa, máquina de sexo virtual com sensores e hologramas. Em ambas as situações, dá-se um embate com a realidade. E também aqui o presumível progresso do presente é questionado.
“Ele acaba por ser antiquado no nosso tempo. Alguém que parecia muito progressista e libertino, no sentido de provocar as convenções sociais do século XVII, chega aqui e não consegue jogar com esta nova gramática”, comentou Pedro Gil.
As questões políticas parecem muito óbvias, mas o encenador insiste: não tem uma intenção deliberada de as apresentar. Estamos numa comédia e isso explicará que o peso de temas sérios seja muito mais leve. “No fundo, a brincadeira é esta: com as conquistas tecnológicas e sociais, o futuro é supostamente melhor que o passado e Don Juan poderia ser muito mais livre hoje, mas não é”, disse Pedro Gil. “Ele continua em fuga, a colidir com a sociedade.”